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ESTRUTURAS DE SOM

No documento peter_brook_ponto_de_mudanca.pdf (páginas 143-147)

0 tema do primeiro ano de trabalho do Centro Internacional de Pesquisa Teatral era um estudo das estruturas dos sons. Nossa finalidade era descobrir de modo mais amplo o que constitui a expressão viva. Para tanto, precisávamos trabalhar fora do sistem a básico de comunicação teatral, tínhamos que nos despojar dos princípios da comunicação através de palavras com uns, signos comuns, referências com uns, linguagens com uns, gíria comum, imagística cultural ou subcultural comum. Aceitávam os a validade dessas linguagens tão funcionais e no entanto as descartávamos deliberadamente, da m esm a forma que certos filtros são usados para eliminar determinados raios afim de que outros possam scr vistos mais nitidamente. N o caso, uma forma cerebral da com ­ preensão, tanto para o ator como para o público, foi descartada a fim de que outra com preensão pudesse tomar seu lugar.

Os atores, por exemplo, receberam um trecho em grego arcaico. Não era dividido em versos, nem mesmo em palavras separadas; era apenas uma longa série de letras, como nos prim eiros m anus­ critos. O ator deparava-se com um fragmento: e l e l e u e l e l e u u p o - MAUSFAKELOSKAIFREENOPLEGEIS...

Pedimos que ele o abordasse como um antropólogo que tropeça num objeto desconhecido na areia. Aciência do arqueólogo é um a, a do ator outra; mas am bos usam seus respectivos saberes com o instrumentos de detecção e decifração. O verdadeiro equipam ento

científico do ator é uma capacidade emocional enormemente desenvolvida, com a qual ele aprende a captar certas verdades, discernindo o real do falso. Era esta faculdade que o ator punha em jogo, saboreando com a língua as letras gregas, escandindo-as com sua sensibilidade. Gradualmente, os ritmos ocultos no fluxo de letras começavam a se revelar, gradualmente as marés latentes de emoção erguiam-se em ondas que davam forma às expressões, até que o ator se descobrisse pronunciando-as com força e convic­ ção crescentes. Todos os atores descobriram inclusive que era possível usar as palavras com um sentido de significação mais rico e profundo do que se soubessem o que elas queriam dizer. Um sentido m ais profundo para si m esm os e para o espectador. Mas que sentido era esse? Odo ator? Não exatam ente— a improvisação pura e sim ples jamais poderia chegar a esse ponto. O do autor? N ão exatamente — pois o sentido era diferente a cada nova declam ação. No entanto, era a qualidade do texto que impregnava os atores. A verdade teatral é um a verdade conjunta feita de todos os elem entos presentes em determ inado momento, se ocorrer um a certa combustão.

Quando Ted Hughes veio pela prim eira vez a Paris para uma sessão de nosso trabalho, im provisam os para ele com sílabas aleatórias e depois sobre uma passagem de Ésquilo. Ele iniciou im ediatam ente seus próprios experim entos, tentando primeiro criar raízes de linguagem e depois o que descrevia como “grandes blocos de som ”.

D aí a Orghast foi sem dúvida uma longa e intrincada jornada. M as ao assumir a incrível tarefa de inventar uma linguagem fonética, Ted Hughes fazia, de m odo inusitado, o que fazem os poetas o tempo todo. Todo poeta opera em vários níveis semicons­ cientes — vamos chamá-los de A a Z. No nível Z as energias estão fervendo dentro dele, mas com pletam ente fora do alcance de suas percepções. No nível A elas foram apreendidas e moldadas numa série de palavras no papel. Entre os extrem os, nos níveis de B a Y, o poeta m eio que escuta, meio que cria sílabas que são capturadas ou expelidas por turbilhões de m ovim entos interiores. As vezes

ele percebe essas pré-palavras e pré-concepções como formas dinâmicas, às vezes como murmúrios ou padrões de som que ficam à beira de palavras, às vezes como valores m usicais que vão se tornando reconhecíveis e precisos. Na verdade, porém, não lhe são estranhas — ele convive com elas todo o tempo. A grande origi­ nalidade e ousadia de Ted Hughes consiste em trabalhar aberta­ m ente numa área que, em função do enorm e dom ínio e liberdade que adquiriu, tornou impossível separar som e sentido no subse­ qüente Orghast.

A situação é semelhante à do pintor abstrato. De início, apintura despertou irados protestos no mundo todo, clamando que uma criança ou o rabo do burro podiam fazer obras melhores. Hoje, a valiosa diferença entre, digamos, de Staël e um rabo de burro é inconfundível. Nosso trabalho também nos m ostrou a diferença entre letras aleatórias, letras de Ted Hughes e letras de Esquilo. Os princípios da autoria e da criação literária perm anecem intactos: apenas o nível de expressão e o grau de condensação diferem. Um poem a escrito em linguagem coloquial no nível A pode condensar anos de experiência em dez linhas. A escritura entre os níveis B e Y é mais densa; aí o princípio da com pressão é levado ao limite. Ted Hughes cristaliza suas experiências mais profundas na decisão que faz com que o radical silábico seja gra e não m no. Mas para um escritor, por certo, mergulhar nas profundezas da experiência pessoal não é necessariamente uma virtude. Afinal, a experiência de qualquer homem é sempre m iseravelm ente incompleta.

Um universo pessoal pode revelar-se em boa poesia, mas o drama precisa de algo muito diferente. O teatro procura refletir o mundo real, e um teatro conseqüente deve refletir mais do que o m undo particular de um só homem, por m ais fascinantes que sejam suas obsessões. Um autor tem que ser fiel a si m esmo, sabendo porém que deve criar material que reflita m ais do que ele próprio. Diante desta contradição Zen, não é de estranhar que o homem que conseguiu superá-la permaneça inigualável — ninguém até hoje conseguiu atrelar Shakespeare a um ponto de vista peculiar do bardo; a natureza aberta de sua obra é a m edida de seu gênio.

Com plena consciência desse dilema, Ted Hughes introduziu em Orghast (a peça) secções de grego arcaico e de Avesta, com o correspondente material temático conflitante, para ampliar o al­ cance do Orghast (a linguagem) para além dos limites particulares e pessoais.

Quando nos deparamos pela prim eira vez com o Avesta, através de um notável erudito persa, M ahin Tojaddod, que havia feito uma substancial pesquisa sobre a natureza do seu som, percebemos que havíamos nos aproximado da fonte de nossos estudos. O Avesta surgiu há cerca de dois mil anos atrás, como linguagem exclusi­ vamente cerimonial. Era uma linguagem para ser declamada de maneira própria em rituais cujo sentido era sagrado. As letras do Avesta trazem em si indicações cifradas sobre o modo de pronun­ ciar os sons específicos. Quando as indicações são seguidas, o sentido profundo começa a aparecer. No Avesta inexiste qualquer distância, mínima que seja, entre som e conteúdo. Ouvindo Avesta, nunca se dá o caso de alguém querendo saber “o que significa” . De fato, as traduções levam-nos imediatamente para o mundo incolor e insosso dos clichês religiosos. Ao ser falado, porém, o Avesta é pleno de significação, em razão direta da qualidade resultante do ato da fala.

O A vesta demonstrou que o que procurávamos podia ser en­ contrado, m as devia ser tratado com grande cuidado. Não pode ser copiado, não pode ser reinventado. Só pode ser explorado — e a exploração trouxe mais luz a questões que havíamos investigado o ano inteiro. Elas estavam no program a de Orghast, e o máximo que posso fazer é reproduzi-las aqui:

Qual é a relação entre teatro verbal e não-vcrbal? O que acontece quando gesto e som tomam-se palavra? Qual é o lugar exato da palavra na expressão teatral? Com o vibração? Conceito? Música? Existe algum a evidência soterrada na estrutura sonora de certas linguagens arcaicas?...

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