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Dercy parodia Bibi e outras cenas de Dercy de peito aberto (1984).

Capítulo

A COMÉDIA BRASILEIRA VIRA SOLO.

32. Dercy parodia Bibi e outras cenas de Dercy de peito aberto (1984).

139 Em Burlesque, apresentada no Paladium, entre quadros de variedades, muitos deles de fonte circense, a comediante trazia à baila músicas do passado, como a famosa A Malandrinha e as aliava a sucessos recentes, não se esquecendo nem mesmo da incoerente A perereca da vizinha198.

Em fins de 90, a artista viajava com Burlesque quando sofreu acidente de carro e trincou a bacia. Foi obrigada a suspender o show e se restabelecia quando foi homenageada com os “préstitos carnavalescos” da Escola de Samba Unidos do Viradouro, grupo especial que desfilou na avenida com o tema Bravíssimo – Dercy

Gonçalves o retrato de um povo. Não teve dúvida: produziu-se toda, passou as

mãos na muleta e saiu com a escola em carro alegórico, tendo ao lado seu médico. Causou sensação, pois aborrecida com a frouxidão do corpete do vestido, que ameaçava desabar a toda hora, baixou-o até a cintura, deixando os seios à mostra como qualquer das vedetes-passistas. Era a longevidade exibindo conservadas fontes de vida e materializava na avenida, em versão bastante atenuada pelo individualismo contemporâneo, a “morte prenhe”, uma das principais alegorias da perpetuação coletiva da espécie na visão carnavalizada do medievo199.

Sua concepção otimista de mundo era de fato coletiva, pois do ponto de vista individual, sua saúde não ia bem. No final de 91 descobriu um câncer de estomago, mas já então estava de volta ao palco, explorando em São Paulo o sucesso do carnaval anterior com o espetáculo-solo Bravo, Bravíssimo! Insistiu com os médicos e adiou a cirurgia até poder arrecadar algum dinheiro com o show. Mas a situação era grave e todas as noites apresentava o espetáculo com uma ambulância estacionada à porta do teatro, pronta para qualquer emergência. A certa altura esta chegou, obrigando-a a sair às pressas, meio desmaiada, para o hospital Albert Einstein, onde foi imediatamente operada e se restabeleceu com presteza de causar espanto. A Globo, que por meio de seu amigo Boni a havia amparado economicamente, tratou imediatamente de recompensar os gastos,

198 Cf. CD: ARREPIANDO CARREIRA / A COMÉDIA À BRASILEIRA VIRA SOLO – Vídeo 2: cena

de Burlesque (1990).

140 colocando no ar entrevista de Maurício Kubrusli com a atriz ainda no quarto do hospital200. Além disso, tão logo esta voltou a cartaz com seu show, transformou-o em documentário apresentado em Terça Nobre e comercializado em vídeo201.

No espetáculo Dercy cantava mais uma vez A malandrinha202 e na ocasião, convidada por Abílio Tavares para dar uma entrevista ao público universitário do Tuca, encerrou a palestra com a mesma música e foi ovacionada. Aproximava-se da juventude e de uma só vez da academia. No ano seguinte, foi Patronesse da Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, e deixou registrada na instituição entrevista organizada e publicada posteriormente por Luis Carlos Lisboa203. E dois anos depois sai sua biografia autorizada, escrita em primeira pessoa por Maria Adelaide Amaral204. E nesse ano de 95 ainda recebe a primeira Medalha

Reginaldo Fortuna, concedida pelo Salão de Humor de Piracicaba aos maiores

destaques da cultura de humor no país, entre eles Jaguar, Millor, Claudius, Ziraldo e o palhaço Arrelia.

Em 1997, a atriz volta ao palco com Dercy, uma Lição de Vida. O texto era de

Maria Carmem Barbosa e a direção de Paulo José. Não só já imortalizada pelo reconhecimento e respeito de várias gerações, mas rejuvenescida por seguidas plásticas, comemorava com extravagante energia noventa anos de vida, dos quais setenta foram dedicados exclusiva e teimosamente à carnavalização. Por isso mesmo, ganhou novamente espetáculo no Municipal de São Paulo e dessa vez em sincero tributo a sua arte.

A peça foi a última que a atriz fez em longa temporada. Na década de seu centenário passara a viver da aposentadoria que lhe dera Silvio Santos, em parte para não ter nenhuma emissora afrontando a popularidade do SBT. Com isso, arranjara logo outro bordão: repetia a quem quisesse ouvir que o que queria era

200

Cf. CD: ARREPIANDO CARREIRA / COMÉDIA À BRASILEIRA VIRA SOLO – Imagem 34.

Maurício Kubrusly entrevista Dercy no hospital (Nov.1991).

201 Cf. CD: Idem – Imagem 35 e vídeos 3: Bravo, Bravíssimo! – Globo (1992).

202 Cf. CD: Idem – Vídeo 4: Dercy canta A malandrinha, em Bravo, Bravíssimo! (1992). 203

Cf. CD: Idem – Imagem 36. Publicação de 2002 com entrevista de Dercy Gonçalves para a Universidade Gama Filho, registrada em 1992.

141 trabalhar, mas Silvio pagava para não ter que exibi-la na televisão. Sugestivo é que se tornando “dono” do passe da atriz, o empresário reiterava sua condição de soberano da mídia popular no país. Para ter acesso à sua exorbitante presença era necessário pedir o aval de seu patrão, gentileza da qual nem mesmo a Globo abdicou. Dessa forma, a comediante compareceu eventualmente também em outras emissoras e não deixou de fazer teatro. Foi o caso de Um século de

espetáculo – Dercy por Dercy Gonçalves, apresentado no Rio, em junho de 2004,

somente às terças-feiras205. Baseava-se em Dercy de Cabo a Rabo e na falta do ator Luis Carlos, que antes lhe dava suporte, tinha participação especial de Homero Kossac, que desde que contracenara com a atriz em A mãe do Belo

Antonio na televisão, se tornara um de seus melhores amigos. Ou ainda da

aparição que fez em 2007 no Teatro dos Quatro, no Rio, em Pout-pour-rir, show escachado e irreverente, criado por Afra Gomes e Leandro Goulart. Ao aceitar a homenagem de uma trupe de novíssimos comediantes ao seu centenário, a mestra dos descomedimentos grotescos lhes dava, em contrapartida, reconhecimento e reforço. Entre tipos politicamente incorretos, como a professora de power-aché que está ali só para suprir as cotas raciais; a freira passista da escola de samba; o clone depressivo de Renata Sorrah e a Barbie-trash doidona, Dercy foi uma das entrevistadas no quadro de Marília Tagarela, feito por Luiz Aguiar. Deitou e rolou, mostrando-se ainda bem rápida e afiada nas improvisações. Terminou o show parodiando o romântico Roberto Carlos e atirando rosas vermelhas a torto e a direito na platéia206. Para quem começara cuspindo no público, não estava mal.

Mais ameno ou não, já então o estilo Dercy se alastrara e não só comediantes mais novos, mas de Miguel Falabella e Regina Casé a Marília Pêra e Zé Celso Martinez, muitos eram os artistas que ao seu modo faziam justiça às irreverências da carnavalização. No país do futebol e do carnaval, a encenação paródica popular só se revigorara. E eram merecidas as honras que se davam à excêntrica.

205

Cf. CD: ARREPIANDO CARREIRA / COMÉDIA À BRASILEIRA VIRA SOLO – Imagem 38.

Cena de Um século de espetáculo: Dercy por Dercy Gonçalves (2004). 206

Cf. CD: ARREPIANDO CARREIRA / A COMÉDIA À BRASILEIRA VIRA SOLO - Imagens 39 e 40; vídeo 5: Cenas e vídeo de Pout-pour-rire (2007)

142 Em 98, esta foi contemplada com o Prêmio Shell Especial por uma vida dedicada ao teatro e com exposição de fotografias da vida e carreira no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro. Em 2002, foi entrevistada copiosamente por Simon Khoury, que publicou um dos mais inteligentes diálogos com a artista, pela Editora Letras e Expressão. Ainda batizou com seu nome o Centro Cultural da Casa dos Artistas, em Jacarepaguá, e ganhou em Brasília evento demagógico às vésperas da eleição, recebendo do presidente Fernando Henrique Cardoso placa comemorativa aos setenta e cinco anos de carreira207. Bem diferente da década de 70, quando fora requisitada por Cravo Alvim, então diretor do Museu de Imagem e Som do Rio de Janeiro, para gravar entrevista e logo depois a fita fora confiscada e Alvim coincidentemente demitido do cargo (AMARAL, 1994: 232), homenagear a artista já podia render dividendos ao poder. Dercy foi receber a homenagem com as unhas pintadas de verde-amarelo e a bandeira do país na camiseta, mas manteve os olhos abertos. Perguntada pelos repórteres que cobriam o evento se apoiava a reeleição de FHC, disse bem a sua moda o que foi publicado somente em alguns jornais: no momento estava com Fernando Henrique, mas não havia ainda escolhido candidato a presidente.

Em 2004, recebeu com Martinho da Vila o título de “os mais cariocas do ano” na comemoração do aniversário do Rio208. Em Madalena, sua cidade natal, para somar-se ao Museu Dercy Gonçalves e aos dois bustos que inaugurara em períodos anteriores, ganhou estátua na praça principal, estreando a Calçada da Fama, onde ela e visitantes famosos deixaram as marcas das mãos209. Mas antes de tudo brasileira, em 2006, se tornou cidadã honorária da cidade de São Paulo210 e foi contemplada com a Ordem do Mérito Cultural, em Brasília, por ocasião da reinauguração do espaço que leva seu nome, no topo do Teatro Nacional Claudio

207

Cf. CD: Idem – Imagens 41 e 45. Centro Cultural Dercy Gonçalves. Dercy em Fernando Henrique Cardoso, em Brasília (2002).

208 Cf. CD: COMÉDIA À BRASILEIRA – Imagem 46. Com o também madalense Martinho da Vila,

os “mais cariocas” de 2004. 209

Cf. DVD: COMÉDIA À BRASILEIRA – Imagens 47 a 54. Estátua, bustos e Museu Dercy Gonçalves, em Madalena.

143 Santoro211. E finalmente, deu nome a um teatro, o do Grajaú Country Club, na Tijuca, bairro onde vivia desde a década de 40, por espantosa e feliz coincidência na Rua Senador Pompeu, que no início do século anterior fora a mais alegre e dançante das ruas bem comportadas do Rio de Janeiro212.

Suas últimas aparições no palco ocorreram em São Paulo, onde não só começou efetivamente, como se alavancou sua carreira. Em 2007, deu uma “canja” na peça Toilete, de Walcir Carrasco, no Teatro Gazeta213. E em 11 de julho de 2008, apenas cinco dias antes de seu falecimento, fez um talk-show no Bar do Nelson214, de propriedade da filha de Nelson Gonçalves. Estava gripada e com início de pneumonia, mas depois de responder às perguntas do público até cantou ao seu modo debochado o famoso Carinhoso, pois pretendia com a exibição entrar no Guiness Book como a atriz mais idosa do mundo. Bem que avisara: A

morte pra me pegar, vai ter que correr muito atrás de mim. Ou tem que esperar o espetáculo acabar (AMARAL, 1994: 268).

Mas o espetáculo não acabou. Para uma personagem que virou lenda e se tornou signo de libertário riso coletivo não há finitude. Há apenas transformação e continuidade. Desde 2008, Marília Pêra, grande artista de velha linhagem popular, prepara com Fafy Siqueira uma peça sobre a sua vida215. Deve estrear em 2009.

211 Cf. CD: Idem – Imagens 56 a 60. Placa comemorativa e Espaço Dercy Gonçalves, em Brasília. 212 Cf. CD: Idem – Imagens 61 e 62. Inauguração do Teatro Dercy Gonçalves, no Grajaú Country Club (2006). Dercy costumava dessacralizar as pretensões bem comportadas do bairro, dizendo que era a puta velha da Senador Pompeu, rua tranqüila e distinta que, segundo Gerson BRASIL (2000:145-182), fora no início do século XX uma das mais animadas ruas cariocas, aglutinando clubes dançantes de freqüência familiar, como o Argentino Clube, situado no número 111; O bloco dos Apaixonados, no 128; a Sociedade Eden Club, no 180; a Sociedade Jarra Amena, no 220 e a Sociedade Reinaldo da Silva, no número 246.

213 Cf. CD: ARREPIANDO CARREIRA / A COMÉDIA À BRASILEIRA VIRA SOLO – Imagem 63.

Dercy em Toilete (2007).

214 Cf. CD: Idem – Imagens 64 a 67. Vídeo 6. Talk-show no Bar do Nelson, São Paulo (jul. 2008). 215 Cf. CD: COMÉDIA À BRASILEIRA – Imagem 68. Fafy, Dercy e Marília Pêra (2008).

145 CAPÍTULO V