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FELIZ SAM BECKETT

No documento peter_brook_ponto_de_mudanca.pdf (páginas 47-52)

Pretendia escrever sobre a nova peça de Beckett, D ia s F elizes Ç*), porque havia acabado de assisti-la, estava muito em polgado e também chocado ao ver N ova Y ork tão indiferente. N esse m eio- tempo fui assistir ao filme de Alain Resnais O A n o P assado em

Marienbad. Depois li as declarações de Robbe-Grillet em defesa

de seu roteiro e descobri que quanto mais pensava sobre Beckett, mais tinha vontade de falar sobre Marienbad. Acho que o vínculo entre Beckett e M arienbad é que ambos tentam expressar em termos concretos o que à prim eira vista parecem abstrações inte­ lectuais. Interesso-me pela possibilidade de alcançar, no teatro, um a expressão ritual das verdadeiras forças-motrizes de nosso tempo, nenhuma das quais, acredito, é revelada nas p eripécias ou caracterizações dos personagens e situações das cham adas peças realistas.

O prodígio da peça de Beckett é sua objetividade. E m seus melhores momentos, Beckett parece dispor do poder de c ria r um a imagem cênica, uma relação dramática, uma m áquina teatral a partir de suas experiências m ais intensas. Elas vêm à luz num clarão inspirado, completas em si mesmas, sem informar, sem im por,

simbólicas sem simbolismo. Os símbolos de Beckett são poderosos exatamente porque não conseguimos compreendê-los totalmente; não são sinais de trânsito, náo são manuais escolares nem plantas técnicas — são, literalmente, criações.

Há m uitos anos dirigi uma produção de Entre Quatro Paredes, de Sartre. H oje não consigo lembrar de um a só palavra do diálogo, de nenhum detalhe da filosofia. Mas a im agem central da peça — o inferno constituído por três pessoas trancadas num eterno quarto de hotel — continua dentro de mim. Não surgiu da inteligência de Sartre, com o as outras peças dele, mas de outro lugar — num momento inspirado, o autor criou uma situação cênica que, a meu ver, é um dos termos de referência de toda nossa geração. Para todos os que viram a peça, é mais provável que a palavra “inferno” evoque aquele quarto fechado do que fogo e forquilhas.

Antes que Édipo e Hamlet fossem concebidos na mente de seus autores, todas as características espelhadas por esses personagens deviam existir como nebulosos e informes fluxos de experiência. Veio então um poderoso ato criador— e surgiram os personagens, dando forma e substância a essas abstrações. Lá está Hamlet: podemos tom á-lo com o referência. De repente, o primeiro “jovem rebelde”, Jim m y Porter, estava lá— não podem os livrar-nos dele. Num dado m omento a Provence de V an Gogh veio à luz — inescapavelmente — assim como o deserto de Dali.

Podemos definir um a obra de arte como algo que traz uma nova “coisa” ao m undo — algo de que podemos gostar ou não, mas que teimosamente continua a existir e, queiramos ou não, toma-se parte de nosso quadro de referências? Se assim for, voltam os novamente a Beckett. Foi exatamente o que ele fez com aqueles dois vaga­ bundos debaixo de um a árvore (*). O m undo inteiro sentiu que uma coisa vaga se materializava naquela im agem absurda e terrí­ vel. E tam bém naqueles pais em latas de lixo (**).

* Em Esperando Godot, de Samuel Beckett. (N.T.) '* Em Fim de Partida, de Samuel Beckett. (N.T.)

Agora conseguiu de novo. Uma mulher está sozinha no meio do palco, coberta por um monte de terra até a altura de seus (fartos) seios. Tem ao lado uma enorme bolsa, da qual tira todas as miudezas eventualmente necessárias, inclusive um revólver. Bri­ lha o sol. Ela está — onde? Numa espécie de terra-de-ninguém? Depois da Bom ba? Não sabemos. Mais atrás, numa dúbia região anal, seu m arido sobrevive a duras penas. As vezes, de gatinhas — e uma vez de cartola e casaca— ele emerge; na m aior parte do tempo é só um grunhido, um resmungo, ou apenas um débil guincho. U m sino toca: é manhã. Toca o sino: é noite. A mulher sorri. O tem po, imagina ela, não passa. Todo dia é um dia feliz.

No últim o ato o monte subiu até seu pescoço, os braços estão presos mas a cabeça permanece livre, tão animada e jovial como antes. Será que ela pressente que nem tudo vai bem ? Sim, fugaz­ mente — em breves instantes maravilhosamente captados. O marido rasteja para fora pela última vez. Estira-se ansiosam ente — em direção ao rosto dela? Ou para o revólver, que está ao lado? Ficamos sem saber.

O que significa tudo isto? Antes de arriscar um a explicação, devo advertir que não será a explicação: admiro a peça porque não é um tratado — portanto, qualquer explicação é um a visão parcial do todo. Trata-se sem dúvida de uma peça sobre o desperdício da vida, sobre possibilidades perdidas: de modo côm ico e trágico mostra-nos o ser humano atrofiado, paralisado, sem i-inutilizado, quase m orto— mas, grotescamente, convicto apenas de que é feliz por estar vivo. É um retrato de nós mesmos, num eterno sorriso forçado — não como Pagliacci ria outrora, para esconder um coração partido, mas porque ninguém nos avisou que nosso cora­ ção parou de bater há muito tempo.

O tema é bastante perturbador, reale vital para qualquer público contemporâneo — sobretudo o de Nova York, que o rejeitou. N ão vejo como este assunto possa ser expresso de um m odo m ais “realista”. É um grito desesperado, mas ao m esmo tem po envolve algo muito positivo, talvez mais positivo do que qualquer outra obra de Beckett. Trata-se de um paraíso perdido focalizando

homem, o homem apenas, nada mais; ao mostrar o homem privado da maioria deseus membros, deixa implícito que as possibilidades estavam lá, e ainda estão, soterradas, ignoradas. Ao contrário das outras peças de Beckett, não é apenas uma visão da degradação da condição humana; é uma investida contra nossa cegueira fatal.

A obra já contém em si uma resposta à crítica óbvia de que se trata apenas de outra peça pessimista e depressiva. Pois a mulher que nos olha aboletada em seu monte, tão confortavelmente como nós nas poltronas do teatro, é a própria imagem do otimismo fácil. É a imagem pública (e dos críticos) em qualquer peça (ou filme) que em duas horas soluciona todas as dúvidas, afirmando leviana­ mente que a vida é boa, que há sem pre uma esperança e que tudo vai acabar bem. É a imagem da m aioria de nossos políticos, com um sorriso forçado de orelha a orelha e soterrados até o pescoço.

Há uma longa distância e um pequeno passo até O A no Passado

em Marienbad, Convém dizer, para quem não assistiu, que o filme

é uma tentativa de rom per radicalmente com a mera convenção de que o tempo é consecutivo. Assumindo a perspectiva da sensibi­ lidade e experiência deste meado de século, os realizadores refutam a noção de que o passado é o passado e de que os eventos do presente sucedem-se em ordem cronológica. É assim que o tempo passa nos filmes, diriam eles, por um a convenção totalmente arbitrária, superficial e irreal dos cineastas. Para o sujeito, o tempo pode ser uma justaposição de experiências fugidias e nada tem a ver com o tempo dos objetos, que permanecem intactos pelo transcorrer dos eventos. Tem po no cinem a é o momento de olhar uma tomada—e pode não haver diferença entre uma tomada do passado ou do futuro. O ato de ver um filme é uma seqüência de “agoras”. O filme é um a apaixonada série de “agoras” — monta­ gem não é ordem, são relações.

Em Marienbad, num castelo bávaro profusamente ornamentado ■t- ostensivamente um hotel — um homem e uma mulher trocam fragmentos despedaçados de m eras relações; não há seqüência de tempo ou de sentido, m as apenas progressão de atitude para atitude.

P assad o e presente coexistem lado a lado, interagindo o tempo todo en tre si, um contra o outro, em infinitas repetições e modulações.

O film e é um a experiência temporal— e explora certos aspectos que há m uito desejo ver. Gostaria de poder dizer que gostei do resultado. M as curiosamente, entre um ponto de partida (a meu v er) totalm ente correto e uma execução soberba (direção, fotogra­ fia e enquadram ento são magistrais), o filme malogra completa­ m ente. A chei-o vazio e pretensioso, artificial e imitativo.

O p roblem a é que os autores deixaram-se levar pelo fascínio de sua experiência, nada mais. A série de imagens que nos apresentam — e neste caso poderia compará-las desfavoravelmente às de B eckett — é inexpressiva; é o abstrato/abstrato em contraposição ao abstrato/concreto. Pode-se alegar que minha reação é comple­ tam ente subjetiva; as imagens que considero inexpressivas podem ser m uito perturbadoras para outrem. E possível, mas o que estou tentando provar é que há uma gigantesca diferença — que todos podem os constatar objetivamente— entre o real e o inexpressivo, entre u m Picasso e o pincel amarrado no rabo do burro.

Sinto que o mundo de Marienbad— onde a monotonia letal da riqueza é simbolizada por tipos com cara de zumbis vestindo

sm okings e longos de Chanel, sentados em grupos elegantemente

estáticos ou em intermináveis jogos silenciosos— é uma ilustração intelectual usando material visual que já cansamos de ver há anos no ballet, nos filmes de Cocteau e semelhantes. Daí às imagens inesquecíveis, perturbadoras e provocantes criadas por Beckett há um a longa distância.

M esm o assim, o filme é uma experiência radical e seu interesse, para m im , está em sua relação com o teatro.

M arienbad reforça minha convicção de que no teatro, mais

ainda do que no cinema, não precisamos aceitar as limitações de tem po, personagem ou enredo. Não precisamos usar nenhum a dessas m uletas tradicionais— e mesmo assim podemos continuar sendo concretos, dramáticos e substanciosos.

A arte da música serial consiste em tomar um a série d e notas — como norma a ser observada — e então confrontar essa norma

com a sensibilidade e o desejo do compositor. A candente amorfia defronta-se com uma forma rígida, forjando-se nova cadeira de ordem. Tome-se um palco e quatro personagens: neste átomo já existe um infinito de possibilidades. (Em certo sentido, Beyond the

F ringe é isso, e vejam que brilhantes variações ela engendra.)

Quatro personagens — ou melhor, quatro atores, pois o ator pode ser velho e moço, coerente e incoerente, uma pessoa ou muitas— e aqui já temos ura conjunto de relações a partir do qual, como caixas chinesas, outras relações — ternas, farsescass dramáticas — podem desenvolver-se. N este caso o valor do trabalho— como na pintura abstrata, como na música serial— será umreflexo direto da natureza do próprio dramaturgo: sua natureza no sentido mais profundo, sua imaginação, sua experiência e a incessante relação dialética entre a sociedade e seu temperamento.

No documento peter_brook_ponto_de_mudanca.pdf (páginas 47-52)