• Nenhum resultado encontrado

O CHUTE DE PETER WEISS

No documento peter_brook_ponto_de_mudanca.pdf (páginas 67-72)

Para que uma peça se pareça com a vida, é preciso que haja um constante movimento de vaivém entre o enfoque social e a visão pessoal, ou seja, entre o individual e o geral. As peças de Chekhov, por exemplo, contêm esse movimento. Detêm -se nas emoções de uma personagem, para logo cm seguida revelar um aspecto social

do grupo. Existe também outro movimento, entre os aspectos mais superficiais e mais profundos da vida. Quando este também se faz presente, a peça adquire uma textura infinitamente mais rica.

Desde seus inícios, o cinema descobriu o princípio da mudança de perspectivas, e as platéias de todos os cantos do mundo aceita­ ram tranqüilamente a gramática de plano geral e close. Shakespeare e os elizabetanos fizeram uma descoberta similar. Utilizaram a alternância entre a linguagem quotidiana e a linguagem elevada, entre prosa e poesia, para alterar a distância psicológica entre o público e o tema. O mais importante não é a distância em si, mas o contínuo movimento de vaivém entre vários planos. Foi esta qualidade que mais me impressionou quando li Marat/Sade de Peter Weiss pela primeira vez e achei que era uma ótima peça.

Qual é a diferença entre uma peça medíocre e uma boa peça? Acho que existe um modo muito simples de compará-las. 0 espetáculo teatral é uma seqüência de impressões: pequenos gol­ pes, um após outro, fragmentos de informação ou de sensações numa progressão que estimula a percepção da platéia. Uma boa peça emite muitas dessas mensagens, geralmente várias ao mesmo tempo, aglomeradas, conflitantes, sobrepondo-se umas às outras. Tudo isso excita a inteligência, os sentimentos, a memória, a imaginação. Numa peça medíocre, as impressões são muito espa­ çadas, sucedem-se em fila única, e nas lacunas o coração pode tirar um cochilo, enquanto a mente vagueia entre as preocupações do dia e as perspectivas do jantar.

Esse é o maior problema do teatro contemporâneo: como criar peças mais densas? Grandes romances filosóficos são geralmente muito mais longos do que novelas policiais, pois conteúdo ocupa mais páginas; m as a duração das grandes peças e das obras medíocres é praticamente a mesma. Um espetáculo de Shakespeare parece sempre melhor que os outros porque nos dá mais, a cada momento, pelo ingresso que pagamos. Isto se deve a seu gênio e também à sua técnica. As possibilidades do verso livre num teatro a céu aberto permitem que ele elimine os detalhes secundários e as ações realísticas irrelevantes, substituindo-os por uma profusão

de sons e idéias, pensamentos e im agens que fazem de cada instante um fascinante móbile.

Buscamos hoje uma técnica do século vinte que nos propicie a mesma liberdade. Infelizmente, o verso por si só não funciona mais. Mas existe outro recurso. Um recurso de incrível poder, inventado por Brecht, com o nome esquisito de “alienação”. Alienação é a arte de distanciar uma ação para que possa ser julgada objetivamente e assim considerada em relação ao m undo — ou melhor, aos m undos— que a cercam. A peça de Peter W eiss é um grande tributo à alienação e inaugura um novo e im portante caminho.

O uso que Brecht faz do “distanciamento” tem sido sem pre contraposto à concepção artaudiana do teatro como experiência subjetiva imediata e violenta. Nunca me pareceu que isso fosse verdade. Creio que o teatro, com o a vida, é constituído por um permanente conflito entre im pressões e raciocínios — ilusão e desengano coexistem penosamente e são inseparáveis. É exata­ mente o que Weiss consegue fazer. A começar pelo título (A

Perseguição eAssassinato d e Jean-PaulM arat Apresentadapelos Internos do Hospício de Cahrenton sob a Direção do M arquês d e Sade), tudo nesta peça destina-se a dar um direto no queixo do

espectador, depois mergulhá-lo em água gelada, daí forçá-lo a avaliar racionalmente o que lhe aconteceu, para então dar-lhe um chute no saco e depois trazê-lo novamente de volta à razão. Não é exatamente Brecht nem é Shakespeare tampouco, mas é muito elizabetana e extremamente contemporânea.

Weiss não utiliza apenas o teatro total, essa veneranda idéia de colocar todos os recursos do palco a serviço da peça. Sua força não reside apenas na quantidade de elementos que mobiliza; está sobretudo na dissonância causada pelo entrechoque de estilos. O lugar de cada elemento é definido pelo seu oposto — o sério pelo cômico, o nobre pelo popular, o literário pelo inculto, o intelectual pelo físico; a abstração é vivificada pela imagem cênica, a violência é iluminada pelo implacável fluxo de pensamento. As linhas de significação da peça perpassam através de sua estrutura, resultando

numa forma muito complexa. Como em Genet, é um salão de espelhos ou um corredor de ecos — e é preciso olhar para diante e para trás o tempo todo para chegar ao pensamento do autor.

Um crítico inglês atacou a peça alegando que era uma sofisticada mistura dos melhores ingredientes teatrais da moda— brechtianos, didáticos, do absurdo, do Teatro da Crueldade. A intenção era depreciativa, mas faço a citação como um elogio. Weiss captou a utilidade de cada uma dessas linguagens particulares e viu que precisava de todas. Assimilou-as completamente. Um conjunto de influências maldigeridas só pode gerar o caos. A peça de Weiss é forte, sua concepção central é surpreendentemente inovadora, seu perfil é definido e inconfundível. Pela experiência prática que tivemos, posso afirmar que a força do espetáculo está diretamente ligada à riqueza imaginativa do material. Esta, por sua vez, é conseqüência da pluralidade de níveis que operam simultaneamen­ te; e essa simultaneidade é resultado direto da ousadia de Weiss ao combinar tantas técnicas contraditórias.

A peça é política? É marxista, segundo Weiss, o que tem sido muito discutido. Não é certamente polêmica, no sentido de que não demonstra uma hipótese nem propõe um a moral. É claro que sua estrutura prismática não permite que se procure a idéia-chave na última linha. A idéia da peça é a própria peça, que não pode ser resumida numa frase qualquer. E incisiva ao tomar o partido da m udança revolucionária, mas com a dolorosa consciência dos vários aspectos de uma situação hum ana violenta, apresentando-os ao público sob a forma de um perturbador questionamento.

“O mais importante é pôr-se de pé puxando pelos próprios cabelos. Virar-se do avesso e olhar o mundo inteiro com novos olhos.”

— Marat

“Como?”, perguntará fatalmente alguém. Weiss sabiamente recusa-se a dizer. Força-nos a relacionar os opostos e encarar as contradições. Deixa-nos em carne viva. Em vez de definir um

significado, ele o procura e devolve a responsabilidade de encon- lrá-lo a quem ela realmente pertence. Não ao dramaturgo, mas a todos nós.

Parte III

PROVOCAÇÕES,

No documento peter_brook_ponto_de_mudanca.pdf (páginas 67-72)