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Tipologias dos regimes de bem-estar latino-americanos

CAPÍTULO 4- SISTEMAS DE SAÚDE NA AMÉRICA LATINA

4.1.1 Tipologias dos regimes de bem-estar latino-americanos

Um estudo pioneiro sobre os sistemas de proteção social latino-americanos foi o de Mesa-Lago (2008), que enfatizou o timing, a extensão e a cobertura da previdência social, da assistência a enfermidades e da assistência ao parto por meio da avaliação de indicadores de cobertura e gasto, identificando três grupos de países. O primeiro, pioneiro-alto, compreende Argentina, Chile, Uruguai, Costa Rica e Brasil, primeiros países a estabelecer seus sistemas de proteção social nas décadas de 1920 e 1930, com maior cobertura e extensão, mas estratificados e com altos custos e déficits financeiros. O segundo grupo, intermediário, compreende México, Panamá, Colômbia, Venezuela, Equador, Bolívia e Peru, que estruturaram seus sistemas ao longo da década de 1940, alcançaram cobertura e desenvolvimento médios, foram menos estratificados e tiveram menores problemas financeiros. O último grupo, tardio-baixo, abrange a Guatemala, República Dominicana, El Salvador, Honduras, Paraguai e Nicarágua, países com uma população mais jovem e cujos sistemas de proteção social foram, nos anos 1960 e 1970, relativamente mais unificados, com menores problemas financeiros, mas com menor cobertura e desenvolvimento do que aqueles dos demais grupos (DEL VALLE, 2010; ANDRADE, 2012; CECCHINI e MARTINEZ, 2011). Essa tipificação permite avaliar a estratificação dos sistemas de proteção social latino-americanos, mas não aprofunda a correlação entre o Estado, o mercado e a família, pilares do estudo dos regimes de bem-estar.

A correlação da proteção social com a desmercantilização aparece na tipologia dos regimes de proteção social desenvolvida por Filgueira (2005) para o período entre 1930 e 1970. O interesse foi na análise de “como” se deu o gasto em proteção social na América Latina em termos de distribuição e cobertura populacional e em sua correlação com a desmercantilização. A mesma linha de pensamento pautou a classificação desenvolvida por Solano (2007).

Filgueira (2005) identificou três tipos de regimes de proteção social. O primeiro, universalismo estratificado, abrange Chile, Argentina e Uruguai, países que apresentavam uma

alta cobertura da população no sistema de seguridade social, serviços básicos de saúde, além de cobertura universal da educação básica e ampla cobertura na educação média e superior (Quadro 5). Esses países tiveram altos graus de desmercantilização na provisão de serviços fora do mercado e na provisão de benefícios monetários aos idosos e incapacitados para o trabalho. Por outro lado, apresentavam forte estratificação dos benefícios, das condições de acesso e dos níveis de proteção, considerando-se uma escala decrescente entre funcionários públicos, trabalhadores urbanos e trabalhadores rurais (FILGUEIRA, 2005). Na classificação de Solano (2007) esse regime é o universalista, que abrange os mesmos países.

A segunda tipologia descrita por Filgueira (1998) é o regime dual, que compreende Brasil e México, com uma cobertura quase universal de educação nos anos 1970 e uma importante cobertura dos serviços de saúde, embora estratificada. Solano (2007), em sua tipologia, inclui ainda nesse regime a Colômbia e a Venezuela. Nesses países, a cobertura da previdência social se distanciou daquela do regime universalista estratificado e aprofundou a estratificação. O grau de formalização do emprego também diferencia os dois regimes – universalista estratificado e dual. Nos países que apresentam esse regime também ficou mais claro o problema da heterogeneidade territorial: em algumas regiões existiu um desenvolvimento importante do mercado formal e da proteção social para pequenas parcelas, enquanto o sistema de proteção social apresentava baixa incorporação da maioria da população, seja pelo mercado ou pelo Estado.

Na terceira tipologia, regime excludente, são incluídos por Filgueira (1998) e por Solano (2007) o Equador, Bolívia, Guatemala, El Salvador, Honduras e Nicarágua, com sistemas elitistas no que se refere à previdência social e à saúde, cobrindo apenas cerca de 20% da população, e duais em relação à educação que, embora com desigualdades, alcançou mais da metade da população por volta de 1970 (em alguns países, quase universal). Nesses países as elites se apropriaram do aparato do Estado, usando sua capacidade fiscal para extrair renda sem a contrapartida em bens coletivos, regulação do mercado ou serviços sociais. São também países muito heterogêneos em relação a sua estrutura social, o que se refletiu na distribuição de renda entre áreas urbanas e rurais e no grau no qual o mercado operou, produzindo diferentes configurações sociais. O grau de intervenção do Estado no compartilhamento dos riscos advindos dessa configuração foi mínimo43.

43 Revendo esse estudo e considerando a reformas ocorridas nos sistemas de proteção social latino-americanos

nas décadas de 1980 e 1990 – guardando as diferenças dessas reformas entre os diversos países –, o autor ressalta que essa tipificação já não se adequa à América Latina, mas enfatiza que os orçamentos restritos, os fundos de emergência ou as soluções privadas e orientadas ao mercado não se mostraram soluções adequadas ao desafio de incorporar segmentos excluídos dos sistemas (FILGUEIRA, 2005).

Huber e Stephens (2005) coincidem com Filgueira (2005) no entendimento de que a cobertura da previdência social, do sistema de saúde e das políticas de educação, bem como o gasto nessas áreas, são importantes características para o estabelecimento de uma tipologia dos regimes de bem-estar. No entanto, colocaram uma ênfase diferenciada na comparação entre os recursos destinados à previdência social, especialmente para pensões, versus aqueles destinados à saúde e educação, e no gasto desses recursos nessas áreas versus a distribuição da renda e o tipo de serviços prestados. Apresentam uma classificação dos países no período entre 1991 e 2000 que considera variáveis de cobertura do gasto e distribuição dos investimentos sociais, identificando quatro conglomerados com graus decrescentes de cobertura e esforço social: maior esforço, esforço médio-alto (Brasil e México), esforço médio-baixo (Bolívia, Colômbia, Equador e Peru) e esforço baixo (América Central, excluindo Costa Rica). Buscando identificar regimes exitosos, concluíram que Argentina, Chile, Costa Rica e Uruguai (maior esforço) alcançaram os melhores resultados nas políticas de bem-estar, considerando os baixos níveis relativos de pobreza e desigualdade e os altos níveis de capital humano, gasto social como porcentagem do PIB e distribuição progressiva de benefícios (Quadro 5).

Uma das linhas de estudos sobre os regimes de bem-estar latino-americanos considera que todos os regimes são, em alguma medida, informais. Esse argumento se pauta no fato de que os Estados não regulam os mercados e que estes frequentemente excluem a maior parte da população, o que leva a produção do bem-estar a se basear nas famílias e nas redes sociais de apoio. Ou seja, parte da população na América Latina não pode lidar com os riscos sociais por meio de sua participação no mercado de trabalho ou nos serviços públicos, o que caracteriza a informalidade desses regimes de bem-estar (DEL VALLE, 2010; FRANZONI, 2007; GOUGH, 2013). Nessa linha de argumentação, Franzoni (2007) considerou quatro dimensões para o estudo dos regimes de bem-estar latino-americanos: o grau de mercantilização da força de trabalho, que reflete a capacidade do mercado em prover trabalho remunerado e sua qualidade em relação à estabilidade, proteção social e outras garantias; o grau de desmercantilização do bem-estar, que reflete o acesso à distribuição de serviços por meio de programas estatais; o grau de desfamiliarização do bem-estar, que reflete o acesso ao trabalho remunerado em relação à divisão sexual do trabalho na família; e o desempenho do manejo dos riscos. Fala-se, portanto, em mercantilização do trabalho, definida como o grau em que as instituições transformam o trabalho em mercadoria, e mercantilização do bem-estar, definida como o grau em que a provisão de serviços como educação, saúde e previdência social estão submetidas ao mercado.

A partir dessa análise são considerados três regimes de bem-estar na região: estatal- produtivista, estatal-protecionista e familiarista.

Quadro 5- Classificação de países da América Latina, segundo distintos autores, em relação aos regimes de bem-estar.

Autores Filgueira Filgueira Solano Huber e Stephens Franzoni Marcel e Rivera

Países/período Até os anos 1970

Reformas das décadas de 1980-

1990

Até os anos 1970 Início da década de 2000 Início da década de 2000 Início da década de 2000 Argentina Universalismo estratificado

Idas e vindas Universalista Maior esforço Estatal-produtivista Potencial regime de bem-estar

Bolívia Excludente Excludente Esforço médio-baixo Altamente

familiarista

Dual

Brasil Dual Dual Esforço médio-alto Estatal-

protecionista Potencial regime de bem-estar Chile Universalismo estratificado Reforma liberal- forte

Universalista Maior esforço Estatal-produtivista Potencial regime de bem-estar

Colômbia Dual Esforço médio-baixo Familiarista Dual

Costa Rica Universalismo Universalista Maior esforço Estatal-

protecionista

Potencial regime de bem-estar

El Salvador Excludente Excludente Esforço baixo Familiarista Informal-

desestatizado

Equador Excludente Excludente Esforço médio-baixo Familiarista Conservador

Guatemala Exculdente Excludente Esforço baixo Familiarista

Honduras Excludente Excludente Esforço baixo Altamente

familiarista

Informal- desestatizado

México Dual Dual Esforço médio-alto Estatal-

protecionista

Conservador

Nicarágua Excludente Excludente Esforço baixo Altamente

familiarista Informal- desestatizado Panamá Estatal- protecionista Dual

Paraguai Excludente Altamente

familiarista

Informal- desestatizado

Peru Dual a excludente Excludente Esforço médio-baixo Familiarista Informal-

desestatizado

Rep. Dominicana Excludente Familiarista Informal-

desestatizado Uruguai Universalismo

estratificado

Corporativismo Universalista Maior esforço Estatal- protecionista

Potencial regime de bem-estar

Venezuela Dual Esforço médio-baixo Familiarista Conservador

O regime estatal-produtivista (Argentina e Chile) se caracteriza por maior mercantilização do trabalho e focalização dos recursos estatais na formação de capital humano, na perspectiva de melhorar as condições da força de trabalho, bem como por maior mercantilização do bem-estar. O Estado intervém nas áreas que o mercado não consegue proteger e para a população para a qual o intercâmbio mercantil não é suficiente. No regime estatal-protecionista (Brasil, Costa Rica, México, Panamá e Uruguai) as políticas públicas enfatizam a proteção social a partir de contribuições associadas às ocupações, principalmente nos setores formais. O Estado intervém mais na prestação direta de serviços, em relação ao regime estatal-produtivista. O regime familiarista (Guatemala, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela) se caracteriza por uma baixa mercantilização do trabalho, expresso na informalidade, na importância da economia rural e em diversas modalidade de trabalho não assalariado. Na ausência de um papel significativo do Estado, a família se transforma em um provedor fundamental de bem-estar, especialmente por meio do trabalho das mulheres nos domicílios, sem que este prejudique sua participação no setor informal e, em alguns casos, em empregos assalariados. O Estado oferece proteção organizada em programas instáveis e de pequeno alcance a uma pequena parte da população. Em um aprofundamento dessas condições se constitui o regime altamente familiarista (Bolívia, Honduras, Nicarágua e Paraguai), onde a capacidade dos Estados na produção do bem-estar é muito baixa (FRANZONI, 2007).

Também discutindo a necessidade de incluir a economia informal na discussão dos regimes de bem-estar latino-americanos, Marcel e Rivera (2008) pautaram-se em uma variante de argumentação, segundo a qual o Estado compartilha o papel de provedor de bem-estar com outros potenciais provedores: mercado, empresas, famílias e informalidade. Dada a realidade da América Latina, é sempre possível que dois ou mais provedores predominem em um país. No entanto, a questão colocada pelos autores é sobre o fato desses provedores coexistirem de forma complementar ou excludente. Serão excludentes quando envolverem circuitos claramente distintos de acesso dos indivíduos ao bem-estar, por exemplo, quando a informalidade coexiste com o mercado como provedor predominante: nesse caso, a dinâmica excludente ocorre porque a informalidade debilita as instituições necessárias para o cumprimento de regras para o funcionamento do mercado, ou seja, reflete um circuito diferenciado e impõe limites ao funcionamento deste. Essa relação excludente não se produz quando, por exemplo, o mercado coexiste como provedor com o Estado, como no caso de existirem seguros de saúde corporativos que suplementam os serviços públicos, ou um regime universalista de saúde coexistindo com um programa contributivo de pensões.

Os critérios adotados por Marcel e Rivera (2008) produziram quatro tipos de regimes de bem-estar: potencial estado de bem-estar, conservador, dual e informal-desestatizado. O regime conservador inclui os países nos quais as empresas/mercado e as famílias coexistem como provedores complementares de bem-estar (Venezuela, Equador e México). Os casos nos quais o Estado convive com outro provedor complementar, seja o mercado ou as famílias, são classificados como potenciais estados de bem-estar (Chile, Argentina, Uruguai, Costa Rica e Brasil), indicando que o Estado pode ser suficiente e seguir a trajetória dos Estados de bem- estar dos países avançados. Quando a informalidade convive com o mercado, o Estado ou ambos, trata-se de regimes duais (Bolívia, Colômbia, Panamá). Quando a informalidade coexiste com as famílias e é acompanhada pelo mercado, o regime é classificado como informal desestatizado como no caso de El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Paraguai e Peru, chamando a atenção para a virtual ausência do Estado como provedor e a convivência de mecanismos de produção de bem-estar que atuam por canais privados, de forma que a desmercantilização ocorre mais pela presença de modalidades tradicionais e pre-capitalistas de atender às necessidades sociais (MARCEL e RIVERA, 2008).

A tipologia desenvolvida por Franzoni (2007) traz o esforço de incorporar a informalidade e as diferenças internas da região nas dimensões de funcionamento do mercado, presença do Estado e familiarização. Essa linha de análise, como sugere Kerstenetzky (2012), abre possibilidades para estratégias de superação tais como a adoção de intervenções públicas em favor da mercantilização e da desmercantilização. Assim sendo, faremos uma abordagem específica do regime de bem-estar na Bolívia utilizando a classificação desenvolvida por Franzoni. Para nosso objetivo importa compreender o contorno mais amplo da proteção social na Bolívia e as possíveis mudanças ocorridas nos últimos anos em relação à mercantilização, desmercantilização e familiarização, que têm impacto direto no acesso das pessoas à saúde.

A marcante característica dos sistemas de proteção social latino-americanos de vinculação dos benefícios ao emprego formal é também compartilhada pela Bolívia, onde assume implicações peculiares, dada a alta informalidade do trabalho. Como conceituado por Marcel e Rivera (2008), trata-se de um regime dual, no qual a informalidade convive com o Estado e o mercado ou, como classifica Franzoni (2007), um regime altamente familiarista, no qual a família é um provedor fundamental. Na política de saúde a dualidade redunda na segmentação da assistência à saúde em subsistemas público e privado, enquanto grande parcela da população, sem vínculo formal de trabalho e com baixa renda, não está coberta por nenhum

desses subsistemas. Os cuidados a cargo das famílias, portanto, assumem um papel preponderante no país, bem como o gasto do próprio bolso com saúde44.