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“O meu coração é só de Jesus, a minha alegria é a Santa Cruz.”.

Entoado por esse refrão, verificou-se os três dias da primeira festa que compõe a tríade festiva, a Invenção da Santa Cruz, que acontece anualmente no mês de maio, e representa um exemplo de adoração e penitência à cruz, embora a festa tenha sido suprimida do calendário litúrgico da Igreja Católica, permanece em algumas dioceses, que tem como símbolo maior a cruz. Como o que ocorre em Santa Cruz dos Milagres, sua história se reproduziu em torno da cruz fincada no chão pelo vaqueiro, e mesmo sem data precisa, sua continuidade é resultado de uma ação litúrgica dos representantes da Igreja na Cidade, que tem ganhado visibilidade no Estado.

Sobre a origem da tradição, buscou-se na historiografia cristã e nos sites religiosos17, baseados em informações contidas no Breviário Romano, que descreve alguns fatos, entre eles, que após a morte de Jesus os primeiros cristãos foram dispersos, e o símbolo de sua morte, a cruz de madeira, ficou perdida durante muitos séculos. Assim, com a conversão do Imperador Constantino ao Cristianismo (313), logo após uma vitória durante uma batalha em Roma, quando ele recebeu de Deus o sinal da Cruz do Senhor, Constantino deu total liberdade aos cristãos, até então perseguidos pelo Império Romano.

Com a unificação dos Impérios, sua mãe Santa Helena fez uma viagem a Terra Santa (hoje Israel, antiga Palestina) com a finalidade de rezar nos lugares santos e recolher tudo o que achasse referente a Jesus, além de ter recebido uma revelação em sonho, que a fez ir à busca da verdadeira Cruz de Jesus. Acredita-se que Santa Helena, com os recursos que tinha, conseguiu localizar a verdadeira Cruz, identificada por milagres que aconteceram no dia da sua “invenção”, ou seja do seu encontro.

Assim a invenção da Santa Cruz se refere ao encontro, pois em latim, língua usada pela Igreja nas celebrações até 1965, a palavra era “inventio” que em português significa encontro, algo que se encontra.

17 Disponível em: https://pt.aleteia.org/2017/05/03/3-de-maio-ha-1691-anos-santa-helena-encontrava-a-cruz-de-

A cruz foi levada para Roma e muitos dos seus “pedaços” espalhados como “relíquias” por todo o mundo. Sobre a veracidade dos fatos, não é objetivo da Igreja comprovar tais ocorridos, pois para a instituição religiosa, a difusão da fé católica é o eixo central do movimento religioso.

Com a descoberta, a devoção à cruz passou a ser símbolo de adoração em todo o mundo, e a Igreja Católica passou a estimular a criação de celebrações em que a cruz é o símbolo central de adoração. Mesmo após a reforma do Concílio do Vaticano II (1962-1965) em que a Festa da Invenção da Santa Cruz celebrada no dia 03 de maio foi retirada do calendário universal, sendo mantida apenas a celebração da Exaltação da Santa Cruz realizada em 14 de setembro, data em que foi consagrada a Basílica do Santo Sepulcro em Jerusalém.

A Festa da Invenção em Santa Cruz dos Milagres teve sua programação ampliada nos últimos anos, como tentativa de receber o maior número de fiéis, iniciando a programação no dia primeiro de maio e se estendendo até o dia da Invenção, dia 03 de maio, tendo em vista que a data nunca é alterada, mesmo em dias de semana, a programação foi ampliada para atender aos devotos que visitam apenas no feriado de primeiro de maio (dia do trabalhador), pois muitos de cidades próximas precisam retornar no mesmo dia para suas cidades.

Para o Reitor do Santuário, a tradição é mantida em todos os aspectos, inclusive a data, e não a compromete a realização da Festa. Muitos devotos que participam apenas um dia das celebrações, seguem um breve ritual de participar da missa, visitar a cidade, se benzer no Olho d’Água e no mesmo dia regressam a suas cidades de origem. Ao final das celebrações os padres também já se direcionam para a saída do Santuário, para aspergir os automóveis e desejar um retorno seguro aos devotos.

Em 2018, a programação iniciou bem cedo, no dia 01 de maio, as 06h da manhã em meio a fogos de artifício e carros de som a programação foi iniciada com uma procissão que partiu do sindicato dos trabalhadores rurais até a Igreja Matriz e foi acompanhada por bênçãos, cânticos e rezas em homenagem aos trabalhadores ali reunidos, muitos destes presentes, levavam consigo seus instrumentos de trabalho.

A procissão que percorreu algumas ruas da Cidade seguiu até o novo Santuário de Santa Cruz dos Milagres onde se juntou ao grupo de devotos que ali já começavam a chegar à Cidade, e após todo o ritual, realizaram um café partilhado, seguido da missa e bênçãos dos trabalhadores, dos instrumentos de trabalho e orações pelos desempregados.

Figura 12. Imagem da Procissão dos Trabalhadores em Santa Cruz dos Milagres

Fonte: Arquivo pessoal, 2018.

A cidade de Santa Cruz dos Milagres vai se redesenhando com a chegada dos devotos, os feirantes se organizam em frente ao Santuário, vendendo os mais diversos artigos religiosos e não religiosos, além de fornecer alimentação para os devotos.

A grande feira começa a se formar nas escadarias na lateral da Igreja Matriz, muitos destes feirantes do Ceará18 são os responsáveis pela produção dos artigos religiosos, de modo que não existe uma produção de artesanato local. Encontrou-se, também, poucos artigos relacionados diretamente com a cultura religiosa de Santa Cruz dos Milagres, recentemente só após a construção do novo Santuário que Igreja tem investido em uma logomarca, que possa divulgar as ações do Santuário e ser comercializada através da venda dos artigos religiosos.

Mas, na feira livre, em sua grande maioria, o que se observa são adaptações de artigos religiosos variados, que, no entanto, não deixam ser comercializados pelas múltiplas devoções aos diversos santos que os devotos possuem.

18 Também durante a pesquisa pude encontrar feirantes de outros estados como: Rio Grande do Norte e

Figura 13. Imagem dos artigos religiosos comercializados na Loja Paroquial

Fonte: Arquivo pessoal, 2018.

A tarde seguiu com uma vasta programação de acolhida aos romeiros e Celebração da Cruz na Igreja Matriz, durante o dia é possível acompanhar o crescimento do número de fiéis que chegam aos ônibus de excursões e se acomodam nas proximidades, em redes armadas por entre as árvores, e nas proximidades do ônibus.

As dependências externas do Santuário se tornam, então, uma grande casa de acolhimento, que os devotos colocam seus pertences, dormem em colchões no chão e realizam suas refeições, colocam suas cadeiras e conversam com seu grupo, enquanto lá dentro, as celebrações religiosas acontecem normalmente.

Durante a Festa da Invenção, também acontecia nas salas do Santuário uma exposição mariana organizada pelo pároco de Jaicós, cidade vizinha a Santa Cruz dos Milagres, a Exposição Mariana contava com 56 imagens de Maria nas suas denominações, e o que chamou atenção foi a presença de um pequeno grupo de devotos que visitavam a exposição rezando uma ave-maria para cada imagem presente. O sentimento penitencial é muito frequente nas romarias, pois mais do que apreciar, os devotos desejam rezar por cada santo.

Figura 14. Imagem da exposição Mariana

Fonte: Arquivo pessoal, 2018.

No dia 02 de maio, a programação continuou com missas, celebrações da Santa Cruz, e momentos de acolhidas para os romeiros que chegam a Cidade, os eventos ocorrem ora na Igreja Matriz, ora no Santuário, a programação é flexível, pois com a chegada de um maior número de fiéis algumas celebrações são transferidas para o Santuário, pela capacidade que o local possui em comportar e acolher melhor aqueles que chegam. Mesmo com o calor intenso, os fiéis transitam durante todo o dia entre os dois templos religiosos, percorrendo a feira, as barracas, o olho d’água e as margens do rio Nicolau.

Durante a tarde, ao acompanhar a celebração da Cruz no novo Santuário destaca-se o reitor em meio aos devotos, vestido de camisa de Santa Cruz, com chapéu de vaqueiro, chinela de couro, que sorrir discretamente, e se aproxima dizendo: “estou disfarçado de romeiro para saber o que eles estão achando da Festa”. Apesar das inúmeras dificuldades, a organização da Festa reconhece a importância de ouvir as necessidades dos devotos que chegam a Cidade.

Outra preocupação constante da Igreja é com o grande público de idosos que chegam para Festa, nos sermões os padres sempre relembram dos cuidados com a saúde e com a

segurança, alertando-os para tomar seus medicamentos e não transitarem sozinhos pela Cidade.

Durante as missas os padres também divulgam sobre as obras realizadas com o dinheiro da campanha “Romeiros de Santa Cruz”, ressaltando a importância das doações feitas e buscando cadastrar novos devotos para a campanha.

Figura 15. Logomarca da campanha dos romeiros

Fonte: Santuário de Santa Cruz dos Milagres, 2018.

O Novo Santuário passou a integrar essa nova lógica de mercado promovida pelos santuários, em que os devotos, se cadastram, recebem em casa o material do santuário, cartas, orações e um boleto em branco para realizarem suas doações para obras do Santuário. As obras estão relacionadas com empreendimentos de infraestrutura que proporcionam maior acolhimento, mas também, construções monumentais, como o cruzeiro e o campanário.

Ainda no segundo dia, a missa das 17h já contou com a participação do Arcebispo Dom Jacinto Furtado de Brito Sobrinho, padres das paróquias vizinhas e de um grande grupo de seminaristas. Conforme Steil (1996) também destacou em Bom Jesus da Lapa, o ritual da missa solene com os bispos e padres paramentados no altar, não é apenas uma representação da Igreja diante os devotos, ele serve sobretudo, para constituir e manifestar o poder do clero no santuário.

Logo após a missa, dar-se o início da preparação para o ritual da Invenção da Santa Cruz no dia seguinte (03 de maio), em conversa com o Reitor do Santuário, ele destacou a importância da preparação para a realização do ritual, “[...] mesmo que você não consiga vir para a preparação no dia 02 não deixe de rezar as 100 ave-marias da véspera, mesmo que seja em casa”.

Sequencialmente, às 19h toda a comunidade presente se organiza para a recitação das 100 ave-marias conforme o ritual e a oração simbolizando uma preparação e purificação para o ritual da Invenção.

Figura 16. Preparação para Invenção com a recitação das 100 ave-marias

Fonte: Arquivo pessoal, 2018.

Os grupos de religiosos entram em procissão, em grupos de 10 e com velas nas mãos formando uma grande cruz diante o altar, durante a recitação, destaca-se um grupo de ciclistas “Aventureiros da Fé” que vieram da cidade de Valença percorrendo mais de 100 km, para participar e celebrar a Festa da Invenção. Eles afirmam que já realizam esse circuito de fé há 23 anos, e todos os anos encontram-se fortalecidos pela fé para concluir todo o percurso, eles ainda contam com o carro de apoio durante todo o trajeto até Santa Cruz dos Milagres.

Neste período festivo é muito comum encontrar esses grupos de devotos organizados, eles realizam este ritual em grupo, utilizam o mesmo transporte e são identificados pela logomarca (Figura 17.) impressa nas camisas, e participam ativamente das celebrações.

Figura 17. Logomarca dos Aventureiros da Fé.

Fonte: Arquivo pessoal, 2018.

Durante toda a noite, tem adoração do Santíssimo na Igreja Matriz coordenado pelo grupo de seminaristas de Teresina, a intenção é possibilitar a acolhida aos grupos de romeiros que chegam durante toda a madrugada. Nas barracas o clima é festivo com muitas comidas e música, na Igreja os louvores e orações seguem por toda a noite. É uma noite festiva.

No dia da Invenção a Cidade é acordada logo cedo, como de costume, pelos fogos de artifício, Santa Cruz dos Milagres amanhece tomada pela sua essência festiva e de fé, é o seu momento de efervescência religiosa, cresceu o número de devotos, e feirantes que chegam durante a madrugada, e assim, o fluxo se torna intenso.

Antes do ritual da Invenção, aconteceu à inauguração do Campanário, uma estrutura construída com uma cruz inclinada de ferro, possuindo três sinos fundidos a bronze, cada sino foi associado a três elementos simbólicos típicos de Santa Cruz dos Milagres: a rocha, a cruz e

a água. Embora os sinos desafinassem revelando que a obra não conseguiu ser concluída no tempo previsto, o monumento teve a sua devida inauguração com as bênçãos do alto clero piauiense.

Figura 18. Benção solene do Campanário durante a Festa da Invenção

Fonte: Arquivo pessoal, 2018.

O Campanário revela essa preocupação da Igreja em construir obras monumentais com o objetivo de promover a centralidade exercida pela Igreja Católica nos espaços sagrados de Santa Cruz dos Milagres. O tradicional e o moderno se reinventam dentro dessa lógica de promoção dos espaços sagrados. O cruzeiro permanece como centro do sagrado, em que são depositados velas, ex-votos e orações, pelos devotos, que também acompanham encantados os novos monumentos serem erguidos na Cidade.

Figura 19. Campanário e o Cruzeiro de Santa Cruz dos Milagres

Fonte: Arquivo pessoal, 2018.

Em seguida, toda a comunidade presente seguiu para o Santuário para o ritual da Invenção, os Padres sempre enfatizam o respeito aos limites do corpo. Os bancos são afastados, para que ocorra um aquecimento para o ritual, com a realização de atividades aeróbicas de alongamento, o ritual de penitência, foi precedido de um momento de descontração. Após essa preparação física, o Bispo Dom Jacinto inicia oficialmente o exercício da Invenção, descrevendo forma sucinta o significado cada gesto, e em seguida realiza a oração penitencial:

Nos campos de Caifás, com o inimigo da Cruz encontrarás, arreda e afasta-te Satanás. Tu comigo não tens conta, deixa minha alma passar em paz! Porque no dia da invenção da Santa Cruz, cem vezes me ajoelhei, cem vezes o chão beijei, cem vezes me levantei, cem vezes me persignei, pelo sinal da Santa Cruz, livre-nos Deus Nosso Senhor, dos nossos inimigos, cem Ave Maria rezei, cem na véspera e cem no dia. Me recomendando a Deus e a Virgem Maria. Cem vezes o cão arreneguei: Arrenego de ti Satanás. Ave Maria [...]

Figura 20. Exercício da Invenção da Santa Cruz

Fonte: Arquivo pessoal, 2018.

A oração realizada após as ave-marias é de autoria desconhecida e tem origem popular. Este ritual está relacionado à espiritualidade do povo cristão que prevaleceu durante muitos séculos associada ao sentido da penitência corporal, buscando na Paixão de Cristo o seu paradigma. Era o sentido de expiação dos pecados pelo sofrimento de Jesus Cristo “pagando” pelos nossos pecados, e assim retirando o pecado do mundo. Além disso, Pe. Mendes destaca que a oração representa uma luta aberta contra o Demônio que escravizava o mundo justamente por este mesmo pecado,

Era certamente a ressonância da pregação missionária do tempo, voltada, sobretudo, para a mortificação dos sentidos, e uma viva consciência da ação do Demônio, pela tentação. E que ainda lembra a própria fórmula do Batismo, quando expressamente se faz renuncia ao Demônio e às suas seduções (Mendes [S.d], p. 26).

Os gestos realizados durante a oração são justificados por passagens bíblicas que buscam explicar e fazer compreender todo o ritual: o ajoelhar-se representa este sinal de adoração e respeito, e como forma de obediência até a morte; beijar o chão é outro sinal de humildade, lembrados pela máxima de Deus: “porque és pó, e pó te hás de tornar” (Gn 3, 19);

contra os inimigos e por fim arrenegar satanás como forma de resistir as suas tentações e permanecer firme na fé.

Logo após o exercício da Invenção foi celebrada uma missa, representava um momento de agradecimento pela penitência realizada. O sentimento que se observa no rosto dos fiéis era um misto de alegria e satisfação. Era o momento de retornar, as excursões começam a se organizar, os devotos fazem suas últimas compras na feira. Na Igreja Matriz continuam os louvores e adorações a Santa Cruz. Ao som da canção Bendito dos Romeiros os fiéis recebem as bênçãos: “[...] Sou, sou teu, Senhor, sou povo novo, retirante e lutador, Deus dos peregrinos, dos pequeninos, Jesus Cristo redentor”.