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CARACTERÍSTICAS DAS SEÇÕES

4.3. CATEGORIAS DE ANÁLISE

Para atender à sistematização do trabalho em relação ao objeto delimitado, desenvolveram-se algumas categorias que são aqui expostas. Trata-se de um conjunto de noções que serão utilizadas nas análises e merecem um destaque especial neste momento.

4.3.1. Evento comunicativo

As expressões “evento comunicativo” e “evento comunicativo amplo”, neste trabalho, são utilizadas para indicar o contexto sócio-comunicativo evocado no gênero ‘frase’, que, na maioria das vezes, corresponde a outro gênero, aqui chamado de gênero-base. Portanto, o “evento comunicativo restrito” será o próprio gênero ‘frase’. Conforme Swales (1990, p.46, tradução nossa), uma classe de eventos comunicativos compreende “não somente o discurso e seus participantes, mas, também, o papel desse discurso e o ambiente de sua produção e recepção, incluindo suas associações históricas e culturais”.

Para Marcuschi (2003a), a diferença entre gênero e evento comunicativo, em muitos casos, pode depender, exclusivamente, das circunstâncias em que se ressalta um mesmo objeto observável. No caso, o fator determinante seria o acontecimento que se dá com esse objeto. O autor menciona o caso da “carta pessoal”, que é um gênero: a carta, ao ser lida, caracteriza-se como um evento discursivo. Por fim, concordando com Hymes (Apud MARCUSCHI, 2003a, p. 7), podemos afirmar que “o evento caracteriza-se como uma grandeza sócio-interativa vista sob seu aspecto de realização, contemplando os atores e toda a organização sob o ponto de vista etnográfico”.

4.3.2. Recorte

Com base na Análise do Discurso (AD), particularmente na linha francesa, o termo recorte, em nosso trabalho, significará o fragmento do evento comunicativo que foi escolhido pelo editor para compor o gênero ‘frase’, como a parte retextualizada da fala do locutor.

Expondo sobre uma explicação de Orlandi para o termo, Guimarães (1986) apresenta o recorte como um fragmento de situação discursiva, tendo em vista que uma unidade discursiva se constitui de fragmentos inter-relacionados ou correlacionados de “linguagem-e-situação”.

4.3.3. Gênero textual ‘frase’

A nomeação do gênero ‘frase’, com o uso de aspas simples, tem função desambigüizadora, para afastar-nos de uma leitura sintática do termo e remeter-nos a um gênero típico, que se situa no domínio jornalístico, fixado, principalmente, em revistas e jornais. Dentre as variedades de gêneros do domínio jornalístico, a ‘frase’ se destaca por apresentar textos curtos, atrativos para qualquer leitor.

Ademais, optamos por nomear ‘frase’, tendo em vista a maioria das revistas utilizarem esse termo quando a identificam na seção, tal como exposto no capítulo anterior. De acordo com Swales (1990), uma nomenclatura de uma comunidade discursiva para os gêneros é uma fonte

importante de instrução (insight). Seja essa nomenclatura, herdada, produzida ou importada, constitui valiosa comunicação etnográfica.

Trabalhar com um gênero é buscar entender como ocorre sua produção, qual o papel de seu destinatário e de que forma se manifesta a ideologia da instituição social em que gênero e destinatário se inserem. Para Kleiman (2002, p. 11), “o gênero frase estaria [...] orientado por representações sobre o contexto de produção, os destinatários, a instituição social em que foi produzido, além de obedecer a um padrão formal de textualização”.

Segundo a perspectiva que aqui trabalhamos, o gênero ‘frase’ é constituído mediante dois processos, a retextualização e a (re)contextualização, ambos sendo de responsabilidade de um editor.

4.3.4. Retextualização

Retextualização é um dos processos formadores do gênero ‘frase’. A primeira parte do texto é constituída da fala atribuída a um locutor, resultante da seleção de um editor para ser parte do texto empírico. O fato é que, mesmo estando essa fala entre aspas, não se constata uma transcrição literal, contrariando, inclusive, as orientações recebidas pelos jornalistas para as declarações textuais: “A reprodução das declarações deve ser literal. Só podem ser reproduzidas entre aspas frases que tenham sido efetivamente ouvidas pelo jornalista, ao vivo ou em gravações” (MANUAL... 2001, p. 39).

Exemplos confirmarão que os editores retextualizam as falas segundo suas estratégias discursivas, suas crenças e valores, construindo identidades para si e para os outros, os locutores. Pedro sumariza a perspectiva de construção de identidades de que falamos: “[...] cada um de nós textualiza uma particular representação do mundo e do modo como expressa a sua identidade e percebe a identidade do Outro” (PEDRO, 1998b, p. 294).

A verificação da manipulação da fala do locutor só foi possível através de comparações de textos de diferentes revistas, que versavam sobre os mesmos contextos sócio-comunicativos, envolvendo, evidentemente, os mesmos locutores e os mesmos conteúdos. Os editores reescrevem ou retextualizam as falas de modo a atender a interesses seus ou das organizações a que se vinculam.

O termo retextualização já está sendo bastante utilizado na literatura atinente. Aqui o empregamos como referência ao primeiro processo ou estratégia discursiva usada pelo editor.

4.3.5. (Re)contextualização

(Re)contextualização é o outro processo formador do gênero textual ‘frase’. O editor descontextualiza a fala do locutor para, em seguida, criar um “contexto novo”, com algum vínculo com o anterior. É esse vinculo que cria no leitor a ilusão de que está entrando em contato com o contexto do evento comunicativo amplo, tal qual ocorreu. Por isso é que preferimos o uso do termo (re)contextualização, pois indica o posicionamento do editor diante do evento comunicativo. O processo pode apresentar tanto pistas comuns entre os editores (como estrutura das ‘frases’)

como pistas pessoais (pistas de opinião apresentada), demonstrando a presença menos ou mais acentuada do editor na (re)contextualização. Não podemos esquecer, porém, o aspecto mais forte das pistas pessoais, o da própria escolha da fala para a edição.

Nossa visão, a respeito da “interpretação” que os editores dão aos eventos comunicativos na constituição do gênero ‘frase’, encontra franco respaldo no seguinte:

[...] sabemos que uma coisa é um fato e outra a interpretação desse fato, processo no qual o intérprete põe em funcionamento o seu modo particular de analisar a realidade, a sua visão específica do mundo, os seus valores, as suas crenças, os seus saberes, os seus conhecimentos (PEDRO, 1998b, p. 306).

[...] se nos referirmos à interpretação ‘tendenciosa’ de uma situação ou de um texto, queremos dizer que os falantes aplicaram atitudes preconceituosas – ou outras atitudes ideológicas – à construção dos seus modelos desses acontecimentos e ao contexto de comunicação (DIJK, 1998, p. 120, destaque do autor).

Os textos do gênero em estudo mais comprovam as citações acima, de Pedro e van Dijk, a despeito das orientações recebidas por jornalistas em seus manuais de redação, como, por exemplo, “na referência e declarações é fundamental respeitar o contexto e a intenção de quem falou” (GARCIA, 2003, p. 39).

Voltamos a frisar que não encontramos, em qualquer de nossas leituras, o termo (re)contextualização, assim como está grafado, o mesmo não acontecendo em referência a “recontextualização”, mas não com o sentido que pretendemos nesta pesquisa. Assim, reforçamos que, ao optar pelo termo (re)contextualização, estaremos utilizando-o para uma atividade em que o editor deixa transparecer sua subjetividade ou sua interpretação dos fatos através de algumas pistas que identificamos no corpo desta pesquisa.

4.3.6. O locutor

Vários estudos se têm desenvolvido, após Bakhtin e Ducrot, em relação ao dialogismo e à polifonia textual e, como conseqüência, as diversas vozes que aparecem nos textos têm recebido uma nomenclatura variada, de acordo com as diversas teorias: locutor, enunciador, animador, principal, autor etc. Contudo, em nosso trabalho, estamos reservando o termo locutor para a instância discursiva primeira, aquela que produziu a voz retextualizada pelo editor.

Há casos de locutores secundários, que não são, por conseguinte, os geradores da fala selecionada. Esses locutores podem vir representados explicitamente, através de expressões destacadas por aspas simples, ou representados por uma polifonia implícita, identificada porque seu discurso é refutado ou acatado. Identificamos essa voz, portanto, não por sua presença, mas pela resposta que lhe é dada. Trata-se do que apontam Rojo e Gallego (1998, p. 347), “o fato de um discurso ser refutado quando não está presente nem foi referido – encontrando-se interiorizado desde o momento em que se deu pela presença e sentiu a necessidade de lhe dar resposta”.

Assim, a partir de tipologias já existentes para o estudo da polifonia, propomos uma que seja adequada ao escopo de nosso estudo. Como o gênero ‘frase’ se organiza segundo configurações próprias às vozes (do locutor e do editor), apresentamos uma categorização que, julgamos, atende mais aos textos analisados.

Enfim, este trabalho não se empenha em análises quantitativas e aprofundamentos estatísticos. Embora revele poder generalizador, não se acha desenhado para essa finalidade nem segue metodologia que lhe dê consistência para tanto. Isso significa dizer que ele se fundamenta, especificamente, na análise descritiva e interpretativa que demonstre o gênero ‘frase’, identificando-lhe funções, formas de operação nos contextos, características etc.

O gênero ‘frase’, por conseguinte, através da crítica e da ironia, o que lhe é tão comum, leva o leitor para além de um simples deleite, ao estereotipar pessoas, costumes e saberes em benefício de uma específica leitura de mundo e de si próprio. Podemos considerar que, revelando-se entre os tipos relativamente estáveis de enunciados, o gênero ‘frase’, decerto, opera em determinados contextos e, investido em suas funções, desenvolve-se por força de determinados propósitos, intenções ou interesses, ancorado em situações concretas que lhe permitem estabelecer alguma relação de poder. Esses, enfim, são alguns dos aspectos que, resumidamente, apontamos no capítulo anterior e pretendemos desenvolver adiante.

Qualquer enunciação, por mais significativa e completa que seja, constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta (concernente à vida cotidiana, à literatura, ao conhecimento, à política etc) (BAKHTIN, 1997, p. 123, destaque do autor).

A vida em sociedade implica intercâmbios comunicativos, estando entre eles os que se realizam, fundamentalmente, através da língua, que é considerada, nesta pesquisa, como um fenômeno heterogêneo, histórico e socialmente variável, indeterminado sob os aspectos sintáticos e semânticos e que se exprime em ocorrências concretas como texto e discurso (MARCUSCHI, 2001a). A interação comunicativa que a língua nos permite, através de textos ou discursos, se substancia em gêneros discursivos ou gêneros textuais veiculados socialmente.

Se analisarmos os gêneros dentro do continuum tipológico (MARCUSCHI, 2001b), verificamos que não tem mais sentido admitir a dicotomia fala-escrita. Esse modelo sociointeracionista tem a vantagem de considerar a língua como um fenômeno interativo e dinâmico. Os textos do gênero ‘frase’ são bons exemplos da funcionalidade e eficácia dessa visão do continuum tipológico em referência, para trabalharem-se as modalidades fala e escrita. Como a maioria das ‘frases’ são provenientes de situações comunicativas orais, elas sofrem adaptações através de retextualizações, a fim de serem veiculadas pela mídia impressa.

Verificamos que o processo sócio-comunicativo do gênero ‘frase’ assume características peculiares, uma vez que o destinatário-leitor não é o alocutário do evento comunicativo amplo ou primeiro, de que se extraiu a ‘frase’. O leitor do gênero ‘frase’ está sujeito às informações recebidas dos editores. Ele recebe falas e (re)contextos de acordo com a visão de mundo desses editores.

No caso específico de nossa pesquisa, o gênero textual ‘frase’ pode sofrer variações determinadas diretamente pela releitura efetuada pelos diferentes editores. Assim, os leitores poderão receber informações ou interpretações dessemelhantes do mesmo evento comunicativo, a depender do suporte em que foi fixado o texto. Logo, em uma mesma sociedade, os leitores poderão ter visões diferentes sobre um mesmo tópico ou assunto, não porque o interpretam diversamente, mas porque interagem indiretamente com ele, tal como se observa em dois exemplos que retomamos (destaques nossos):

[06] “Estou feliz com os meus peitinhos pequenos, mas sinceros”.

Nívea Stelmann, atriz, afirmando que não pensa em colocar silicone nos seios (I – 23/05/01).

[07] “Estou feliz com meus peitinhos sinceros”.

Nívea Stelmann, atriz, sobre a hipótese de aumentar os seios com silicone – (E – 21/05/01).