• Nenhum resultado encontrado

O cenário das relações entre os níveis de governo – a questão das autonomias

CAPÍTULO 3- MUDANÇA ESTRUTURAL E INSTITUCIONAL NA BOLÍVIA

3.4 O cenário das relações entre os níveis de governo – a questão das autonomias

Para entender a problemática que envolve a capacidade do governo de transitar entre esses distintos atores e, no nosso caso específico, entender como é desenhada a política de saúde no país, nos interessa discutir uma das mais importantes inovações do texto constitucional: a substituição do paradigma geopolítico do Estado Unitário por um novo Estado plurinacional. Essa mudança instituiu as autonomias indígena, municipal, departamental e regional. O Estado plurinacional pressupõe a convivência de autonomias administrativas e culturais. Ou seja, se a autonomia é de apenas um tipo, o Estado não é plurinacional. Nessa lógica é necessário também

admitir a possibilidade da existência de autonomias indígenas originárias extra-territoriais, principalmente quando se considera que os territórios podem ter uma população composta (SANTOS, 2007). Particularmente esse aspecto complexifica uma questão que já traz consigo um profundo legado: o reconhecimento da identidade indígena na Bolívia. Em parte, essas mudanças representam um aprofundamento da agenda de reformas implementadas durante os anos 1990 que promoveram algumas importantes inovações institucionais, como a municipalização do país por meio da instituição de eleições diretas e da autonomia financeira das municipalidades, e a criação dos territórios de origem que passaram a poder ser titulados aos povos indígenas para conferir a esses a garantia do controle de seus territórios ancestrais (FONTANA, 2012, p.13).

As reformas implementadas nos anos 1990 vieram em continuidade ao plano de choque neoliberal iniciado em 1986 no governo de Paz Estenssoro. O eixo ideológico da Nueva Política Economica (NEP) foi a retirada do Estado e a defesa do mercado como estabilizador da economia e promotor do crescimento. Nesse cenário as elites empresariais do Departamento de Santa Cruz e suas demandas de maior protagonismo sobre os assuntos territoriais se fortaleceram econômica, ideológica e politicamente. Na esfera ideológica, os princípios fundantes dos movimentos cívicos de defesa das autonomias foram garantidos e estimulados pela doutrina neoliberal. Esses passaram a defender a necessidade de criação de oportunidades e a possibilidade de mobilidade social, e o desenvolvimento do associativismo em torno do empreendimento, do conhecimento profissional e da cultura, ao invés de fazê-lo em torno dos sindicatos, partidos políticos, povos indígenas ancestrais e da conflitividade social. Essa ideologia apareceu como ordenadora e por isso, particularmente em Santa Cruz, a autonomia defendida pelo Comitê Cívico Pro Santa Cruz não foi apenas uma aspiração das associações empresariais, mas de toda a região, incluídas as classes médias e os trabalhadores. Esse viés ideológico do movimento permitiu que a região falasse ao país por meio de seus representantes cívicos, enquanto os partidos políticos estiveram organizados estritamente na arena nacional, distantes de suas bases e das demandas locais. Dessa forma, a luta pela descentralização foi empreendida desde o retorno da democracia, com ganhos reais como a Ley Orgánica de Municipalidades que convocou eleições municipais em todo o território nacional em 1985. No entanto, a aspiração era eleger também as autoridades departamentais, o governador e a assembleia departamental, além de obter autonomia administrativa e normativa, inclusive no âmbito tributário (BOTERO, 2015).

A busca de autonomia em relação ao governo central, bem como a defesa de reformas para a eleição de governadores, de referendos para aprovação das autonomias, e da criação de

estatutos autonômicos, se deram por considerar o governo central excessivamente centralizador. Havia também uma questão econômica: os Departamentos consideravam que a distribuição dos recursos entre eles era desigual, alguns por receberem menores recursos, outros por terem de redistribuir os seus. Seis deles não contavam com as altas rendas de que dispunham La Paz, Cochabamba e Santa Cruz, que acabavam por ser redistribuídas por meio do governo central. A demanda por autonomia, nesse sentido, era justificada pelo fato dos Departamentos com maiores recursos se verem limitados na utilização dos recursos produzidos em seu território, como o gás e a soja, dentre outros. Ou seja, buscavam a liberdade para manejá-los e administrar não apenas o que vinha do Tesouro General da Nación (TGN), mas também sobre os seus próprios recursos, por exemplo abrindo espaços a novos comércios internacionais não permitidos à época pelo governo central.

Os governos locais e departamentais questionavam a baixa presença do Estado no território nacional, percebida pela falta de investimentos nas diversas regiões. Somou-se a isso a queixa acerca dos escassos canais de participação democrática. Na tentativa de atingir essa demanda, entre 1982 e 1993 foram formulados 20 projetos de lei de descentralização. Em 1994 a reforma constitucional criou novas estruturas administrativas, com a delegação de tarefas e decisões ao nível departamental e a criação de governos municipais com funções normativas, executivas, administrativas e técnicas. Com isso foram transferidas competências do nível central do Estado aos 311 municípios existentes à época, cujas administrações foram designadas como governos locais autônomos. A autonomia significou, por um lado, a eleição do governo municipal e, por outro, o direito desse governo recolher alguns impostos e planejar a administração, especialmente nas áreas sociais (BOTERO, 2015; STRÖBELE-GREGOR, 1999). Em 1994 o presidente Sánchez de Lozada (1993-1997) promulgou a Ley de Participación Popular, que promovia a descentralização política para o município, complementada em 1995 pela Ley de Descentralización Administrativa que regia a descentralização administrativa até o Departamento. Dentre outros, a Ley de Participación Popular descentralizava aos municípios 20% da receita fiscal nacional, cuja alocação deveria ser definida nos respectivos estatutos autonômicos municipais. A Constituição definiu também os poderes e deveres de cada governo autônomo em relação aos recursos e, especificamente, em relação à saúde, moradia, abastecimento de água e saneamento, educação, transporte, dentre outros, e transferiu aos municípios a propriedade, a gestão e o dever de manutenção dos serviços de educação, saúde, irrigação, estradas, esportes, cultura, abastecimento de água e saneamento. As fronteiras dos municípios foram expandidas para incluir distritos e áreas rurais e foram criados novos municípios, totalizando 328 no país. Essas medidas representaram uma profunda

mudança. Antes da lei Ley de Participación Popular o governo local não existia na maior parte da Bolívia (FAGUET, 2013).

As análises da Ley de Participación Popular variam quanto à avaliação de seus efeitos. Algumas apontam para as significativas mudanças que trouxe, especificamente em relação ao incremento da participação das comunidades nos governos locais. Outras apontam para o fato de que promoveu a fragmentação social, facilitou a corrupção local e priorizou os investimentos sociais como na saúde e na educação, em detrimento dos investimentos produtivos necessários para superar a pobreza (CABRERA, 2011; FAGUET, 2013; FAGUET, 2009). Outras, ainda, avaliam que existiam problemas em relação à capacidade local e à insuficiência de recursos em contextos de grandes necessidades, embora reconheçam que houve um incremento na democracia e no empoderamento dos cidadãos bolivianos mais pobres. Para Faguet (2013) a descentralização levou a profundas mudanças no fluxo de recursos na Bolívia. Antes da reforma apenas 14% dos recursos do governo central eram compartilhados por 311 municípios, enquanto três cidades principais do país recebiam 86% desses recursos. Após a descentralização essa proporção foi revertida: 73% dos recursos eram distribuídos para os 311 municípios e 27% para as três principais cidades do país. O critério per capita resultou em uma mudança drástica do fluxo dos recursos dos centros mais ricos para os distritos rurais mais pobres. Em relação à alocação dos recursos, o investimento total em educação aumentou 547% (considerando os períodos 1991-1993 e 1994-1996); em saúde, 43%; e em abastecimento de água e saneamento aumentou 133%. Ou seja, a descentralização parece ter reorientado o investimento público.

Em seu estudo Faguet (2013) analisou a descentralização em relação ao incremento dos investimentos nas necessidades locais utilizando dados de períodos anteriores (1987-93) e de investimentos governamentais durante os primeiros 14 anos após a lei Ley de Participación Popular. Antes da reforma por ela promovida apenas 10% dos municípios recebiam investimentos em saúde. Após a descentralização a proporção de municípios que investiu na saúde aumentou em 85%. O autor sugere que os recursos foram distribuídos mais igualitariamente no país após a descentralização e que os investimentos em estrutura física e infraestrutura econômica foram realocados para os serviços primários e para a formação de capital humano. Alguns indicadores de saúde, tais como a proporção de crianças imuzidas e de atenção pre-natal ofertada, tiveram melhores resultados no período analisado.

Durante a campanha eleitoral de 2005 o discurso do MAS de controlar todos os recursos nacionais e redistribui-los principalmente aos legítimos donos, os indígenas, foi exacerbado. Isso reacendeu a demanda por autonomia, o que para os Departamentos significava a possibilidade de evitarem a expropriação e nacionalização dos recursos. Além disso, os

Departamentos com recolhimentos tributários acima de 60% sobre os recursos naturais não mais desejavam subvencionar aqueles mais pobres (como por exemplo Pando) nos quais apenas 0,03% da renda provinha do recolhimento desses impostos (TABORGA, 2009).

As autonomias foram instituídas com a aprovação da Constituição de 2009. Em 2010 a Ley Marco de Autonomias y Descentralización veio regular a organização territorial do país nos preceitos da Constituição de 2009, integrando o conceito de autonomia ao regime de descentralização municipal e departamental40. Estão definidos define quatro níveis de autonomia: departamental, regional, municipal e indígena. Enquanto os três primeiros representam uma clara hierarquia em relação à extensão territorial e ao nível de governo, o quarto é qualitativamente diferente em termos de organização social e política. A autonomia indígena permite que as comunidades, respeitando os direitos e garantias constitucionais, apliquem seus princípios e formas de auto-governo, defendam sua cultura e organizem sua economia.

A autonomia abrange a eleição direta dos representantes, a administração dos recursos econômicos, o exercício das faculdades legislativas locais e o uso dos poderes coercitivos em situações de descumprimento das normas legais. Alcançá-la demanda um procedimento que inclui a elaboração e aprovação de seu estatuto pela assembleia departamental ou municipal, a tramitação deste no Tribunal Constitucional Plurinacional e sua submissão a um referendo ratificatório. No caso das autonomias regionais é ainda necessária a elaboração de um plano regional de desenvolvimento consoante com o plano nacional.

No âmbito da saúde, a Ley Marco de Autonomias y Descentralización estabeleceu para o nível central do Estado as atribuições de elaboração da política nacional e das normas que regulam o funcionamento de todos os setores, âmbitos e práticas relacionados à saúde; de garantir o funcionamento do sistema único de saúde em todo o território nacional; de definir a política salarial, gerenciar os recursos e financiar os salários e demais benefícios dos trabalhadores do sistema único de saúde; e de garantir a recuperação da medicina tradicional no marco do sistema único de saúde. Os governos indígenas-originário-camponeses devem, dentre outras, desenvolver institutos de investigação e difusão do conhecimento e prática da medicina tradicional. Os governos departamentais devem, dentre outras funções, gerenciar a saúde em seu âmbito; proporcionar a infraestrutura necessária e a manutenção das instalações do nível terciário de atenção; planejar a estruturação das redes de saúde; e estabelecer mecanismos de cooperação e co-financiamento em coordenação com os governos municipais e

40 A Ley Marco de Autonomias y Descentralización revogou a Ley de Participación Popular de 1994 e a Ley de

indígenas-originário-camponeses. Os governos municipais, dentre outras funções, devem formular e executar o plano municipal de saúde; e implementar o sistema único de saúde em sua jurisdição. Já os governos municipais autônomos, devem implementar o sistema único de saúde, prover e gerenciar a infraestrutura e os equipamentos dos estabelecimentos da atenção primária e secundária em saúde e organizá-los em rede SAFCI (BOLÍVIA, 2010). Observa-se que a Ley Marco de Autonomias y Descentralización estabelece diretrizes para a organização do sistema de saúde, indo além do estabelecimento das atribuições dos diversos níveis de governo. Como discutiremos no capítulo 6 a Ley absorveu conteúdos que estiveram presentes no projeto de lei inicial do sistema único de saúde, que não chegou a ser consolidado.

A Ley ainda estabece que o alcance das atribuições é mínimo e orientador e deve ser ampliado e desenvolvido pelos instrumentos legais de cada setor, resguardando os limites ou restrições constitucionais. Fixa como atribuição do nível central do Estado a definição da política de saúde e a gestão do sistema de saúde, o que possibilita a esse nível do governo delimitar as competências dos entes autônomos. Portanto, ao mesmo tempo em que amplia sem qualquer limite ou restrição as possibilidades dos entes autônomos assumirem atribuições em relação à saúde, resguarda como exclusiva do nível central do Estado a definição daquilo que compõe a política de saúde.

As avaliações da Ley Marco de Autonomias y Descentralización tendem a ser cuidadosas, dado o curto tempo de sua implantação. No entanto, algumas aproximações entendem que a implementação formal das autonomias na realidade as diminui e reforçam a centralização. Essas análises também ressaltam as fortes tendências centralizadoras do governo do MAS, que transpareceram em vários artigos dessa lei e da Constituição de 2009, contradizendo e minando a real autonomia que propagaram (FAGUET, 2013). Um dos pontos de críticas se refere aos desequilíbrios fiscais horizontais que podem originar, considerando a tendência de diminuição dos recursos próprios dos governos subnacionais frente ao aumento de suas atribuições. Isso os deixaria dependentes dos recursos e prioridades do governo central. Para Faguet (2013) questões dessa natureza refletem a visão de que a autonomia é mais benéfica aos governos subnacionais no âmbito político, no qual pode promover a accountability, do que no âmbito fiscal, que pode levar à insustentabilidade de seus projetos. Ou seja, o regime de autonomias previsto na legislação claramente pretende que os governos sejam responsáveis pelos seus governados, promovendo canais eleitorais e não-eleitorais de participação, enquanto deixa muita discricionariedade para o nível central do governo em termos da alocação e das regras de transferência fiscal.

Essa análise é também compartilhada por Telleria (2016), cuja avaliação é que o governo central transfere uma série de responsabilidades aos governos subnacionais e esses são colocados como meros administradores ou gerentes com a tarefa de cobrir financeiramente seu custo. No entanto, as atribuições e competências delegadas para regulamentar e legislar as matérias não os permite desempenhar essas responsabilidades na sua plenitude. Ou seja, os governos subnacionais tornam-se co-financiadores das políticas, contudo sem poder decisório sobre elas. A saúde é uma das políticas que se incluem nessa condição, por exemplo quando examinamos a determinação da Constituição de 2009 (artigo 299) de transferir aos níveis subnacionais as competências de gestão sem definir a fonte dos recursos para esse exercício (TELLERIA, 2016, p.350). Trata-se novamente da distinção que destacamos nessa tese entre a autonomia para tomar decisões (policy decision making) e a atribuição formal de responsabilidades executoras (policy making), e seu poder explicativo para a coordenação central das políticas públicas (ARRETCHE, 2012). Seria de se esperar, como argumentamos, uma maior coordenação do sistema de saúde por parte do governo central por meio do controle dos recursos destinados aos governos subnacionais e de sua aplicação. Por conseguinte, um sistema de saúde menos fragmentado. Mas, também não é isso que observamos na Bolívia. Voltamos à hipótese que apresentamos no capítulo 1 dessa tese argumentado que esse desenho institucional diminui as capacidades dos governos subnacionais para se articularem, em que pese o fato da Ley Marco de Autonomias y Descentralización ter estabelecido os mecanismos de coordenação verticais e horizontais das políticas nos dez eixos de articulação que se conformaram na Bolívia.