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MANIFESTO PARA OS ANOS SESSENTA

No documento peter_brook_ponto_de_mudanca.pdf (páginas 74-79)

Cultura nunca fez bem a ninguém. Nenhuma obra de arte jam ais tomou um homem melhor.

Quanto m ais broncas são as pessoas, mais parecem apreciar as artes.

Montar o repertório clássico não tem qualquer valor em si mesmo. Não há diferença intelectual entre uma remontagem de Ibsen e um musical.

O problema não é que queremos diversão, mas que não quere­ mos. Se o público realmente exigisse apenas diversão, todos os teatros do mundo: (a) ficariam totalmente vazios, de um a vez por todas; (b) começariam a apresentar obras muito m ais sérias.

A maldição de Stratford é estar sempre lotado. A s platéias aplaudem o s piores espetáculos assim como aplaudem os m elho-

U. s.

MANIFESTO PARA OS ANOS SESSENTA

C ultura nunca fez bem a ninguém. Nenhuma obra de arte jamais tom ou um hom em melhor.

Quanto m ais broncas são as pessoas, m ais parecem apreciar as artes.

M ontar o repertório clássico não tem qualquer valor em si m esmo. Não há diferença intelectual entre uma rem ontagem de Ibsen e um musical.

O problem a não é que queremos diversão, mas que não quere­ mos. Se o público realmente exigisse apenas diversão, todos os teatros do mundo: (a) ficariam totalmente vazios, de um a vez por todas; (b) com eçariam a apresentar obras m uito m ais sérias.

A m aldição de Stratford é estar sem pre lotado. A s platéias aplaudem os piores espetáculos assim com o aplaudem os melho-

res. Por que não insistem na diversão? Seríam os forçados a ofere­ cer-lhes mais conteúdo.

Dignidade é bobagem. Ninguém sabe quais eram os valores morais de Shakespeare. Só podemos nos basear no que encontra­ mos hoje em seus textos. Nenhum fólio ensina como levar uma platéia às lágrimas ou a uma vida melhor.

Quando alguém diz: “Não me com oveu”, o que lhe assegura que seus sentimentos são um confiável contador Geiger? Há sempre um crítico que diz que não se comoveu. Talvez seja verdade.

£

Inteligência é bobagem. Estamos produzindo uma geração de atores que têm pavor dos extremos. A grandiloqüência é falsa, o naturalism o é insípido, então eles ficam prudentemente no meio- termo. Em matéria de interpretação, a centelha está no meio mas os pólos ficam nas pontas.

Um ator não deve mostrar som ente aquilo que compreende: assim, reduzirá o mistério do papel ao seu próprio nível. Deve deixar que o papel projete através dele tudo o que nunca poderia atingir por si.

O Berliner Ensemble é a m elhor com panhia do mundo. Seu período de ensaios é extremamente longo. Em Moscou há peças que são ensaiadas por dois anos e são horríveis. É um azar — não uma prova de que longos períodos de ensaio são um erro.

Algum as pessoas gastam bem seu dinheiro, outras o desperdi­ çam: isto não prova que uma com panhia perm anente fique melhor por falta de fundos.

Quando os surrealistas falavam sobre o encontro do guarda-chu- va com a máquina de costura, tinham certa razão. Uma peça é um

encontro de opostos. Isto é harmonia teatral. O “agradível” é discórdia.

Q uando um a peça não afeta nosso equilíbrio é porque está desequilibrada.

Q uando um a peça reafirma algo que já sabemos, é inútil, A não ser, é claro, que reafirme a fé no poder do teatro para nos ajudar a enxergar m elhor.

O teatro social está morto e enterrado. A sociedade precisa de m udanças — mas vamos usar no mínimo armas adequadas. A televisão é um instrumento útil; mas usar um a peça para combater um a guerra é como tomar um táxi para o M am e.

O teatro social nunca chegará ao ponto central da questão com a necessária rapidez. O tempo perdido em ilustrações força-o a sim plificar o argumento— justificando a crítica de seus adversá­ rios. O B erliner Ensamble teve uma passagem avassaladora por Londres. D o que nos lembraremos: do talento ou da mensagem?

Tem os que confiar em Shakespeare. Tudo que há de notável em Brecht, B eckett e Artaud está em Shakespeare. Não basta afirmar um a idéia para que ela “pegue”: é preciso que fique gravada a fogo em nossa memória. Hamlet é uma dessas idéias.

Façamos um teste ácido: depois de dez anos, estaremos ainda marcados por algo que nos permita reconstruir mentalmente uma peça? Essa marca é como uma queimadura de ácido, assume a forma de uma silhueta—não apenas uma figura, m as um a imagem com forte carga emocional e intelectual. A partir desse núcleo resistente, podemos redescobrir os significados de toda a obra. Exemplos: Mãe Coragem puxando sua carroça, dois vagabundos sob uma árvore, um sargento dançando.

Em Shakespeare existe teatro épico, análise social, crueldade ritual, introspecção. Não há síntese, não há compromisso.

Não adianta usar pedaços de valores shakespearianos para jogar dramatuigicamente com eles, como cartas de um baralho. Um dramatuigo que possua o sentido shakespeariano da história sem a sua introspecção será tão nulo quanto um diretor com o sentido de espetáculo m as sem o conteúdo.

No entanto, todo mundo está farto de Shakespeare. Já assistimos todas assuas peças desconhecidas. Não podem os viver de remon- tagens das obras-primas.

Não pd em o s reconstruir um teatro shakespeariano por imita­ ção. Adotar um a técnica shakespeariana seria um erro. Embora morto, o dramaturgo evolui; nós permaneceremos estáticos. A encenação moderna já está tão mofada com o o telão pintado.

Não éo m étodo shakespeariano que nos interessa, mas a ambi­ ção de Shakespeare. A ambição de questionar as ações do indivíduo e da sociedade em relação à existência humana. Quintessência e pó. ,

Pensei que sabia de cor cada palavra dos Conselhos aos Atores (*). Outro dia ouvi a expressão “Forma e impulso...” Quais são nossas formas eímpulsos?

Quem se importa? Por que?

Podemos falar sobre habitação na TV. Podemos falar sobre o céu em igrejas vazias. No teatro, podem os perguntar se vale a pena m orar na casa e se queremos ir para o céu. Onde mais podemos fazer isso? Podemos falar sobre redução da jornada de trabalho e sobre lazer nos jornais. Se não discutirm os a qualidade de nosso lazer no teatro, onde mais poderemos fazê-lo? N o hospício?

* Hamlet, A to III, Cena II. (N.T.)

O s dramaturgos estão apavorados? Se não estão, os felizardos, que nos contem o segredo. Se estão, que escavem em seu terror. Se tiverem coragem de cavar além do psicológico, encontrarão um vulcão.

Se apenas descreverem esse vulcão, estarão nos mandando de volta à Idade das Trevas. Sc trouxerem esse vulcão interior à superfície, à luz da sociedade, a explosão será digna de ser vista.

Em Paris, ensaio chama-se repetição. É a mais implacável das acusações. Em Paris há uma companhia chamada Théâtre Vivant. Não pode haver nome melhor. “Vivant” é uma palavra tão vaga que não significa nada: para torná-la precisa, é preciso redefini-la o lempo todo.

Graças a Deus nossa arte não perdura. Pelo menos não estamos acumulando mais lixo nos museus. O sucesso de ontemé o fracasso de amanhã. Admitindo isso, poderemos sem pre recomeçar do zero.

No documento peter_brook_ponto_de_mudanca.pdf (páginas 74-79)