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Reformas em políticas vistas como mudança institucional

CAPÍTULO 1 – INSTITUIÇÕES E POLÍTICA COMO DETERMINANTES DE

1.1 Reformas em políticas vistas como mudança institucional

Quando há mudança de governo as expectativas da opinião pública ocorrem em função das promessas de campanha que, por sua vez, estão baseadas em um projeto político apresentado. Um governo de esquerda como o do MAS, tendo ganhado com uma maioria expressiva (53,72% dos votos válidos nas eleições presidenciais de 2005), entrando em um contexto que carrega o legado de políticas neoliberais, como veremos, traz consigo expectativas de reformas que podem ser consideradas mudanças institucionais. Entendemos a mudança institucional como o processo por meio do qual os arranjos institucionais anteriores são

substituídos por um novo conjunto de regras e procedimentos. Por sua vez, assumimos por reformas as mudanças que afetam os princípios, as estruturas e as “regras duras” da política (DRAIBE, 2003). No caso das reformas da política de saúde, são entendidas como as mudanças estruturais que alteram as concepções de saúde e doença, os princípios organizativos dos sistemas de saúde e o papel do Estado, do setor privado e das organizações da sociedade que interagem nesse campo (ALMEIDA, 2005; 2008). Assumimos, portanto, esse conceito “forte” de reforma (DRAIBE, 2003:67), mas também entendemos que as reformas podem ser parciais, afetando parte dos princípios e da institucionalidade da política de saúde.

Uma política pública, como a política de saúde, envolve organizações, tanto para sua formulação quanto para sua operacionalização, e surge a partir da articulação de um conjunto de instituições com objetivos a serem alcançados, buscados por meio da definição de processos e de formas de desempenhar as funções dessas instituições a partir de um conjunto de regras e procedimentos. Assumindo que essa política pública envolve e se constitui a partir da articulação de um conjunto de instituições, assumimos também que suas etapas de implementação, e mesmo os processos para sua manutenção, influenciam os resultados, dado que incorporam elementos capazes de condicionar o comportamento dos atores políticos. Isso considerado, podemos dizer que o processo de implementação de uma política pública constitui um momento de mudança institucional, que representará a superação ou a substituição de instituições anteriormente existentes, implicando em novas regras de comportamento para os atores nelas envolvidos. E essas novas regras e procedimentos vão gerar novas oportunidades e constrangimentos que terão impacto no comportamento dos atores envolvidos. Assim entendido, assumimos aqui a literatura que trata da mudança institucional para analisar a política de saúde na Bolívia no governo do MAS.

Ao considerar que as instituições constituem as regras do jogo, influenciando a alocação de recursos e restringindo futuras estratégias políticas alternativas, trazemos a discussão da persistência das instituições em decorrência, por um lado, da retroalimentação da própria política e, por outro lado, da geração de um funcionamento auto-referido, existente em qualquer processo de desenvolvimento institucional (PIERSON, 2000). A compreensão da persistência das instituições está estreitamente vinculada ao conceito de increasing returns effects que alude, basicamente, à reprodução institucional, ou seja, àqueles mecanismos que reforçam seu funcionamento. Entre eles, consideramos o fato de que os custos para a criação e consolidação de uma política pública como a de saúde são relevantes a ponto de tornar complicado substituí- la. Isso que dizer que, com o tempo, os atores que nela interagem terão gerado e aprendido vários procedimentos e fortalecido determinadas relações que tornarão mais altos os custos para

a implementação de reformas radicais (learning effects, efeitos da aprendizagem). Por sua vez, considerando que as instituições e os atores se relacionam entre si, qualquer mudança que ocorra em seu interior altera as relações com o entorno. A dificuldade de adaptação desse entorno ao novo cenário aumenta os custos da mudança e de reformas.

Assim, trazemos também o conceito do efeito lock-in, que alude às inércias próprias de um caminho adotado e à dificuldade dos atores saírem desse caminho. Como veremos na análise da política de saúde na Bolívia, a constituição do sistema de proteção social –especificamente, do subsistema do seguro social –, com base na vinculação ao mercado formal de trabalho tornou os atores nele envolvidos resistentes às reformas que propõem um sistema único de saúde. Essa resistência pode estar associada ao fato de perceberem ameaças à abrangência e à qualidade dos benefícios dos quais usufruem.

Ao considerarmos que os elementos acima elencados levam à estabilidade e à continuidade das políticas e das instituições a elas referidas, temos que a mudança estará condicionada à ocorrência de choques exógenos capazes de romper essa estabilidade (critical junctures). Nesses momentos são produzidas decisões que condicionam o desenvolvimento posterior das instituições. Contudo, essa concepção da persistência das instituições, rompida apenas na presença de conjunturas críticas, é criticada pelo fato de não considerar etapas que potencialmente possam produzir transformações (MARCH e OLSEN, 2005). Ou seja, podem ocorrer pressões internas por mudanças, frutos das lacunas entre o ideal projetado e a realidade prática das instituições e das políticas. Ou, ainda, as mudanças podem ocorrer por meio da inclusão de normas necessárias à adaptação das instituições; pela realocação de recursos em setores específicos, impactando a capacidade de resposta às regras e normas; ou serem geradas por diferentes interpretações e formas de implementação das regras e das normas em uma rotina. Nesse sentido, não se caracterizam rupturas institucionais drásticas, mas processos adaptativos e incrementais.

De toda forma, o estímulo imediato para as mudanças em conjunturas críticas é uma vulnerabilidade no status quo, ou seja, a mudança viria para atender a alguma necessidade de um sistema que se encontra em crise (existe o “espaço” para a mudança). Ao assumirmos o estímulo para a mudança a partir dessa vulnerabilidade é possível questionar sua ocorrência apenas como produto das conjunturas críticas, ou de contextos excepcionais como crises ou revoluções (MAHONEY, s/d). Assim, um conceito mais amplo dos momentos considerados válidos para a introdução de mudanças substanciais nas instituições traz a noção de “janelas de oportunidade”, que alteram a estabilidade sem constituir uma ruptura drástica no sistema (KINGDON, 1995 apud GONZÁLEZ, 2013). Incluem-se aqui reformas constitucionais,

mudanças ideológicas no governo após vários anos de hegemonia partidária, amplos pactos sociais, ou maiorias parlamentares, que podem dar oportunidade a importantes inovações (ou retrocessos) nas políticas públicas.

O conceito de janela de oportunidade é de especial interesse nessa tese. Consideramos que a ascensão do MAS ao governo da Bolívia abriu uma janela de oportunidade para a introdução de mudanças no sentido da melhoria das condições de vida da população e, em especial, da definição de uma política de saúde mais abrangente e inclusiva. Justificamos esse argumento pelo fato de a ascensão de um governo de esquerda no país ter se dado 23 anos após o retorno à democracia, em 1982, e após os subsequentes governos neoliberais ocorridos entre 1985 e 2005, bem como pela premissa assumida nessa tese de que a entrada de um novo governo, ideologicamente diverso daqueles anteriores, é um elemento que cria expectativas de mudanças, de reformas.

Além disso, defendemos de que ir além da lógica dos retornos positivos (increasing returns effects) e das conjunturas críticas como mecanismos de continuidade e de mudança nas instituições e nas políticas, e pensar nos realinhamentos e na incorporação de novos atores, nos permite analisar as direções nas quais essas instituições e políticas são transformadas. É essa linha analítica que nos propomos a seguir. Assumindo que a reprodução das instituições e das políticas não é automática, é mais provável, em alguns casos, que a necessidade de adaptação a ondas de inovação inspire revisões ao invés de enraizar os arranjos existentes. Ainda, as conjunturas críticas não necessariamente desmantelam as instituições existentes, mas podem, em parte, recalibrá-las (THELEN, 2004). A proposição analítica que traz esse entendimento é de que as instituições contêm em si mesmas as possibilidades de mudança, estando estabilidade e mudança interligadas, variando em função de tensões resultantes da correlação de forças entre atores. A estabilidade é também, em parte, função da ação e da mobilização, e as instituições estão vulneráveis à mudança não apenas nos momentos de crises, mas durante toda sua existência. Pressupomos, portanto, que o realinhamento das coalizões políticas, como ocorrido na Bolívia, pode permitir mudanças e reformas incrementais (THELEN, 2004; GÓMEZ, A., 2015).

Da mesma forma, assumimos o questionamento do automatismo da reprodução institucional, que concebe os ajustes sempre no sentido da adaptação dos atores às instituições predominantes e para a manutenção do status quo, entendendo que as instituições têm grande influência sobre as estratégias, cálculos e interações entre os atores, mas são objeto de contínua contestação, e que mudanças nas coalizões políticas sob as quais se apoiam podem direcionar mudanças em seu formato e em suas funções. Ou seja, o desenvolvimento e a reprodução

institucional refletem a luta entre os atores para estabelecer regras que levem os resultados em direção ao equilíbrio mais favorável a eles (THELEN, 2004, p.32). Essa argumentação se adequa à proposta desse estudo, considerando, mais uma vez, que o realinhamento das coalizões políticas na Bolívia tem a capacidade de produzir uma alteração na distribuição de recursos entre os atores e, consequentemente, alterar a configuração das políticas e das instituições.

Assumimos, portanto, que existem limites nos modelos que estabelecem uma forte separação entre a estabilidade e a mudança institucional e que concebem essa última como fruto preponderantemente de forças exógenas. E, ao considerar que os elementos de continuidade e mudança estão interligados, destacamos também a necessidade de evitar esquemas conceituais que sustentem apenas a mudança incremental, resultando na continuidade por meio de adaptação, ou aqueles que sustentam a mudança por ruptura das instituições, resultando em descontinuidade. Uma melhor análise considera que os processos de mudanças institucionais podem ser abruptos ou incrementais, bem como resultar em mudanças contínuas ou descontínuas. Como estamos tratando aqui os processos de reformas em políticas como mudanças institucionais, podemos também distinguir processos de reformas abruptos ou incrementais, que vão resultar em mudanças contínuas ou descontínuas nessas políticas (Quadro 1).

Quadro 1- Tipos de reforma de políticas, em função dos processos e dos resultados implementados.

Resultado das mudanças implementadas

Continuidade Descontinuidade

Processo de reforma

Incremental

Reprodução por adaptação Transformação gradual

Abrupto

Sobrevivência e retorno Quebra e substituição

Fonte: Adaptado de Streeck e Thelen, 2005:9.

A reforma nas políticas que resulta em sua descontinuidade se dá de forma abrupta, ou seja, uma substituição radical de suas instituições, como no conceito “forte” que trazemos de reformas da política de saúde, entendidas como mudanças estruturais que alteram as concepções de saúde e doença, os princípios organizativos dos sistemas de saúde e o papel dos atores que interagem nesse campo. Uma reforma que resulta na continuidade das políticas se dá de forma incremental, por adaptação às novas regras. Contudo, existe também a possibilidade de continuidade apesar de um processo de reforma abrupta, quando as instituições sobrevivem a

esse processo, bem como processos de reforma incremental que vão se dando ao longo do tempo e resultam em descontinuidade das instituições que sustentam as políticas. Aqui se encaixam as reformas parciais, ou por adaptação, que afetam parte dos princípios e da institucionalidade da política de saúde.

A mudança incremental ocorre em função das lacunas existentes entre a interpretação e a execução das regras e normas, que abrem espaços para que os atores incidam sobre os resultados das instituições e da política. Mas, sobretudo, essa mudança é impulsionada pela distribuição dos recursos de poder entre os atores, que permite que eles direcionem a interpretação e a execução dessas regras e normas. Quando consideramos que as diferenças no balanço de poder ocorrem não somente no interior das instituições, mas que a distribuição de recursos em um conjunto de instituições pode afetar os resultados distributivos em outras, a proposta na análise das mudanças é olhar os efeitos combinados de diversas instituições e processos (MAHONEY e THELEN, 2010).

A partir das condições que permitem as mudanças institucionais podemos identificar quatro mecanismos pelos quais ocorrem. Um primeiro mecanismo, o deslocamento (displacement), ocorre, de forma abrupta ou não, quando novos modelos emergem e se difundem, desafiando a existência de formas e práticas já tomadas como certas. Os arranjos institucionais, por meio da ativação de lógicas alternativas de comportamento, são removidos e substituídos. Ou seja, a mudança não ocorre por uma revisão explícita ou pela complementação dos arranjos existentes, mas pela destruição ativa de uma configuração institucional (STREEK e THELEN, 2005; GÓMEZ, 2015; MAHONEY, s/d). Os processos de mudança por deslocamento são identificados quando ocorrem alterações na distribuição de poder entre diversos grupos sociais e esses novos atores consideram os arranjos existentes inadequados, substituindo-os por formas institucionais alternativas. Quanto maior a quantidade dos atores que rejeitam os velhos arranjos, maior a probabilidade de ocorrer essa forma de mudança. Sob a concepção que adotamos nessa tese, esperamos que a reforma na política de saúde na Bolívia tenha esse formato. Ou seja, considerando o entendimento de que o sistema de saúde deve ser abrangente e inclusivo e que na Bolívia esse é segmentado e fragmentado, com a exclusão de grande parcela da população, a mudança que esperamos é a substituição dos velhos arranjos institucionais por outros, alternativos, que conformem uma política de saúde inclusiva e abrangente. Consideramos que existem lacunas nas regras e normas dessa política, mas, como é a distribuição de poder entre os diversos atores nesse setor? Quais atores rejeitam o arranjo tradicional? Qual o poder de veto dos atores que defendem o status quo?

O segundo mecanismo, a mudança por camadas (layering), aplica-se a momentos nos quais novas regras são adicionadas àquelas já existentes e modificam a lógica reprodutiva pela qual as instituições originais estruturavam o comportamento dos atores. A mudança não ocorre por uma revisão explícita ou pela complementação dos arranjos existentes, mas por um crescimento diferencial que desvia os diferentes arranjos dentro do sistema (STREEK e THELEN, 2005; GÓMEZ, 2015; MAHONEY, s/d). Nesse sentido, defensores do status quo estariam aptos a mantê-lo, mas não são capazes de impedir pequenas modificações que, de maneira cumulativa, podem vir a favorecer grandes transformações ao longo do tempo. Como veremos, a reforma da política de saúde no governo do MAS, no atendimento aos interesses dos diversos atores, pode estar assumindo muito desse mecanismo.

O terceiro mecanismo, a mudança por drift (desvio), parte do pressuposto de que as instituições requerem manutenção, recalibração e afirmação de seu foco, em resposta às alterações dos ambientes político, social e econômico. Por exemplo, disjunções entre os programas sociais e o padrão de risco da população podem resultar de tendências naturais, que geram a mudança institucional sem uma manobra política explícita, mas por necessidade de recalibração. Na falta de atenção aos processos e metas da instituição (negligência) a mudança pode ser estimulada pelas lacunas abertas nas regras e normas, e pela ação de agentes que alteram suas funções centrais, sem, contudo, desloca-las (STREECK e THELEN, 2005; MAHONEY, s/d). Mudanças por drift são bem caracterizadas nas políticas de saúde, considerando que essas podem se tornar progressivamente menos efetivas no atendimento das necessidades das populações, por exemplo, por mudanças no contexto como a transição demográfica ou a transição epidemiológica. Políticas focalizadas, ao enfatizar determinadas ações em uma política mais ampla de saúde, também caracterizam esse mecanismo de mudança. Especialmente, a adoção de políticas focalizadas tem sido um mecanismo frequente na política de saúde boliviana, redirecionando as instituições desse setor. Como consequência, essas políticas aprofundam a fragmentação do sistema de saúde.

Por fim, a conversão (conversion) caracteriza situações nas quais as instituições são redirecionadas para novos objetivos ou funções, ou seja, novos propósitos são colocados em antigas estruturas. O mecanismo é a reorientação programática, funcional, ou de objetivos e papéis, em resposta ao ambiente no qual estão inseridas. As alterações no ambiente que acionam esse mecanismo de mudança podem ser devidas, por exemplo, à falta de visão dos limites ou consequências não previstas do desenho institucional; à ambiguidade das regras e à quebra dos compromissos entre os atores envolvidos quando da constituição da instituição; à reinterpretação das regras por aqueles que as executam; ou à readaptação às mudanças nas

coalizões e contextos. Aqui, ocorre uma modificação na elaboração, interpretação ou execução das regras, contrariando ou adequando os objetos estabelecidos no desenho de determinada instituição sem, contudo, chegar a desfigurar essa instituição. A conversão, em que pese a estabilidade institucional e a existência de efeitos lock-in, ocorre com a adequação às novas metas e interesses dos atores, ao invés desses adaptarem suas estratégias às instituições existentes (GÓMEZ, 2015; STREECK e THELEN, 2005). Na política de saúde, a expansão gradual de cobertura de um programa inicialmente modesto, que teve seus objetivos redefinidos, é uma forma comum de conversão. Como discutiremos nessa tese esse mecanismo de mudança institucional, do ponto de vista da política de saúde, atende às proposições difundidas na América Latina – assim, também, na Bolívia – da cobertura universal em saúde por meio do “universalismo progressivo” (JAMISON et al., 2013), ou do “universalismo básico” (LODOÑO e FRENK, 2007). Essas alternativas de política de saúde têm em comum a defesa do compromisso dos países de incluir a cobertura de serviços públicos de saúde para as populações mais pobres e de prover um extenso pacote de benefícios financiado por diversos mecanismos para outros segmentos da população, excluindo os mais pobres do pagamento.

Como veremos, a política de saúde na Bolívia passou por reformas ao longo do período de interesse desse estudo – o governo do MAS –, que não se refletiram em mudanças institucionais abruptas cujos resultados fossem a ruptura e a substituição daquelas instituições anteriormente existentes. Entendemos que o formato das mudanças ocorridas está associado à relação entre os atores políticos, condicionadas pelos recursos de que dispõem, e que proporcionam a eles oportunidades de manter o status quo ou de modificar as regras. Assim, a partir das mudanças ocorridas da política de saúde boliviana, nos interessa explicar os fatores que condicionaram as reformas dessa política.

1.2 Explicar reformas sociais por uma abordagem institucional que considere