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Cenas de A viúva recauchutada (1969)

Capítulo

A COMÉDIA BRASILEIRA VIRA SOLO.

18. Cenas de A viúva recauchutada (1969)

As relações entre Dercy e Flávio Rangel eram um tanto atribuladas justamente por causa dos desacertos da atriz com Danilo. Mas em Um chapéu cheio de chuva, aborrecida com os achaques de intelectualidade do marido, que usava o dinheiro de sua companhia para produzir um teatro

129 A estréia se deu com a casa cheia e muita expectativa na platéia. Mas antes mesmo que o público pudesse se manifestar, o espetáculo fustigou o puritanismo da crítica e incomodou a censura, que desde a primeira noite se plantou nas primeiras filas e vaiou a comediante, pedindo aos berros por cultura. Também, além das crises de tosse em cofó-cofó, a protagonista chegava a cantar para Armand Duval a cançoneta surreal A Perereca da Vizinha, que a comediante inventara num programa de televisão e que apesar do duplo sentido era cantada principalmente pelas crianças brasileiras.

Nos jornais do dia seguinte havia opiniões contra a artista de sarjeta no Brasil (KHOURY, 2000:126) que aportara com ares de grande comediante no Teatro Laura Alves, na Mouraria. Em sua defesa Hermilo Borba Filho, tradutor e adaptador do texto, enviou artigo tentando explicar quem era Dercy e qual era o seu gênero de teatro185. A polêmica estava armada, a platéia se esvaziava, mas os senhores da censura não desistiam, aumentando as vaias. Até que comediante explodiu e acertou em cheio onde não devia: Olha aqui, estou dando o circo! Se

vocês estão querendo pão vão pedir ao governo porque ele é que tem obrigação!

(AMARAL, 1994: 186).

Naquela noite, mal acabou a peça foi detida pelo PIDE, a polícia política. Proibiram o espetáculo, mas não expulsaram a artista do país. Esta ficou ainda cinco meses por lá, segundo ela, descansando. Foi depois para a Alemanha, onde pretendia comprar um circo inflável. Só não fechou negócio porque o fabricante, que morara doze anos no Brasil, desaconselhou-a, lembrando que teria que pagar um imposto estratosférico para a mercadoria entrar no país (AMARAL, 1994: 188). Tivesse a nação leis mais brandas para a cultura e talvez a essa altura se estivesse falando não da persistência atrevida de um bufão em palco italiano, mas da migração de uma atriz para o picadeiro, quem sabe renovando o circo nacional. mais “fino”, distribuiu ingressos da peça para as prostitutas da região e para os motoristas de taxi, que nem sabiam o que era teatro. A estréia foi muito engraçada, com a casa lotada, mas por um pessoal muito diferente do esperado, o que exasperou Danilo, mas divertiu o esquerdista Rangel (AMARAL, 1994:184-5).

185

Cf. BORBA FILHO, Hermilo. Diário de Pernambuco, 24 jan.1972. Recolhido em Louvações, encantamentos e outras crônicas (2000).

130 No entanto, retornando ao Brasil sem lona e temporariamente também sem disposição circense, Dercy montou no teatro, em 1971, A Difa...amada, escrita especialmente para ela por Fábio Sabag e Ari Soares.

Soares, que era na época seu namorado e estivera com ela na Europa, acompanhara seus fracassos de crítica, de censura e de pretensões circenses. Jogando com crítica portuguesa, que chegara com escândalo ao Brasil, mas visando atingir principalmente os brasileiros, que lotavam o teatro de Dercy, mas não reconheciam publicamente seu valor, deu à peça um tom de desagravo ressentido. Dirigido pela própria comediante, o espetáculo anunciava que essa pretendia deixar para sempre o país, pois como dizia também Carlos Manga, por aqui ninguém gostava de teatro popular, só o público. Era para agradecer a fidelidade das platéias e rebater outros desprestígios que estava no palco naquele momento. E nesse tom de despedida, passava a desfiar lembranças caras ou decepcionantes, dando início ao ciclo memorialista e auto-celebrativo que haveria de adotar como fórmula uma década depois. Tanto que o mesmo texto se transformou, em 1987, no espetáculo Adeus, amigos, com o qual mais uma vez a atriz declarava dramaticamente sua retirada de cena, dessa vez para aposentar- se, voltando logo em seguida ao palco para mais vinte anos de espetáculos.

Na época, Dercy levou tão a sério o propósito anunciado na peça, que vendeu apartamentos, leiloou pertences e destruiu a maior parte das fotografias que documentavam sua carreira. Estava ressentida por não poder trabalhar à vontade no país ou fora dele. O caudilhismo português funcionara como um estopim para quem enfrentava a segunda ditadura em território nacional. Seu palhaço desistira. E como Dona Violante Miranda, a comediante resolvera mudar de vida: abriria um restaurante brasileiro em Miami e adeus teatro.

Porém, mal seu desabafo surtiu algum efeito, renunciou ao exílio, ficando A

131 com a revista Veja dedicando pela primeira vez à atriz capa e matéria186, na qual Sábato Magaldi sai em sua defesa:

Seu estilo está dentro da respeitabilíssima tradição da Commedia dell' Arte, quando o ator improvisava o texto. E, guardadas as devidas proporções, ela também está dentro da tendência muito atual de colocar o ator em primeiro plano, contando-se a si mesma. Esta é a base do Living Theater, onde a comunidade escreve e representa o que sente e não o que escreveu e sentiu o autor.(MAGALDI, 1971)187

Até mesmo Yan Michalski, que recentemente escrevera nos jornais que a peça era uma apelação demagógica188, compareceu para lamentar a partida e mais profundamente, os excessos populares da artista:

É preciso fazer justiça a Dercy porque ela fala exatamente a linguagem que seu público quer. (...) Ela possui uma limpeza técnica inegável, um verdadeiro distanciamento brechtiano que os atores intelectualizados quase nunca conseguem. (...) A obstinação de Dercy em ver o público das chamadas camadas menos privilegiadas como algo primário, a sua recusa em contribuir para que esse público desse sequer um passo para a conscientização, a sua ojeriza a qualquer idéia de renovação, tudo isso caracteriza uma posição revoltantemente reacionária. E a maior culpada pelo seu talento mal aproveitado talvez nem seja ela, e sim a estrutura social em que vive. Hoje, ou dentro de algum tempo, a menina pobre de Madalena talvez tivesse oportunidade de ir além do terceiro ano primário e aprender a usar melhor o seu precioso talento primitivo (MICHALSKI, 1971).

Incapaz de compreender o que a artista trazia à baila, o crítico a acusava de reacionária provavelmente muito mais pelo seu trabalho na televisão do que no teatro, onde não eram as camadas menos privilegiadas que a assistiam. E demagógico ou não, o desabafo da artista, especialmente depois que essa desistiu de deixar o país, funcionou como uma espécie de manifesto teatral bufonesco. Dissimulado em amargura pessoal, já que não podia explicitar no palco o que a fazia preferir ser qualquer coisa lá fora a ser rainha do Brasil, passava a chamar a atenção para os prejuízos daqueles tempos bicudos de AI-5. Talentos nacionais eram despachados a granel para o exterior ou porque eram perseguidos

186

Cf. CD: ARREPIANDO CARREIRA / A COMÉDIA Á BRASILEIRA VIRA SOLO – Imagem 19. Dercy na capa da Veja (1971).

187

Cf. A futura dama. In Revista Veja, 5 de maio de 1971. A reportagem conta ainda que por suas deferências críticas, Sábato Magaldi era respeitadíssimo pela atriz. Com medo de decepcioná-lo, esta recomendava ao elenco quando o percebia na platéia: Muita linha, que o Dr. Sábato está aí! 188

132 e exilados pela ditadura, ou porque se retiravam por conta própria, cansados de trabalhar quando não sob o autoritarismo e a abusiva censura da direita, sob o patrulhamento ideológico da esquerda. Era o caso de Paulo Francis, que se dava ao capricho de comparecer a todas as estréias de Dercy, apenas para ter do que falar mal nos jornais189. Só abandonou o ritual depois que O Pasquim, do qual também participava, reconheceu semelhanças entre a técnica de resistência da atriz e do semanário, ambas fundadas em autocrítica e humor, e lhe dedicou com pompa e circunstância, seu centésimo número.

Cumprida a tarefa de bobo da corte, espalhando aos quatro ventos as mazelas do artista brasileiro e decidida a não mais abandonar a terra natal, a comediante aproveitou a controvérsia que provocara e atacou de peça mais contundente, montando em 1972, Os Marginalizados, de Abílio Pereira de Almeida190.

A direção era de Freddy Kleeman, como Jacobbi, também ligado ao TBC. Contracenava com Lucy Fontes e Aparecida Pimenta, num cenário recoberto de jornais, signos da pobreza do ambiente no qual se desenrolava a história. Não deu outra: a censura entreviu denúncias nessa pobreza e temeu que houvesse nas manchetes da época um subtexto velado. Implicou especialmente com o título, solucionado imediata e prontamente pela artista, que conseguiu, sem mexer no cenário ou qualquer outro elemento de cena, recolocar a peça em cartaz sob o trocadilho incipiente de A pomba mecânica.

De 1974 são A dama do camarote e Tudo na cama ou O leito nupcial, adaptações de textos de Jean Hartog por Raimundo Magalhães Júnior. E além dessas, Liga

de Repúdio ao sexo ou Exército da Salvação, de Abílio Pereira de Almeida. Eram

“comédias ligeiras” e a comediante as tratou exatamente como tal, dando-lhes o

189

Dercy contava que por causa de Paulo Francis chegou a colocar um cartaz na porta do teatro proibindo a entrada de críticos e uma vez, vendo-o mesmo assim a platéia, não resistiu e soltou:

Pagou, hein, nego? (AMARAL, 1994: 124).

190

Cf. CD: ARREPIANDO CARREIRA / A COMÉDIA Á BRASILEIRA VIRA SOLO – Imagem 20. Cena de Os marginalizados (1972).

133 tratamento rápido da revista, com “empastelamento” cômico e curtas temporadas191.

A direção de Tudo na cama era de Olga Navarro, outra que já se destacara no teatro “sério”, interpretando Desejo, de O´Neill. A peça era um dueto cômico- dramático, escolhido por Dercy para dar visibilidade ao ator Fernando Vilar, pelo qual estava à época apaixonada (KHOURY, 2000:114), e dava oportunidade para os dois se exibirem, alternando cenas ou muito tristes, ou muito engraçadas. O ambiente em que o enredo evoluía era refinado, cheio de etiquetas e nove-horas e aí a atriz apoiava seu humor, inserindo com inesperada boas maneiras referências a flatulências e outros vicissitudes grotescas, que costumam atacar a intimidade de velhos casais.

Conta-se que numa noite, durante esse espetáculo, a região em que ficava o teatro sofreu um curto-circuito. A comediante já estava no palco e percebendo que a peça permitia, transformou-a por inteiro em um só grande caco, explorando comicamente tudo o que um casal podia inventar na escuridão. Quando o espetáculo acabou, a luz ainda não havia voltado, mas foi aplaudida de pé pelo público, que satisfeitíssimo, acabara de viver uma experiência teatral “de vanguarda”: a primeira comédia “às cegas” do teatro nacional. E depois os críticos diziam que a comediante não renovava...

No ano seguinte, convidada pelo Serviço Nacional de Teatro para gravar entrevista com Orlando Miranda, Gastão Nogueira, Maksen Luís e Colé, esse último justamente o “amigo da onça” que tentara um dia impedir sua exibição nos cassinos, comportou-se como uma lady. Tinha 68 anos, começava a virar memória nacional e sabia que nada melhor que o tempo para reparar certas injustiças. Além disso, a dura vida de artista, em especial em períodos de repressão, não aconselhava atritos internos. Obrigava era esconder e enganar, medidas de segurança que levava, inclusive, a dar a uma mesma peça dois títulos, ficando um de reserva para qualquer imprevisto. Ludibriar a censura era

191 Cf. CD: ARREPIANDO CARREIRA / A COMÉDIA Á BRASILEIRA VIRA SOLO – Imagens 21 a