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2.3 RELIGIÃO ENQUANTO INTINERÁRIO TURÍSTICO

2.3.3 Catolicismo popular: festas e devoções

O catolicismo popular foi gestado no Brasil em meio ao processo da colonização portuguesa no Século XVI, resultando numa fusão de culturas e religiões entre indígenas, negros e brancos, esse processo foi implantado juntamente com a religião cristã e apresentou finalidades econômicas, políticas e religiosas. De acordo com Hoornaert (1984), a evangelização do Brasil foi se operando através de cinco (05) movimentos ou ciclos de evangelização: o litorâneo, o sertanejo, o maranhense, o mineiro e o paulista. Esses ciclos

são importantes para compreender como o catolicismo e a “Igreja colonial” se inseria no processo de colonização.

O primeiro ciclo refere-se ao início do interesse português pelo Brasil para a

produção da cana de açúcar durante o reinado de Dom João III (1521-1557), essa produção tornou-se possível na zona litorânea e contribui para implantar o trabalho escravo, sobre os aspectos religiosos, Hoornaert (1984, p. 29) destaca: “A “religião do açúcar” era vivida através da capela, dos oratórios domésticos, da devoção aos santos, finalmente dos ritos do catolicismo tradicional português que passaram a difundir a ideologia do capitalismo agrário implantado no país.”.

O ciclo sertanejo de evangelização surgiu, nesse contexto, em meio à busca de

alimentação para manter os engenhos e escravos para mão-de-obra, através da pecuária o sertão nordestino foi sendo ocupado, por meio dos rios navegáveis como o rio São Francisco, o Parnaíba e pelo Sudoeste no curso do rio Paranaíba, que possibilitaram a formação de estados como o Piauí, Goiás e Mato Grosso. Sobre os aspectos religiosos, destacavam-se a ação de diversas ordens religiosas: capuchinos e oratorianos, jesuítas e franciscanos que atuaram até o fim da legislação pombalina (1755) e que resultou na expulsão dos jesuítas em 1759. (Hoornaert, 1984).

O terceiro ciclo, o ciclo maranhense envolvia toda a região amazônica, e representava um estado distinto governado por Portugal, para manter o comércio com a metrópole tornou- se uma área de interesse estratégico e militar. Três ordens religiosas atuavam nas missões amazonenses: carmelitas, franciscanos e jesuítas.

O ciclo mineiro, por sua vez, foi formado predominantemente por movimentos leigos e não clericais, se diferenciado dos demais ciclos de evangelização, este ciclo movimento as áreas de mineração no início do século XVIII e seu objetivo era centralizar o escoamento do ouro nas áreas de mineração para o Estado português, com isso ficou proibida a presença de ordens religiosas. O ciclo mineiro foi formado por “ordens terceiras” e com igrejas sem conventos.

Por fim, o ciclo paulista possibilitou o surgimento de novos catolicismos, pois diferentes missões religiosas (franciscanos, jesuítas e beneditos) estavam envolvidas em diversas atividades econômicas, como a cultura do açúcar no litoral, exploração dos indígenas e a descoberta do ouro. Esses ciclos descrevem como a ocupação do território brasileiro foi se estabelecendo por meio de ciclos econômicos e paralelamente de movimentos missionários, que foram determinantes para a atuação da Igreja Católica e sua forte influência na formação da sociedade brasileira.

O catolicismo “popular” é, nesta perspectiva, composto por representações e práticas religiosas que contribuíram para constituir a identidade da cultura brasileira, os fenômenos, como festas de santos, promessas, novenas e romarias foram compondo o cenário da sociedade brasileira desde a colonização portuguesa.

Para Oliveira (1985) esse catolicismo popular não necessitava de uma intervenção da autoridade eclesiástica para serem adotados pelos fiéis e representava: “[...] o conjunto de representações e práticas religiosas desenvolvidas pelo imaginário popular a partir de símbolos religiosos introduzidos no Brasil pelos missionários e colonos portugueses, e aos quais se juntaram alguns símbolos religiosos indígenas e africanos”. (Oliveira, 1985, pp. 122- 123). Até mesmo os principais representantes do catolicismo popular, os santos, não necessitavam dessa intervenção, sendo cultuados desde os santos reconhecidos oficialmente até os santos locais que permanecia na memória coletiva, apenas durante algumas gerações.

O surgimento do catolicismo popular foi favorecido pela separação entre Igreja e Estado, que estabeleceu um regime de padroado no qual dava autonomia à monarquia portuguesa de gerir o aparelho religioso no Brasil, essa situação levou a um distanciamento entre o aparelho eclesiástico e os fiéis, favorecendo a presença de leigos na condução das práticas religiosas, sobretudo, nas áreas rurais (Oliveira, 1985).

De acordo com Menezes (2004), a partir do Século XIX o catolicismo popular passou por diversas transformações provocadas por mudanças internas que afetaram a Igreja Católica e mudanças mais amplas na sociedade brasileira. As mudanças que afetaram a Igreja estão vinculadas a dois macroprocessos ocorridos durante o Século XIX-XX: o primeiro seria o processo de “romanização”, que de acordo com Oliveira (1985) buscava por meio de uma ação reformadora dos agentes religiosos moldarem o catolicismo brasileiro ao modelo romano.

Esse catolicismo romano era centrado na prática dos sacramentos e a obediência à autoridade eclesiástica. Sobre o contexto histórico desse processo Oliveira (1985, p. 284) destaca:

O processo de romanização tinha se iniciado já durante o II Império, com os “bispos reformadores”: a reforma dos seminários, a introdução de novas devoções de origem europeia, a espiritualidade sacramental, já são elementos deste processo. Entretanto, seu alcance ainda era reduzido e sua influência na verdade limitava-se ao corpo clerical, sem atingir a grande massa dos fiéis.

Com a proclamação da República, o processo de romanização se intensifica, os padres direcionavam seus esforços para a promoção de devoções e festas dentro do espirito

romanizador, os leigos perdem seu papel de decisão nas novas associações religiosas, enquanto que nas capelas rurais o domínio eclesial enfrentava maiores dificuldades de atuação, pela pouco contingente de agentes do clero para atender as capelas e igrejas distribuídas, buscaram assumir o controle dos santuários, pois foram desses centros que partiu a influência romanizadora sobre as massas rurais (Oliveira, 1985).

O segundo processo de transformação destacado por Menezes (2004) refere-se ao conjunto de reformas propostas pelo Concílio Vaticano II e pela renovação pastoral e litúrgica que ocorreu a partir dos anos de 1960 que pretendia promover as práticas de um catolicismo de caráter mais “libertador”. Além disso, o catolicismo popular foi percebido pela ótica das grandes transformações que ocorreram na sociedade brasileira, sobretudo, pelos processos de industrialização e urbanização (Fernandes, 1984).

De acordo com Menezes (2004), esses processos teriam afetado diretamente o campo religioso e provocado uma pluralização e a gradual perda da hegemonia do catolicismo. No entanto, não foram suficientes para extinguir as formas tradicionais de devoção popular, permanecendo junto às classes populares que preservaram essas práticas como forma de resistência.

Sobre esse catolicismo popular tradicional, Menezes (2004) acrescenta que as diversas interpretações foram relativizadas por diversos pesquisadores16, tanto sobre o termo “popular”, quanto o caráter “tradicional” de determinadas práticas. O que se percebe é que o uso do conceito “popular” que conferiu legitimidade aos movimentos sociais e adentrou o campo de lutas populares, sobretudo, durante os anos de 1970, não mais respondeu as questões postas pela realidade vigente.

Para Montero (1999), essas discussões conceituais conduzidas por antropólogos e sociólogos, embora tenha trago elementos importantes para compreender os modos de apropriação do catolicismo popular por parte do clero de um lado, e as lógicas religiosas que organizam as relações interpessoais do outro, foram indiferentes a questões mais abrangentes e contemporâneas.

O que a realidade atual coloca em questão, é que existe uma vitalidade das práticas religiosas que permanecem de um lado, e o surgimento de novos cultos do outro, demonstrando uma continuidade e mudanças entre formas, conteúdos e significados das práticas cultuais. De acordo com Menezes (2004, p. 25): “[...] pode haver uma continuidade

com formas tradicionais de catolicismo, mas com significados diferentes sendo incorporados a práticas já consagradas, as quais estariam assumindo novos papéis na vida contemporânea.”. Assim, a pesquisa em curso busca, então, analisar por meio do fenômeno clássico do catolicismo, as transformações que afetaram o campo religioso, e, sobretudo, o incremento de novas categorias de análise que reconfiguram as práticas como o turismo religioso. Onde esse turismo religioso popular, além de possibilitar um caminho de maior aproximação com o sagrado, por meio de eventos associados aos elementos religiosos como: festas, procissões, romarias e novenas, caracterizam a cultura popular desses devotos e propiciam uma ruptura nas vivências cotidianas (Oliveira, 2004).

Além disso, observa-se que as festas religiosas estão cada vez mais inseridas no setor turístico, como possibilidade de incentivo e desenvolvimento econômico, introduzido nos calendários oficiais como um produto turístico cultural e religioso. Ao ponto que, embora as questões do sagrado sejam centrais para motivação dos devotos e turistas, aspectos ligados ao consumo de bens e serviços, os aspectos considerados profanos tornam-se tão importantes quanto a própria festa.

3 A TRÍADE FESTIVA: O CENÁRIO DAS PERFORMANCES

A festa representa a “celebração plural da fé” (Brandão, 2010), e sua importância perpassa desde as sociedades mais antigas, até as modernas, envolvendo diversos rituais que são revividos e atualizados. Assim, festejar é agradecer por uma graça alcançada e antecipar a uma graça esperada. A festa reflete, também, as relações sociais existentes e a disputa de poder dos diversos grupos envolvidos.

Para Oliveira (2004, p. 17): “A festa religiosa é um exercício mítico de volta e projeção do mundo ideal, e a matriz para a compreensão das motivações culturais e espirituais que alimentam o turismo religioso nos mais diferentes sistemas de crença”. Em que a festa torna-se tão sagrada como turística. Sobre a funcionalidade das festas, remetemos aos questionamentos elaborados por Brandão (2010, p. 24):

[...] as pessoas fazem a festa por que ela responde a alguma necessidade individual ou coletiva, ou cumpre alguma função social que a torna, por outros caminhos, necessária? Ou as pessoas vivem a festa por que ela é um entre os meios simbólicos através dos quais os significados da vida social são ditos, com a dança e canto, mito e memória, entre seus praticantes?

Percebe-se, nesta perspectiva, que a festa religiosa percorre diversos caminhos, seja individual ou coletivo, mas que permanece carregada de símbolos e significados. Sobre a função social, Durkheim (1996) destaca a função dos cultos religiosos como processo unificador e consolidador da identidade, os ritos e crenças são categorias que formam o fenômeno religioso, onde, “As crenças propriamente religiosas são sempre comuns a uma coletividade determinada, que declara aderir a elas e praticar os ritos que lhes são solidários” (Durkheim, 1996, p.28). E o que liga essa coletividade é a fé comum professada.

Além disso, existe uma necessidade de manutenção e sobrevivência dos símbolos sagrados que se tornam possíveis pelas celebrações: “[...] os homens sentirão espontaneamente a necessidade de revivê-las de tempo em tempo pelo pensamento, isto é, de conservar sua lembrança por meio de festas que renovem regularmente seus frutos” (Durkheim, 1996, pp. 473-474).

Na perspectiva de Eliade (2010, p. 93): “A festa é a reatualização de um acontecimento primordial, de uma “história sagrada” cujos autores são os deuses ou os Seres semidivinos”. Os homens, ao viverem no tempo sagrado e na presença dos deuses, partilhavam dessa experiência religiosa da festa, reatualizando os mitos e se aproximando da

santidade. “Para o homem religioso, a reatualização dos mesmos acontecimentos míticos constitui sua maior esperança, pois, a cada reatualização, ele reencontra a possibilidade de transfigurar sua existência, tornando-a semelhando ao poder divino”. (Eliade, 2010, p. 94).

Dentro dos estudos antropológicos, sobre a festa como um ritual, Brandão (2010) destaca duas tendências: a primeira considera ritual apenas a solenização cerimonial de comportamentos coletivos, cujos propósitos e símbolos, concentrados em ritos e mitos, estão relacionados às expressões do sagrado, seja ele mágico ou religioso, nesse grupo, o autor destaca os trabalhos de Victor Turner.

A segunda tendência busca ampliar a ideia de ritual, considerando que a conduta festiva não precisa necessariamente ser regida por normas solenizadoras e que não é indispensável que haja uma relação explícita ou desejada entre o que se faz e uma esfera mítica de sujeitos ou instituições a quem se faz para que haja um ritual. De forma que, as festas também pode ser um elemento de oposição entre o sagrado e o profano. Esta segunda tendência tem prevalecido nas pesquisas antropológicas e percorrido desde as grandes festas solenes até os pequenos ritos. Conforme Brandão (2010, p. 21) destaca:

Novas formas de viver o festejo ou a redescoberta de formas antigas para nosso mundo parecem estender o poder e o significado da festa. Cada vez mais ela não quer tanto se opor à rotina, ao trabalho produtivo, mas sim invadi-los. Invadir a política, o lado do sério, as relações que entre sim os homens trocam.

Na contemporaneidade são superadas as características que até então era, predominantemente, associada às festas, como o conceito de tradicional, a memória do antigo e a proximidade com o sagrado, a festa adquire novos significados e incorporam novos sentidos e valores por meio de novas relações estabelecidas e vividas.

As festas religiosas também se inserem dentro das atividades que alimentam o turismo religioso, segmento que impulsiona o deslocamento para locais sagrados motivados pela fé na busca de vivenciar experiências relacionadas ao sagrado. Estes eventos religiosos têm atraído cada vez mais o número de fiéis, de investimentos públicos e ações eclesiais, capaz de incentivar a atividade turística e refletindo sobre essa intrínseca relação entre a religiosidade e o turismo, como destaca Alves (2013, p. 26):

Analisar as festas religiosas do catolicismo popular como atrativos turísticos envolve um processo dialético que se configura a partir de determinado contexto cultural e socioeconômico no qual, religião e turismo assumem sentidos contraditórios. Ao serem incorporadas em roteiros turísticos as tradicionais festas religiosas abandonam ou redefinem seus antigos rituais; por outro, o setor turístico ao privilegiar

determinados aspectos da cultura religiosa, provocam mudanças no modo de celebrar os acontecimentos.

A religiosidade presente no Santuário de Santa Cruz se fortalece ao longo dos anos, principalmente pela realização de três grandes festas anuais: A Invenção da Santa Cruz realizada em maio; A Exaltação da Santa Cruz representa o festejo mais longo e inicia-se no dia 5 de setembro e se estende até o dia 14 do mesmo mês e a Romaria ou “Encontro dos Santos” realizada no 2º domingo de cada mês de novembro. Cada uma dessas festas possuem suas singularidades, porém todas reafirmam a fé e a esperança que os fiéis e romeiros têm na “Divina Santa Cruz”.

Figura 11. Tríade Festiva em Santa Cruz dos Milagres/ PI

Fonte: Elaborado pela autora (2018).

Em Santa Cruz dos Milagres, as celebrações religiosas surgiram naturalmente da função religiosa da cidade, a partir da devoção a Santa de madeira e representam o momento de devoção dos homens a seus santos, em que ritos e simbologias são (re) criados como forma de demonstração de fé. As festas representam também a aproximação do mundo real e o mundo “divino” fortalecendo a fé do povo e a crença na interseção divina na resolução de problemas terrenos. Decorrente da presença dos romeiros que se deslocam, sobretudo, nos momentos de festividades que a identidade é criada em torno dos símbolos sagrados, o momento da celebração representa a construção coletiva da identidade do lugar.

Neste capítulo, é realizado uma descrição etnográfica das festas religiosas que ocorrem em Santa Cruz dos Milagres, apresentado os pontos convergentes e divergentes das celebrações, apresentando a origem da festa, o contexto social, econômico e religioso que

05 a 14 de setembro 2º domingo de novembro

rege cada festa, bem como o cenário, os sujeitos envolvidos, performance e o grau de dependência das festas.