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Os estudos sobre as peregrinações e romarias

2.3 RELIGIÃO ENQUANTO INTINERÁRIO TURÍSTICO

2.3.1 Os estudos sobre as peregrinações e romarias

Os estudos sobre peregrinações, embora tenham sido realizados por etnógrafos, historiadores da Igreja e teólogos, desde o Século XIX, somente após meados do Século XX, particularmente, final da década de 1960, que estudiosos como Alphonse Dupront e Victor Turner, entre outros, iniciaram o debate teórico sobre o significado da peregrinação no âmbito acadêmico e em uma dimensão interdisciplinar.

De acordo com Calvelli (2006), que apresentou uma construção social do conceito de peregrinação, importantes autores identificaram a presença das peregrinações nas diversas culturas e sociedades e que estas foram realizadas por quase todas as religiões, desde a antiguidade até os dias atuais, como aponta Coleman e Elsner, no livro Pilgrimage: past and present in the world religions, para estes autores todas as religiões mundiais - islamismo, hinduísmo, budismo e judaísmo - realizam as peregrinações como rituais que expressam suas crenças e valores, contidos, na maioria das vezes, em seus livros sagrados, na história de vida de seus santos e heróis e, ainda, nos locais considerados sagrados. No Ocidente, o conceito foi influenciado pela Odisséia de Homero e remete ao “sentido de uma viagem cheia de dificuldades, marcada por sofrimentos e pelo desejo imenso de alcançar o ponto almejado”. (Coleman e Elsner, 1995, citado por Calvelli 2006, p. 24).

Em decorrência das transformações oriundas da modernidade que refletiu diretamente nas relações dos indivíduos com a religião, as peregrinações e romarias se apresentam como categorias que demarcam diferenças e posições dentro de um campo de disputas de sentidos e poder, que envolvem diversos atores políticos, sociais e pesquisadores que discutem esses eventos sociais. (Steil, 2003). Para este autor, que realiza uma pesquisa sobre a construção social dessas categorias de análise em diferentes contextos e tempos, são estabelecidos posicionamentos e relações particulares com a realidade e com os grupos que reconhecem essas práticas. Além disso,

Os usos que se fazem desse vocabulário específico denotam, portanto, filiações ideológicas, posições hierárquicas e visões de mundo diversificadas dentro de um campo heterogêneo de práticas sociais e crenças religiosas que compõem a sociedade local e o catolicismo brasileiro (Steil, 2003, p. 30).

A peregrinação está relacionada ao aparecimento do “outro”, do estrangeiro que percorre caminhos por terras desconhecidas, aquele que vem de outro lugar, e não pertence à sociedade. Enquanto construção social a peregrinação se refere às experiências históricas e contemporâneas de deslocamentos sazonais por motivos de devoção e culto.

Sobre as abordagens sócio antropológicas sobre peregrinações, Steil (2003) identificou três correntes de pesquisas: a funcionalista, fundamentada na perspectiva durkheimiana, a

performática, baseada no modelo de estrutura elaborado por Arnold Van Gennep (1986)

acerca dos rituais de passagem e reinterpretados, posteriormente, por Victor Turner (1974) e a terceira corrente, interpretativista, que surge a partir da publicação da coletânea Contesting the Sacred, organizada por Eade e Sallnow (1991), esta abordagem rompe com as correntes teóricas anteriores e analisam as peregrinações no âmbito da diversidade dos contextos históricos, culturais, religiosos, políticos, econômicos e sociais possibilitando o estudo de diferentes perspectivas e aprofundando questões fundamentais e contemporâneas relacionadas às relações sociais e a vida dos indivíduos modernos.

No paradigma funcionalista o fenômeno da peregrinação é enfatizado a partir da

coerência e integração cultural, baseado no ideal de um grande festival religioso como unificador do social e regenerador da moral do grupo, que foi proposto por Durkheim (1996) maior expoente dessa corrente, ao enfatizar que:

As representações coletivas são o produto de uma imensa cooperação que se estende não apenas no espaço, mas no tempo; para criá-las, uma multidão de espíritos diversos associou, misturou combinou suas idéias e seus sentimentos; longas séries de gerações nelas acumularam sua experiência e seu saber (Durkheim, 1996, p. XXIII).

Durkheim propõe uma concepção do sagrado a partir de uma realidade transcendente, universal e unificadora, nas quais as crenças e práticas religiosas são produtos das forças sociais que emergem de uma comunidade humana idealizada. O sagrado se expressa pelo “social” por meio de símbolos e rituais religiosos (Steil, 2003).

Steil (2003) também destaca que dentro da corrente funcionalista existem interpretações sobre as peregrinações como implicados na produção e manutenção de ideologias que legitimam a dominação e a opressão em contextos políticos, presentes na abordagem marxista. Essas perspectivas durkheimiana e marxista promoveram um reducionismo sociológico no campo das ciências sociais, que predominou até a década de 70.

Diferentemente da perspectiva adotada por Durkheim, vale destacar a interpretação funcionalista adotada por Mircea Eliade (2010), que concebe o sagrado como algo ímpar, que transcende o próprio social e só é acessível pela própria experiência religiosa. A experiência é considerada numinosa por que é provocada pela revelação de um aspecto de poder divino e o sagrado se manifesta sempre como uma realidade inteiramente diferente das realidades “naturais”. (Eliade, 2010).

Na obra, “O sagrado e profano: a essência das religiões”, Eliade (2010) vai propor a discussão sobre o sagrado e o profano, como duas formas de “ser” no Mundo, situações existenciais assumidas pelo homem, que dependem de diferentes posições que o homem conquistou no Cosmo:

[...] o homem religioso se esforça por manter o máximo de tempo possível num universo sagrado e, consequentemente, como se apresenta sua experiência total da vida em relação à experiência do homem privado de sentimento religioso, do homem que vive, ou deseja viver, num mundo dessacralizado (Eliade, 2010, p. 19).

Na peregrinação, é possível reconhecer esse espaço sagrado, que se diferencia do espaço profano, embora este esteja próximo, local onde o céu e a terra se encontram e o tempo penetra na eternidade, de um reino transcendente. Sobre essa perspectiva, Steil (2003) destaca que essa visão: “[...] tem contribuído para criar uma generalização redutora que desvia o olhar do observador da diversidade e especificidade que esses pontos podem incorporar” (Steil, 2003, p. 41).

O segundo paradigma é baseado nos estudos desenvolvidos por Victor Turner (2013), que rompe com a tradição funcionalista, e ampliou suas pesquisas sobre peregrinações inspirado nos rituais de passagem, desenvolvidos por Arnold Van Gennep nas sociedades primitivas. Turner tentou encontrar nas sociedades complexas as mesmas etapas identificadas por Gennep: separação, transição/liminaridade e reincorporação. Considerando que os peregrinos ao deixarem suas casas e comunidades entram num estado de liminaridade enquanto viajam para o lugar sagrado, retornam transformados para serem reincorporados a comunidade. (Steil, 2003).

Para Turner (2013, p. 13) esse estado de liminaridade: “[...] é a passagem entre status e estado cultural que foram cognoscitivamente definidos e logicamente articulados. Passagens liminares e “liminares” (pessoas em passagem) não estão aqui nem lá, são um grau intermediário.”. Esta liminaridade é tida como condição social passageira vivenciada por sujeitos temporariamente situados fora da estrutura social, dando origem ao que ele denomina de communitas, uma espécie de antiestrutura constituída pelos vínculos entre indivíduos ou grupos sociais que compartilham uma condição liminar em momentos especificamente ritualizados.

Sobre o conceito de communitas desenvolvido por Turner (2013, p. 13), representa um: “[...] relacionamento não estruturado que muitas vezes se desenvolve entre liminares. É

um relacionamento entre indivíduos concretos, históricos, idiossincrásicos. Esses indivíduos não são estão segmentos em funções e status, mas encaram-se como seres humanos totais”.

De acordo com Steil (2003), a teoria de Turner propõe estabelecer uma ponte entre as duas experiências do sagrado, que se apresenta dialeticamente conectadas: a primeira corresponde a uma estrutura social, em que predomina a experiência cotidiana e social do sagrado e a segunda, que transcende o social e se funda na radicalidade do indivíduo, o communitas (antiestrutura), no qual estabelece um contexto de universalismo transcultural, no qual o encontro com o sagrado restaura a pessoa na sua essência individual.

Para Turner (2013), a experiência da vida do indivíduo consiste em viver entre esses processos dialéticos: “A vida é um tipo de processo dialético que abrange a experiência sucessiva do alto e do baixo, de communitas e estrutura, homogeneidade e diferenciação, igualdade e desigualdade”. (Turner, 2013, p. 99).

De acordo com Steil (2003), os estudos de Turner ao enfatizarem um modelo universal de peregrinação, definido como a busca universal do sagrado, acabam apresentando um ideal de sociedade baseado na fraternidade e na igualdade radical e utópica que encontraria seu fundamento no sagrado.

Por fim o paradigma mais recente surge no campo de disputas de discursos e

sentidos, em que as peregrinações se apresentam nas sociedades modernas e complexas,

como arenas que competem diferentes discursos religiosos. De modo que, toda peregrinação estimula um campo variado de transições religiosas e inter-religiosas, culturais e interculturais, etc. integrando um sistema abrangente de trocas econômicas e políticas, que possibilita tanto para difundir novas ideias e práticas religiosas, como também consolidar a fé dominante. (Steil, 2003).

Para os autores que contribuem nos estudos dentro desta perspectiva, sobretudo, Eade e Sallnow (1991), retomam-se estudos anteriores sobre a relação entre turismo e peregrinação analisados por MacCannell, (1973; 1976), Turner (1974), Graburn (1978) e Cohen (1979), e propuseram romper com os paradigmas funcionalistas e turnerianos afirmando que as insuficiências do esquema de Turner exigir-nos, portanto, a olhar mais atentamente para qualquer discussão sobre as semelhanças entre peregrinação e turismo. Os estudos que, até então, associavam de forma imediata as peregrinações a evento e estrutura, os autores Eade e Sallnow (1991) buscaram direcionar seu olhar para a diversidade de contextos históricos, culturais, religiosos e sociais que são atualizados a cada evento, e as fronteiras entre passado e presente, tradições e modernidades se apresentaram porosas, ao mesmo tempo em que se afirmam (Steil, 2003).

Os autores supracitados destacam, ainda, que as tensões entre essas diferentes interpretações e as maneiras em que uma peregrinação pode ser constituída pode ser repleta de diferentes entendimentos, já que cada grupo tenta interpretar as ações e motivações dos outros com base em suas próprias convicções e discursos. O que predomina é o deslocamento entre as interpretações das estruturas e relações sociais para domínio das narrativas e discursos que são veiculados nos eventos por peregrinos de diferentes lugares e tradições.

São esses discursos variados, com seus múltiplos significados e entendimentos, seria, para esses autores, constitutiva do próprio culto da peregrinação, assim como os mútuos “mal-entendidos” que decorrem do modo como cada grupo interpreta as ações e os motivos dos outros em termos do seu próprio discurso específico (Eade & Sallnow, 1991, p. 05).

A multiplicidade de interpretações que se apresentam, muitas vezes, no mesmo lugar, se mostra nas sociedades contemporâneas, pluralistas e marcadas por uma alta mobilidade. Além disso, esses cultos possuem a capacidade de incorporar a diversidade, mais do que a unificação de discursos ou significados.

Esta perspectiva é tratada como pano de fundo para os estudos desenvolvidos, por Steil (1996), discutidos na sua obra “O Sertão das Romarias: um estudo antropológico sobre o Santuário de Bom Jesus da Lapa – Bahia”. Na romaria do Bom Jesus são analisados uma variedade de discursos, muitas vezes contraditórios e competitivos, anunciados por romeiros, moradores e dirigentes, além dos mútuos desentendimentos entre eles e as formas como cada um interpreta as ações e os motivos, fazem parte do culto (Steil, 1996).

Sobre a construção etimológica da categoria romaria, Steil (2003) vai identificar como características, os deslocamentos mais curtos que envolvem uma participação comunitária, combinando aspectos festivos e devocionais, dentro das práticas populares de um catolicismo tradicional. Outra característica associada as romarias seria um caráter tradicional em oposição ao moderno, no entanto, o autor aponta que essas discussões em torno do popular tradicional não corroboram para o contexto estudado das romarias, enquanto processos sociais mais abrangentes que contribuem para a formação de identidades locais e éticas. O autor expressa de forma clara esse posicionamento, sobretudo, na sua pesquisa desenvolvida sobre as romarias em Bom Jesus da Lapa:

[...] longe de se constituir numa sobrevivência do catolicismo popular tradicional, a romaria aparece, para usar uma expressão de Eade & Sallnow, como espécie de “vácuo religioso” capaz de acomodar a multiplicidade e a pluralidade das experiências

de vida trazidas para o santuário por romeiros, moradores e dirigentes clericais (Steil, 1996, p. 86).

Destaca-se também, sobre as romarias o seu caráter de experiência coletiva de deslocamentos, com forte traço institucional no local de destino e de partida, que necessitam de investimentos eclesiásticos e/ou de mediadores político-administrativos que lhes ofereça suporte necessário. (Steil, 2003).

Apesar das características elencadas sobre as romarias, o que vai prevalecer são suas múltiplas variáveis dentro do contexto social, cultural e político que se manifesta nas romarias e peregrinações, comportando múltiplos discursos. De forma que, a romaria representa “[...] uma espécie de espaço ritual capaz de acomodar sentidos e práticas diversas” (Steil, 1996, p. 71). Além de ritual a romaria classifica-se como um “ato performativo” que se configura pela própria experiência vivida com um propósito em si mesmo.