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5. Tarefas Descritiva e Interpretativa

5.5 Categoria Corpo-harmonia

5.5.1 Categoria Corpo-harmonia para a ALM

Quando falamos em harmonia ou quando o conceito nos surge, em qualquer contexto, a primeira ideia que se apodera de nós é sinónimo de conformidade, de regularidade, de ordem entre os elementos, de disposição

de partida, seria certamente difícil enquadrá-los com um corpo portador de deficiência, já que este, na grande maioria das vezes, apresenta uma “desordem” corporal visível, exposta nas suas partes constituintes. Sendo a harmonia uma importante categoria a considerar quando temos como objectivo identificar o valor estético do desporto (Lacerda, 2002a), aparentemente torna- se uma tarefa quase impossível demonstrar a sua presença no corpo do desportista deficiente. Porém, pensamos que tal evidência se torna possível se tivermos em consideração que o olhar estético tem como principal objectivo “desvendar novas formas nas formas estereotipadas” (Lacerda, 1999, s.p.). Se nos distanciarmos das “normas” corporais e lançarmos um olhar atento sobre o corpo do desportista deficiente em acção, pensamos ser provável e intensa a harmonização do momento, ao verificarmos que um corpo “desarmonia” é capaz de conjugar o gesto desportivo (eficaz e eficiente) com a perfeição.

Para a ALM este corpo-harmonia, representado no desporto, estabelece uma forte relação de harmonia com o seu Corpo, entendido numa perspectiva de totalidade: “O facto de praticar desporto trouxe alterações também em termos de

adaptação ao meu corpo.” Parece-nos estarmos perante aquilo que entendemos ser uma das principais funções do desporto, que se consubstancia até no seu valor educativo, ou seja, na capacidade que as suas vivências têm de nos proporcionar experiências ricas no que diz respeito ao reconhecimento do nosso valor, proporcionando um bem-estar que se reflecte numa boa relação com o nosso corpo. Desta “harmonização” a ALM parece tirar benefícios também para a sua vida do quotidiano, de modo algo semelhante ao que foi possível constatar na categoria corpo-liberdade: “O facto de praticar desporto também ajuda que estando em forma, não tenho que me preocupar com essa parte, e logo tudo é mais harmonioso.” Verificamos assim uma “dupla” harmonia, funcionando sob duas perspectivas, na medida em que para além de uma harmonia física, a ALM parece evidenciar uma harmonia “interior”.

Com isto podemos concluir que a pessoa portadora de deficiência para além de encontrar no seu corpo desportivo um corpo-harmonia, este pode projectar-se para um equilíbrio total, prolongando-se para outros momentos da vida social.

5.5.2 Categoria Corpo-harmonia para o AJPF

Ao realçarmos a presença de um corpo-harmonia no corpo do AJPF, verificamos no seu discurso o que entendemos ser um (aparente) paradoxo:

“Eu agora estou solto, mas se sair de casa eu tenho os meus auxílios, coloco a mão

aqui, presa no elástico, e mesmo que o braço fuja não é mais do que isto [realiza um

movimento de reduzida amplitude]. Portanto, uso estratégias para defender o meu

corpo.” Associando os termos harmonia e estratégia, percepcionamos a

presença de uma harmonia sim, mas que se pode interpretar como “forçada”, delineada, que tem que ser planeada para ser conseguida (o que certamente não será muito difícil de idealizar num corpo com deficiência). Para além disso, o AJPF transmite a ideia de possuir dois corpos num só, simultaneamente em fusão e em separação e afastamento – um que responde ao seu comando e outro que não consegue controlar. Verificamos também que em algumas situações, o seu corpo não lhe permite “andar solto”, como se de um “animal selvagem” se tratasse e que de forma desenfreada se desprende, não tendo meios para o fazer regressar. No entanto, é neste e com este “corpo bravio” que se expressa a harmonia. Desta conjugação ou conciliação de corpos emerge uma forma de cadência, de ritmo, de regularidade que é conseguida pelo seu corpo desportivo. O seu corpo, ao assemelhar-se a uma “máquina” por vezes desorientada, consegue encontrar no desporto uma forma de estabelecer a proporção entre as partes, ou até mesmo de superiorizar o seu corpo controlado, imperando sobre o desfalecimento de um corpo descontrolado. Os corpos que por vezes se manifestam no desporto, uns que se pretendem calmos e seguros de si, outros que se pretendem no culminar da excitação, parecem estar congregados num só corpo, no corpo do AJPF. O desporto é assim, para este corpo, um meio de o submeter ao controlo da mente e de uma normalidade instalada.

Tendo consciência de um corpo-harmonia momentâneo, o AJPF afirma:

“Nos Jogos de Atenas 2004 [na cerimónia de abertura] (…) posso dizer que ia sempre

no meio, nunca gostei de me chegar à frente nem chegar para trás. Vou no meio, não sei se também é devido à minha deficiência. Daqui a bocado posso ter um “tic” e ficar

ocupa, pretende estabelecer uma harmonia “geral”, com os outros que o acompanham e com o que o rodeia. Não como forma de esconder a sua deficiência, mas como meio de estabelecer um equilíbrio corporal, com os outros corpos. No caso específico aqui mencionado, provavelmente a grande maioria das pessoas que o acompanhavam eram também portadoras de deficiência. Tendo isto em atenção, o AJPF parece ter como objectivo harmonizar todos os corpos, para que no seu movimento pareçam um só, e assim “embelezá-los”.

Em conclusão, é possível verificar que este corpo desportivo, transportando uma aparente desarmonia, encontra no desporto uma forma ímpar de instalar a harmonia, mesmo transportando o que parece ser um corpo divisível, um corpo múltiplo, composto por duas partes fechadas, mas que se abrem neste fenómeno.

5.5.3 Categoria Corpo-harmonia: análise comparativa

Depois de interpretarmos a presença desta categoria no discurso de ambos os atletas, parece-nos ser possível comprovar algumas ideais convergentes e também ideias diferenciadas.

Como vimos anteriormente, a ALM realça aquilo que nos parece ser um corpo-harmonia uma vez mais voltado para o corpo social. Assim sendo, a prática desportiva possibilitou-lhe, ou pelo menos foi uma das formas que lhe permitiu ter uma melhor relação com o seu corpo. Daqui se retira a ideia de uma harmonia também interior, já que foi possível estabelecer um equilíbrio entre o que na sua opinião é um corpo aceitável e os padrões que estão estabelecidos na sociedade relativamente ao que é considerado um corpo belo (do ponto de vista da aparência).

Na perspectiva do AJPJ, podemos afirmar a presença de uma ideia semelhante, embora não tão vinculada aos estereótipos que vigoram na sociedade. Embora o atleta sinta necessidade de estabelecer uma harmonia

“colectiva” quando está na companhia de outras pessoas, a sua deficiência não parece ser a principal razão para aquilo que poderemos chamar “pequeno refúgio”. No sentido de “proteger” o seu corpo, o AJPF parece também querer “proteger” aqueles que o acompanham, tornando a movimentação dos corpos mais harmoniosa, como se todos os corpos fossem apenas um só. Para além disso, seguindo esta mesma ideia de “protecção”, o AJPF manifesta o que na nossa opinião resulta na intenção de exercer um domínio sobre o seu corpo, sendo este domínio uma forma de harmonizar as suas duas partes, uma parte esquerda que controla sobre a sua vontade, e uma parte direita que por vezes se torna desobediente e desafiadora. O desporto é assim, uma vez mais, uma forma que lhe admite ter poderes sobre o seu corpo.

5.6 Categoria Corpo-atracção