• Nenhum resultado encontrado

Qual proteção social na Bolívia?

CAPÍTULO 4- SISTEMAS DE SAÚDE NA AMÉRICA LATINA

4.1.2 Qual proteção social na Bolívia?

Para analisar o desenvolvimento da proteção social na Bolívia é interessante avançar no debate específico do regime de bem-estar do país e nos aproximar das possíveis alterações ocorridas em seu enquadramento nas classificações apresentadas na seção anterior. As categorias analíticas trazidas pelo estudo de Franzoni (2007) nos permitem essa aproximação. A autora utilizou uma base de dados de 18 países latino-americanos do período 1998-200345, correspondentes a indicadores que permitissem explorar as categorias da desmercantilização, mercantilização, desfamiliarização e desempenho dos regimes. Dos 32 indicadores utilizados para explorar as categorias analíticas, 19 foram estatisticamente significativos para distinguir os três regimes construídos a partir da análise dos conglomerados. Para descrever o regime de bem-estar boliviano utilizamos as mesmas fontes de dados informadas por Franzoni (2007) e construímos os mesmos 19 indicadores do país para os períodos 2000-2002 e 2010-2013 (Tabela 2). Assim, procedemos uma comparação dos indicadores da Bolívia para o período 2000-2002 com aqueles obtidos por Franzoni para o regime altamente familiarista, uma comparação entre os dois períodos da Bolívia, e uma comparação entre Bolívia e a média da América Latina.

Um primeiro indicador, a PEA ocupada assalariada, evidencia a formalização do mercado de trabalho. Nos dois períodos analisados a Bolívia teve índices mais baixos do que a média do regime altamente familiarista, mas houve um aumento da formalização do trabalho no país no período 2010-2013 em relação ao anterior, 2000-2002 (36,6% e 30,4% respectivamente). Esse incremento tem reflexos diretos na proporção de assalariados com seguro social. O PIB por habitante aumentou na Bolívia entre os anos 2010-2013 em relação a 2000-2002; a distância da média da América Latina para o mesmo período (2010-2013) também aumentou. A população abaixo da linha de pobreza, que no período 2000-2002 correspondia a 60,6% caiu para 36,3% entre 2010-2013. Houve também uma queda na proporção da população rural boliviana entre os dois períodos analisados, de 38,2% para 33,65%, respectivamente, embora ainda acima da média da região (28,1%).

44 Quando esse gasto ultrapassa 40% da renda disponível no domicílio (o restante, depois de considerado o gasto

em alimentação), é considerado um gasto catastrófico, que coloca em risco a viabilidade econômica e financeira do domicílio (HEREDIA, 2011).

45 Segundo a autora, a análise estatística focou os dados mais recentes ou, nos casos de possíveis vieses, a média

A proporção de trabalhadores autônomos não qualificados permite uma aproximação da análise da informalidade do bem-estar e da avaliação da transformação do domicílio em unidade produtiva. Assim, enquanto os países do regime estatal-produtivista apresentaram em média 16,1% da população nessa situação, a proporção no regime altamente familiarista foi de 34,3%. Na Bolívia essa proporção foi de 43,2% entre 2000-2002 e de 36,5% entre e 2010-2013 o que, embora possa indicar uma diminuição na informalidade do trabalho, ainda deixou o país bem acima da média da América Latina (27,3%) entre 2010-2013.

Tabela 2- Dimensões e indicadores dos regimes de bem-estar na América Latina e conglomerados (2000-2002) e média da região e na Bolívia (2000-2002 e 2010-2013).

América Latina 2000-2002 2010-2013

2010-2013 PEA ocupada assalariadaa 73,54 66,04 50,22 43,69 55,75 30,40 36,60 58,5 Trabalhadores autônomos não qualificadosa 16,10 21,34 33,83 34,30 28,49 43,20 36,50 27,2 PIB por habitante (US$ 1995)a 6326,07 4243,40 2080,26 928,77 3573,70 1625,7 (1) 2230,5 (1) 9991 População em situação de pobrezaa 22,70 28,86 53,46 67,70 47,37 60,60 36,30 28,1 Coeficiente de GINIa 0,55 0,57 0,53 0,54 0,54 0,64 0,47 0,49 População rurala 11,45 26,50 34,47 44,33 31,89 38,20 33,65 21,5 Matrícula educativa privadab 36,10 13,46 25,66 28,49 24,06 20,7 (2) 9,2 (2) nd População urbana ocupada no setor públicoa 16,11 14,10 8,70 7,63 10,79 6,70 8,90 10,8 Gasto público em saúde per capita (US$ 1997)a 272,00 177,00 43,43 25,75 102,00 12 (3) 17 (3) 143 Gasto público em educação per capita (US$ 1997)a 311,50 195,20 77,43 52,25 130,56 50 (3) 66 (3) 171,4 Gasto público social per capita (US$ 1997)a 1293,00 885,60 202,57 117,25 482,31 111 (3) 144 (3) 697 Gasto público social como % do PIBa 18,80 19,16 8,53 12,40 13,48 12,30 11,50 15,5 Trabalhadores com previdência socialc 56,46 59,28 29,54 20,97 38,89 15,3 (4) 20,5 (4) nd Famílias urbanas estendidas e compostasd 17,65 19,42 29,20 28,10 24,96 nd nd nd Famílias nucleares biparentais com cônjuge sem trabalho

remuneradod 51,56 46,54 40,59 38,50 42,99 nd nd nd

População menor de 12 anose 24,46 26,11 30,82 36,08 29,97 39,59 (5) 35,77 (5) 27,1 População maior de 65 anose 8,43 6,68 4,53 3,50 5,33 4,30 4,78 7 Razão de dependência (pop 12 a 64 anos)e 49,05 48,87 55,02 65,58 54,99 70,56 60,18 52,71 Taxa de mortalidade em menores de 5 anosf 14,50 22,20 31,57 43,50 29,72 101,31 72,22 19,3 IDH relativo ao gênero - IDG 0,84 0,80 0,72 0,68 0,75 nd 0,73 0,96 (6) Fonte: Adaptado de Franzoni, 2007.

a) CEPAL; b)UNESCO; c) BID; d) ARRIAGADA apud FRANZONI, 2007; e) CEPAL-CELADE. (1) - US$ de 2010.

(2) - matrícula privada na educação primária (secundária: 29,2 e 12,9; terciária: 21,3 e 19,5 para os dois períodos, respectivamente). (3) - US$ de 2005.

(4) - refere-se ao quintil mais baixo (quintil médio: 17,5 e 35,5; quintil mais alto: 44,3 e 55,3 para os dois períodos, respectivamente). (5) - população menor de 14 anos.

(6) - Dado de 2013 disponível em http://hdr.undp.org/en/composite/GDI Desempenho no

manejo dos riscos Mercantilização Bolívia América Latina 2000- 2002 Indicadores estatal- produtivista estatal- protecionista familiarista altamente familiarista Dimensões Desmercantilização Familiarização

Embora outros indicadores mostrem sensíveis diferenças entre os regimes de proteção social latino-americanos, o coeficiente de Gini no período 2000-2002 é similar, espelhando a desigualdade na distribuição de renda generalizada na América Latina. Entre os dois períodos ocorreu uma redução nessa desigualdade na região (de 0,54 para 0,49 no coeficiente de Gini), enquanto na Bolívia essa redução foi ainda mais acentuada: de 0,64 entre 2000-2002 para 0,47 entre 2010-2013. Houve também uma redução da população rural boliviana, de 38,2% para 33,65% entre 2010-2013.

Esse primeiro grupo de indicadores avalia a mercantilização da força de trabalho, ou seja, a capacidade do mercado em prover trabalho remunerado estável e garantir a proteção social. É possível identificar na Bolívia que essa capacidade aumentou entre os períodos analisados, o que remete a um incremento na cobertura das políticas de proteção social. O grupo seguinte avalia a desmercantilização do bem-estar, dimensão que reflete a desvinculação do bem-estar do intercâmbio mercantil, o acesso à distribuição de bens e serviços providos pelo Estado.

A proporção da população boliviana urbana no setor público foi de 6,7% entre 2000- 2002 e de 8,9% no período 2010-2013, o que ainda indica o caráter pouco estatal do país em relação à média da América Latina (10,8% nos dois períodos). O gasto público social como porcentagem do PIB – indicador que valoriza a presença de políticas públicas de Estado – diminuiu entre os dois períodos, embora com um aumento no gasto social per capita total ou por setores de saúde (12 dólares entre 2000-2002 e 17 dólares entre 2010-2013) e educação (50 dólares entre 2000-2002 e 66 dólares entre 2010-2013). A matrícula na educação privada, medida do consumo privado de serviços, teve a proporção diminuída entre os dois períodos (20,7% e 9,2%), o que, analisado junto ao aumento do gasto público per capita em educação, pode indicar uma expansão da cobertura dos serviços públicos. Houve também um incremento na proporção de trabalhadores com previdência social entre os dois períodos (15,3% e 20,5%) o que indica o crescimento da vinculação formal ao trabalho no país. Portanto, embora com pequena variação, podemos inferir que entre os dois períodos houve maior intervenção do Estado no bem-estar da população.

Os indicadores que compõem a dimensão da familiarização do bem-estar, por sua vez, refletem o acesso ao trabalho remunerado em relação à divisão sexual do trabalho e o papel das famílias na provisão do bem-estar. Também nessa dimensão houve uma melhoria nos resultados da Bolívia, indicando a redução na familiarização do bem-estar. A proporção de idosos na Bolívia foi de 4,3% entre 2000 e 2002 e 4,78% no período 2010-2013, é menor que a da América Latina de 5,3% e 7% nos dois períodos, respectivamente. Essa diferença reflete um

aumento na expectativa de vida entre os períodos analisados. A proporção de menores de 12 anos diminuiu de 39,59% entre 2000-2002 para 35,77% entre 2010-2013 (a média da região esteve em 27.1%). Esses dois indicadores apontam para uma transição demográfica ainda incipiente na Bolívia. A razão de dependência da população entre 12 e 64 anos na Bolívia, por sua vez, embora tenha tido uma redução entre os dois períodos analisados (de 70,56% entre 2000-2002 para 60,17% entre 2010-2013), ainda ficou acima da média da América Latina de (54,99% e 52,71% nos respectivos períodos).

Na última dimensão é avaliado o desempenho do regime em relação ao manejo dos riscos o qual, na Bolívia, ainda é baixo. O primeiro indicador, o Índice de Desenvolvimento de Gênero46 – IDG –, mede as desigualdades de gênero em três dimensões básicas do desenvolvimento humano: a saúde (medida pela esperança de vida de homens e mulheres ao nascer), a educação (medida pela média de anos de educação da população de homens e de mulheres maiores de 25 anos), e a distribuição dos recursos econômicos (medida pelo PIB per capita de homens e mulheres). O índice mostra o quanto as mulheres estão “atrás” dos homens e o quanto é necessário alcançar em cada uma das dimensões para diminuir essa desigualdade, constituindo-se em uma boa ferramenta para o desenho de políticas públicas. O IDG alcança o valor 1 quando existe participação equitativa de homens e mulheres e se aproxima de 0 (zero) quanto mais desigual é essa participação47. Em 2013 o IDG da América Latina (0,96) se equiparou àquele de regiões com alto desenvolvimento humano, e a região foi classificada no grupo médio-alto de desenvolvimento de gênero. Com um IDG de 0,73 a Bolívia se classificou entre os países com baixo índice de desenvolvimento de gênero, ou seja, aqueles com maiores desigualdades em relação à saúde, educação e distribuição de recursos entre homens e mulheres, como Honduras, Paraguai e República Dominicana48. A mortalidade infantil na Bolívia teve uma redução significante de 101,31/1000 para 72,22/1000 nascidos vivos entre 2000-2002 e 2010-2012, respectivamente. Além de um baixo gasto social esse indicador sugere a fragilidade das políticas públicas em termos de cobertura e resultados refletindo, por exemplo, uma infraestrutura pública deficiente no fornecimento de saneamento básico e água potável.

46 http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr2015_technical_notes.pdf

47 O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD – assume a classificação dos países em cinco

grupos baseados no desvio absoluto do IDG (100 x GDI - 1) : grupo 1, com um desvio de menos de 2,5% são considerados de alta equidade em relação ao desenvolvimento humano de homens e mulheres; grupo 2, com desvio entre 2,5 e 5,0% e equidade de desenvolvimento média-alta; grupo 3 com desvio entre 5,0 e 7,5% e equidade de desenvolvimento média; grupo 4, com desvio entre 7,5 e 10% considerados países com equidade de desenvolvimento média-baixa; e grupo cinco, compreendendo aqueles países cujo desvio do IDG é maior que 10%, considerados de baixa equidade do desenvolvimento humano em relação ao gênero (http://hdr.undp.org/sites/default/files/rhdr-2010-rblac.pdf).

Em suma, a melhoria nos indicadores de proteção social da Bolívia aqui descritos não nos permite inferir a respeito de sua inclusão em um regime de bem-estar que não seja o altamente familiarista, embora muitos desses indicadores tenham tido alterações significantes posteriormente à análise elaborada por Franzoni (2007). O bem-estar no país continua fortemente dependente de arranjos comunitários e familiares, no marco de um mercado de trabalho e de políticas públicas excludentes, como mostram os indicadores do gasto social, da proporção da população assalariada e com benefícios da previdência social, dentre outros. Cerca de quatro em cada 10 pessoas49 vive em situação de pobreza, o que aumenta a demanda por serviços públicos.

A discussão do desenvolvimento da proteção social na América Latina e de seu formato na Bolívia nos mostra o substrato sobre o qual se constituíram os sistemas de proteção social em saúde na região: uma base de vinculação ao trabalho formal, com baixa regulação por parte dos Estados e exclusão de grande parte da população. A partir dos anos 1990 os países têm buscado dotar os Estados de maior capacidade de intervenção no desenvolvimento econômico e social por meio de reformas consequentes à crise do Consenso de Washington e às políticas econômicas e sociais que condicionou, no contexto do “giro à esquerda” na região. Essas reformas se refletem na política de saúde, principalmente revelando a tensão entre as ideias de constituição ou preservação de sistemas fragmentados e segmentados, em oposição aos sistemas universais de saúde, ou a ideia de políticas focalizadas versus a concepção de políticas integradas universais de saúde. Ou seja, a disputa ainda ocorre entre concepções que privilegiam a segmentação das populações segundo sua inserção no mercado de trabalho, ou seu status sócio-econômico, e aquelas de caráter universalizante.

É nesse contexto que se insere a análise que propomos. Para uma maior aproximação de nosso objeto, as mudanças no sistema de saúde boliviano no governo do MAS, interessa-nos analisar a proteção social em saúde, os sistemas de saúde latino-americanos, seus componentes e sua articulação na provisão do bem-estar em saúde. Ainda guardando nosso objetivo de contextualizar a Bolívia no cenário latino-americano, com a identificação dos componentes essenciais do sistema de saúde buscamos também definir as categorias analíticas para a avaliação das mudanças na política de saúde no governo do MAS.

49 Dados do Banco Mundial para 2014: 39,3% da população abaixo da linha de pobreza. Disponível em

4.2- Sistemas de saúde e sua tipologia na América Latina

A proteção social em saúde na América Latina se desenvolveu pari passu com a formação dos regimes de bem-estar na região, tendo o emprego formal como o meio mais importante de acesso à assistência à saúde. O eixo central dessa lógica foi o da proteção mútua e da solidariedade intragrupal e se refletiu na criação de sistemas de previdência social ligados ao mundo do trabalho que, em sua maioria, ofereciam assistência médica aos seus afiliados. Em alguns países foram constituídos sistemas diferenciados para trabalhadores braçais ou profissionais qualificados (no Chile, blue collar e white collar, respectivamente); em outros a base de formação foram os agrupamentos de imigrantes (Uruguai); em outros, ainda, os esquemas de previdência social estiveram historicamente ligados aos sindicatos e às lutas de trabalhadores, fazendo com que as organizações que os aglutinavam incorporassem, como parte das reivindicações, esquemas de proteção em saúde. Esses sistemas favoreceram a sindicalização dos trabalhadores e o estabelecimento de um espaço estável de negociação entre dois grupos mutuamente dependentes: o empregado e o empregador, onde o Estado tinha o papel de articular os conflitos. A proteção em saúde para a população mais vulnerável e não pertencente ao mercado formal de trabalho se deu na forma da provisão estatal de serviços de saúde e, em muitos casos, não existiu para grandes parcelas dessa população.

Na América Latina a lógica bismarkiana foi predominante na constituição da proteção social em saúde, por meio de instituições da previdência social geralmente administradas por um ente bi ou tripartite com representação de trabalhadores, empregadores e Estado, que prestavam assistência à saúde a seus segurados e dependentes. De forma residual a lógica beveredgiana constituiu os sistemas nacionais de saúde, universais, administrados e financiados pelo Estado (Cuba, Costa Rica e, mais tardiamente, Brasil) ou, como ressaltado, estabeleceu um subsistema voltado à proteção daqueles segmentos não vinculados ao seguro social previdenciário. Essa característica gerou dois universos distintos de proteção, com redes separadas de financiamento e provisão de serviços, e constituiu sistemas de saúde altamente duais e excludentes.

No contexto das crises políticas e econômicas que marcou o panorama regional nas últimas décadas do século XX a perda da proteção social teve enorme impacto no acesso à saúde. A exclusão em saúde – falta de acesso de indivíduos ou grupos aos bens, serviços e oportunidade em saúde dos quais outros grupos desfrutam – tem sido explicada pelos níveis de pobreza e ruralidade, informalidade do emprego e por fatores internos da estrutura e organização dos sistemas de saúde como a segmentação, a fragmentação e a falta de regulação

adequada – características que surgem e se aprofundam em sistemas duais – e, em alguns países, também a discriminação étnica (ACUÑA, 2006).

É certo que os sistemas de saúde se desenvolveram e se modificaram em diversos formatos na região. De forma a contribuir para a compreensão das origens e diferenças entre esses sistemas, principalmente nos países em desenvolvimento, trazemos a discussão de Olmen (OLMEN et al, 2012), com o objetivo de acrescentar àquela do desenvolvimento dos regimes de bem-estar os discursos específicos do campo da saúde emergentes nos respectivos contextos temporais. O ponto de partida é a criação da Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1948. A questão central colocada são as tensões sempre existentes entre as abordagens econômica e social da saúde, por um lado, e abordagens mais tecnológicas e focadas em doenças, por outro lado.

Após a II Guerra Mundial a OMS e a UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) foram praticamente a únicas organizações a tratar das questões da saúde no âmbito internacional. Até o final da década de 1950 o alinhamento da OMS se aproximou das perspectivas políticas dos EUA cujos princípios enfatizavam a prevenção e o controle de doenças por meio de estratégias verticais fortemente baseadas em novas tecnologias. Contudo, o fracasso das campanhas de erradicação de doenças como malária e bouba nos países fora da OCDE deu a oportunidade à OMS, nos anos 1960, decolocar na agenda a discussão de estruturas e organizações alternativas dos serviços de saúde como, por exemplo, iniciativas de promoção da participação comunitária em países da Ásia, África e América Latina (Guatemala, Costa Rica, Nicarágua, México). O objetivo foi manter na pauta as dimensões socioculturais e socioeconômicas da saúde e a valorização da autonomia dos indivíduos por meio de abordagens científicas que sustentassem atividades essenciais da saúde, como a estratégia da atenção primária.

Nessa esteira, a Conferência de Alma Ata ocorrida em 1978 foi um marco no desenvolvimento da atenção primária à saúde, definindo como obrigação dos países garantir serviços de saúde a toda a população e colocando a saúde na agenda dos direitos humanos, como condição para o bem-estar. Os valores impressos na Declaração de Alma Ata – acesso universal, equidade, participação e ação intersetorial – sustentaram ideologicamente os sistemas de saúde e a cooperação internacional que deu suporte ao seu desenvolvimento. Apesar do consenso quanto aos objetivos da Conferência e da Declaração de Alma Ata, a realidade global propiciou seu questionamento, do ponto de vista da possibilidade de serem alcançados e de refletirem a realidade do contexto político, econômico e social mundial. Além disso, a recessão econômica decorrente da crise do petróleo de 1973 reduziu os esforços para maiores

investimentos na saúde além do fato de que, em muitos países, fatores como a resistência de profissionais da saúde e a ausência de projetos políticos para reformas sociais ainda contribuíram para a não implementação dos princípios de Alma Ata (OLMEN et al, 2012).

Nesse contexto a ideia de uma ampla transformação social foi substituída pela defesa protagonizada pelo BM da adoção de um pacote limitado de intervenções consideradas mais custo-efetivas para os países em desenvolvimento. Essa abordagem priorizava resultados rápidos, para além de objetivos de longo prazo baseados em critérios técnicos e alinhados às noções de participação nas decisões e abordagens de saúde comunitária, renunciando a uma transformação social mais ampla em favor de uma opção por programas verticais mais restritos e factíveis. As ações predominantes envolviam campanhas de aleitamento materno, imunização, planejamento familiar, educação de mulheres e suplementação alimentar. Assim, a atenção primária seletiva tornou-se o modus operandi dominante da política de saúde, cabendo nos paradigmas e na agenda de interesses influentes como os de defensores do mercado na saúde, que lutavam por uma ação mínima do Estado; de organismos financiadores, agora com orçamentos reduzidos; da elite política dos países em desenvolvimento, que se sentia ameaçada pela crise econômica; e de profissionais de saúde, que temiam pela sua função. Além desses fatores, as pressões por reformas macroeconômicas e ajustes estruturais, em decorrência da crise econômica, impuseram princípios de eficiência, governo mínimo, desregulamentação e privatização de políticas públicas, implicando na redução dos gastos com a saúde e no crescente papel do setor privado, explicitamente estimulado pelos atores internacionais e abraçado pelas elites econômicas. O papel da OMS foi reduzido, enquanto o BM tornou-se mais ativo nos setores social e de saúde, enfatizando o custo-efetividade dos sistemas e propondo taxações, seguros, uso efetivo de recursos privados e descentralização. O olhar sobre os sistemas de saúde nos países em desenvolvimento voltou-se para os níveis locais, enfatizando a ideia de construção desses sistemas “de baixo para cima” (OLMEN, 2012).

Ao final do século XX e início do XXI o contexto da saúde no mundo tornou-se mais complexo, principalmente pelo aumento do número de atores. Nesse período os sistemas de