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CAPÍTULO 4- SISTEMAS DE SAÚDE NA AMÉRICA LATINA

4.2.1 Classificando sistemas de saúde

Destacamos nesse trabalho que a organização e o desenvolvimento dos sistemas de saúde estiveram condicionadas tanto pelo formato assumido pelos regimes de bem-estar construídos na América Latina quanto pelas concepções da saúde difundidas no mundo, condicionadas pelo contexto institucional de cada país. Assim sendo, as tipologias que vêm categorizar os sistemas de saúde são tipos ideais construídos a partir de dimensões consideradas essenciais, entendendo que essas dimensões vão responder a algum paradigma ou a diferentes necessidades de explicação do fenômeno social, no caso a saúde. Ao estabelecer tipologias “a análise é deslocada para além da especificidade dos casos individuais, no sentido de explicações

mais generalizáveis” (tradução livre de BURAU e BLANK, 2003). Assumimos o entendimento de que os sistemas de saúde são constituídos pelas

relações políticas, econômicas e institucionais responsáveis pela condução dos processos relacionados à saúde de uma população, que se concretizam em organizações, regras e serviços que visam alcançar resultados condizentes com a percepção de saúde prevalente na sociedade (LOBATO e GIOVANELLA, 2008, p.107).

Antes de trazer as tipologias dos sistemas de saúde, discutimos três questões levantadas pelas críticas à validade de seu uso para classifica-los e ao fato dessas tipologias constituírem um meio eficaz para explicar a política de saúde. A primeira questão refere-se à vinculação da política de saúde a contextos nacionais específicos e à importância das diferenças nesses contextos. Essa crítica considera que o vínculo ao contexto nacional frequentemente é mais forte e complexo do que sugerem as tipologias dos sistemas de saúde e envolve fatores demográficos, valores culturais e sociais, sistemas legal e político, estrutura social e expectativas. No extremo, o contexto sugere que as diferenças entre os países são muito mais significantes e numerosas do que as tipologias conseguem abranger. As diferenças entre os países podem estar escondidas atrás de políticas de saúde que parecem similares50 (BURAU e

BLANK, 2003).

A segunda questão é a tese da convergência: a política de saúde tenderia a ficar similar ao longo do tempo, entre contextos nacionais diversos. Isso estaria relacionado a processos de aprendizagem entre os países, estimulados pela ação de organismos internacionais que conduzem a uma convergência ideacional em relação ao formato dos problemas, das políticas e do suporte intelectual para as soluções. As reformas dos sistemas de saúde teriam levado à emergência de um contexto ou paradigma universal para o financiamento, a organização e o gerenciamento dos sistemas, que atravessa a linha ideológica (público/privado) e o arcabouço institucional (mercado/planejamento centralizado), combinando princípios de financiamento público com competição de mercado aplicados à organização e ao gerenciamento do gasto e da prestação de serviços (BURAU e BLANK, 2003). Além de a globalização ter provocado a difusão internacional de políticas, desafios similares como as forças do envelhecimento da população, do declínio econômico e da maturação dos regimes de bem-estar continuariam a pressionar os sistemas de saúde, provocando respostas similares (BECKFIELD et al, 2013). Essa tese, contudo, pode ser criticada se consideramos que a convergência está condicionada

50 Por exemplo, o contrato público é um instrumento típico dos sistemas de seguro social e uma inovação recente

nos sistemas nacionais de saúde. Nos seguros sociais a função do contrato está associada aos fundos não estatais vinculados em um complexo sistema de auto-administração, típico da governança descentralizada da saúde; nos sistemas universais a responsabilidades da contratação é das autoridades estatais, o que possibilita a integração dentro do sistema (BURAU e BLANK, 2003).

pela trajetória, pelos pontos de veto, pela opinião pública e pela mobilização dos grupos de interesse em cada contexto nacional e, se existe, é muito lenta (GRIGNON, 2012). Em uma análise mais moderada a tese da convergência implicaria na imagem de duas linhas que caminham paralelas, podendo separar-se ou juntar-se. Por um lado, cada sistema de saúde é único, dado ser o resultado da história de cada país. Por outro, os serviços de saúde recebem e incorporam influências universais tais como o enfoque científico da doença e da medicina, a aceleração do avanço tecnológico, a crescente especialização do campo médico (BUSS e LABRA, 1995; MILLS, 2014).

A terceira questão colocada na crítica ao uso de tipologias trata da complexidade da política de saúde, sob dois aspectos: os sistemas de saúde são altamente diversificados em suas funções, considerando a necessidade de coordenar e executar o financiamento, a regulação e a prestação de serviços de saúde; e o fato de que muitos aspectos da política de saúde estão frequentemente à margem dos sistemas e necessitam que sejam consideradas outras dimensões, tais como o saneamento básico, a educação, a alimentação, moradia, dentre outras (BURAU e BLANK, 2003). Nesse sentido, a análise dos sistemas de saúde depende daquela do contexto mais amplo da proteção social no país.

Entendemos que os sistemas de saúde latino-americanos se constituíram dentro do contexto mais amplo da proteção social na região, condicionados pelas respectivas trajetórias nacionais. Pela especificidade do campo da saúde, a definição da política e a organização desses sistemas respondem também às concepções de saúde dominante em determinada época e aos avanços tecnológicos que as acompanham. Podemos assumir uma convergência da política de saúde decorrentes desses aspectos – concepções prevalentes e avanços tecnológicos – mas a complexidade dos contextos de cada país, bem como a influência de outros campos de políticas sociais (educação, moradia, alimentação) nos resultados em saúde da população condicionam a trajetória desses sistemas. Assumimos então que as classificações são tipos ideais, recursos explicativos que permitem a identificação das características que distinguem esses sistemas e a sua natureza, bem como permitem também verificar sua variação em relação ao tipo ideal. Ao trazer a discussão acerca das tipologias construídas para os sistemas de saúde na América Latina nos interessa extrair os elementos que melhor se adequem aos objetivos aqui propostos, quais sejam, analisar as mudanças na política de saúde na Bolívia no sentido da construção de um sistema de saúde mais abrangente e inclusivo.

A tipologia clássica construída a partir dos regimes de bem-estar nos países desenvolvidos considera três tipos ideais de sistemas de saúde: “serviço nacional de saúde” (lógica beveredgiana), com cobertura universal, financiamento por receitas gerais, público ou

com controle público da prestação de serviços; “seguro social” (lógica bismarkiana), cuja cobertura existe em função de um sistema de previdência social, o financiamento se dá por contribuições de empregados e empregadores por meio de fundos não lucrativos e a prestação de serviços é pública ou privada; e o “seguro privado”, financiado por contribuições individuais ou de empregadores e com prestação privada de serviços. Os países que representam essa tipologia clássica são Inglaterra, com um serviço nacional de saúde; Alemanha, com o seguro social; e Estados Unidos, com o seguro privado.

De forma geral as classificações que derivaram dessa tipologia incorporam as dimensões do financiamento – público ou privado –, da prestação de serviços de assistência à saúde – estatal ou privada –, e da regulação sobre as duas dimensões anteriores, partindo das lógicas beveredgiana ou bismarkiana. Ou seja, os sistemas se aproximam mais de uma ou outra lógica à medida em que o controle dessas dimensões está nas mãos do Estado ou do mercado. Moran (2000) traz o entendimento de que Estado e mercado se entrelaçam nessas três arenas, mas que os Estados podem e deve intervir nelas e o fazem de diferentes formas.

Com o foco na prestação de serviços de saúde e no acesso aos prestadores, Wendt et al (2009) combinaram as dimensões do financiamento, da prestação de serviços e da regulação em relação ao envolvimento do Estado, do mercado e dos atores não-governamentais, identificando diferenças entre os países e mudanças ao longo do tempo em relação ao papel desses atores. A partir dessas dimensões e de suas variações foram delineados 27 tipos distintos de sistemas de saúde, dentre eles três tipos ideais ou “puros” que se aproximam do serviço nacional de saúde, do seguro social e do seguro privado. Em cada uma dessas três tipologias emergem seis combinações de tipo mistos nos quais é possível diferenciar a presença de duas das três dimensões, que ainda se aproximam do tipo ideal pelo fato de predominar um conjunto particular de atores ou instituições. Por exemplo, um tipo misto combinaria o financiamento e a regulação estatais e a prestação de serviços privada, ou seja, com predominância do Estado; noutro, o financiamento e a prestação de serviços se dariam pelo setor privado e a regulação seria estatal, com predominância, portanto, do setor privado51.

O conceito trazido nessa tipologia é útil na análise de mudanças nos sistemas de saúde. A mudança mais extrema seria, por exemplo, quando um tipo estatal se desenvolve para um tipo privado. Esse tipo de mudança resulta em um sistema inteiramente novo e foi chamada de

51 Nem todas as 27 modalidades são factíveis na prática. Por exemplo, é improvável existir regulação privada em

conjunção com o financiamento e a prestação de serviços estatais (WENDT et al, 2009; MARMOR e WENDT, 2012).

“mudança no sistema” 52, esperada apenas em condições excepcionais nas quais ocorrem

mudanças drásticas nas políticas, com alta adesão pública. Retomando o arcabouço teórico discutido no capítulo 1, esta seria uma mudança institucional por deslocamento (displacement), que ocorre quando os arranjos institucionais existentes são substituídos por lógicas alternativas. Mais comum, um segundo tipo de mudança se manifesta em uma das dimensões sem culminar em uma grande mudança no sistema: trata-se de uma “mudança interna no sistema” e pode acontecer, por exemplo, quando a prestação de serviços se desloca do setor público para o privado, permanecendo o financiamento e a regulação nas mãos do Estado. Nessas circunstâncias o sistema tem uma alteração significante, mas permanece predominantemente estatal, podendo configurar uma mudança institucional do tipo layering, pela qual os arranjos existentes são alterados por novas regras. Uma terceira forma é a “mudança interna de nível”, na qual acontece uma alteração dentro de uma ou mais dimensões sem que se alterem as características do sistema. Por exemplo, no caso de um sistema privado puro podem ser introduzidas iniciativas públicas para alcançar a cobertura da população em situação de pobreza, de forma que se perceba maior presença do Estado. Entretanto, a menos que a programação pública tenha alcance suficiente para gerar uma mudança no formato do financiamento, essa dimensão permanece predominantemente privada. Esse tipo de mudança não ultrapassa o nível sub-dimensional, mas reflete um desenvolvimento significante dentro do sistema de saúde tanto por ser a forma mais provável de ser observada, principalmente em curtos períodos de tempo, quanto pelo fato de, apesar de modesta, poder ser precursora de mudanças mais amplas. Assim, a capacidade de identificar e traçar mudanças sutis dentro de uma dimensão pode servir de degrau para explicações mais amplas do desenvolvimento dos sistemas de saúde (WENDT et al, 2009; MARMOR e WENDT, 2012). Nesse caso, podemos estar diante de uma mudança institucional do tipo conversion, pela qual as instituições são redirecionadas a novos objetivos ou funções, ou ainda por uma mudança tipo layering que a partir da inclusão de novas regras pode favorecer grandes transformações no longo prazo.

Em um estudo posterior Wendt (2009) criticou as tipologias que se pautam em amplos princípios de organização e financiamento dos sistemas por não serem suficientes para sua compreensão. Considerando que esses sistemas têm a função de assistir às necessidades em saúde, as comparações deveriam se concentrar no acesso da população aos serviços de saúde e abordar de forma qualitativa as dimensões do financiamento, prestação de serviços e regulação. A tipologia que construiu pautada nesse argumento pretendeu ir além das análises comparativas

52 Aqui os autores referem-se a Peter Hall em “Policy Paradigms, Social Learning, and the State: The Case of

anteriores, mostrando como o acesso à assistência está relacionado aos níveis de gasto, ao mix público-privado de financiamento e à densidade de prestadores de serviços. As dimensões privilegiadas foram o gasto em saúde (e não apenas o financiamento), o mix público-privado de financiamento, a privatização do risco, o direito à saúde, a forma de vinculação dos profissionais e o acesso aos prestadores de serviços (barreiras geográficas, culturais, sócio- econômicas). Essa proposição busca aprofundar a avaliação do acesso dos usuários ao sistema mostrando como ele se relaciona aos níveis de gasto, ao mix público-privado de financiamento e à densidade de prestadores de serviços. Portanto, além de tratar os tradicionais indicadores de financiamento e gasto, essenciais nessas análises, busca analisar a prestação de serviços com foco em seus efeitos na utilização e nos resultados em saúde.

É possível observar que os estudos vão buscando transcender as dimensões estáticas do financiamento, da cobertura e da prestação de serviços na direção de uma análise de como essas dimensões se inter-relacionam, para se aproximar melhor dos tipos reais. Vêm sendo também incorporados às análises conceitos que aproximam a proteção à saúde aos direitos cidadãos (como a garantia do acesso às ações e serviços, para além da cobertura dos sistemas) e o papel do Estado nessa garantia. É com esse olhar que prosseguimos para a discussão dos sistemas de saúde na América Latina e para a delimitação das dimensões por meio das quais analisaremos o sistema de saúde e as reformas na política de saúde boliviana.