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ciência continua sendo a que melhor pretende deter-nos neste mundo

No documento Jorge Luis Borges: um crítico da linguagem (páginas 183-186)

simplificado, absolutamente artificial, alienado e falsificado para nosso uso, porque essa ciência também, apesar dela mesma, ama o erro, uma vez que por ser vivente ama a vida.” (NIETZSCHE, 2001, p.36).

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Sobre a reflexão contemporánea sobre a linguagem, em geral, e sobre o ensaio nietzschiano, em particular, Whanon (1995, 37) lembra que “existe un acuerdo casi generalizado en ver a Nietzsche en el comienzo de la desconfianza contemporánea hacia el lenguaje y, por tanto, de lo que se viene llamando la crisis del sentido o de la verdad. Su famoso ensayo Sobre verdad y mentira en sentido extramoral […] es el único que Nietzsche dedicó por entero a la cuestión del lenguaje. Nietzsche desconstruye en este ensayo la vieja oposición conceptual entre lenguaje literal y lenguaje figurado con su teoría del carácter retórico o metafórico del lenguaje”.

na inteligência desenvolvida para a conservação da vida, e logo para a obtenção de poder, extremos que exigem do homem um exercício particular: a dissimulação e o engano. Engano que se processa pela linguagem e que, se poderia dizer, sustenta ou dá força a cada uma das ideias da “Introdução teorética”, pois, como diz Paul de Man (1996, p.133), em “Retórica de tropos (Nietzsche)”, o ensaio nietzschiano “afirma claramente a necessária subversão da verdade pela retórica como uma característica particular de toda linguagem”.

Já a fábula que abre o ensaio exibe a ideia nietzschiana de uma falsa aproximação entre a linguagem e a verdade, entre as palavras e o mundo, relação que só pode ser entendida no escrito a partir desse “minuto arrogante e mentiroso” onde os débeis seres humanos, esses “animais inteligentes” dessa pequena estrela, inventaram por necessidade o conhecimento e a verdade:

Em qualquer canto longínquo do universo difundido no brilho de inumeráveis sistemas solares, houve certa vez uma estrela na qual animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais arrogante e mais ilusório da "história universal": mas não foi mais que um minuto. [...] Na qualidade de um meio de conservação para o indivíduo, o intelecto desenvolve suas principais forças na dissimulação; este é com efeito o meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos robustos, subsistem, porquanto não lhes é permitido manter uma luta pela existência com os chifres ou com a presa pontiaguda de um predador. Com o homem esta arte da dissimulação atinge seu auge: a ilusão, a lisonja, a mentira e o engano, as intrigas, os ares de importância, o brilho fingido, o emprego da máscara, o véu da convenção, a comédia para os outros e para si mesmo, em poucas palavras, o circo perpétuo da lisonja a uma chama de vaidade nele são de tal maneira a regra e a lei, que quase nada se torna mais inconcebível que o aparecimento de um puro e honesto instinto de verdade entre os homens. (NIETZSCHE, 2001, p.64-65)

Nesta fábula nietzschiana, aquilo que o homem entende por verdade se aproxima dessa atividade subversiva que a linguagem

desenvolve com o intuito de responder a uma necessidade humana de subsistência119. O instinto de conservação do homem e a sua linguisticidade configuram os alicerces onde descansam as farsas ou ilusões que se chamam ou se fixam como a verdade, “designação uniformemente válida e obrigatória para as coisas” que a legislação da linguagem impõe. Para Nietzsche, assim nasce o contraste entre a verdade e a mentira, situação que permite que um mentiroso utilize designações ou convenções válidas, as palavras, para que aquilo que não é real o pareça. Convenções que permitem, segundo o filósofo, que o homem, por sua capacidade de esquecer, acredite que possui uma verdade:

É somente graças à sua capacidade de esquecer que o homem pode chegar a crer que possui uma ‘verdade’ [...]. Se não quiser se contentar com a verdade na forma de tautologia, quer dizer, contentar-se com embalagens vazias, permutará eternamente ilusões por verdades. O que é uma palavra? A representação sonora de uma excitação nervosa. Porém, de uma excitação nervosa inferir uma causa exterior a nós já é o resultado de uma aplicação falsa e injustificada do princípio da razão. (NIETZSCHE, 2001, p.67)

E é justamente a impossibilidade de suportar indefinidamente este exercício de dissimulação e engano o fato que leva aos homens a celebrar um contrato social com seus congêneres, para estabelecer aquilo que será considerado como verdade e assim poder protelar sua simulação. Assim, essa verdade nascida de um pacto, convencionada, tem validade e obrigatoriedade para os integrantes da sociedade que, para alcançar seus objetivos, usam a linguagem120. Ou seja, a

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Para Cavalcanti, no ensaio nietzschiano encontra-se a ideia de uma linguagem entendida como uma atividade instintiva própria do homem que se vincula a estratégias de vida características da espécie e do indivíduo, pois na “Introdução teorética”, o intelecto humano se apresenta “como um meio de conservação de indivíduos mais fracos e menos robustos, que deviam lutar pela sobrevivência sem dispor de chifres ou garras” (CAVALCANTI, 2005, p.58- 59).

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Sobre este ponto, para Suarez, existiria no raciocínio nietzschiano um encobrimento de uma enigmática realidade intangível, pela percepção e pela linguagem, seguido de uma dissimulação desse encobrimento. Assim, “o ser

linguagem, é quem decide, definitivamente, aquilo que será verdade e aquilo que será mentira, debilitando desta forma a ideia que aponta a verdade como uma espécie de adequação entre o referido e o fato que se alude. Neste entendimento, Rosana Suarez ilustra lembrando que Nietzsche rechaça a hipótese tradicional que entende a verdade como adequação, pois para o filósofo alemão entre o perceber e o ser existiria uma “apropriação”, uma percepção que dá forma ao percebido, assim como entre o perceber e o dizer existiria um novo hiato, “pois o registro linguístico, sonoro ou gráfico transporia, alteraria mais uma vez o percebido, ainda que com a intenção de imitá-lo. Assim sendo, a cadeia entre o ser e o dizer seria parcial, contingente, estilizada, ‘artística’, ‘metafórica’” (SUAREZ, 2011, p.104).

E é justamente a metáfora da moeda a que explica, na “Introdução teorética”, este pacto humano que possibilita que as

supostas verdades sejam acunhadas na superfície daquela

realidade/matéria-prima original que se torna esquecimento ao virarem conceitos:

O que é então a verdade? Uma multiplicidade incessante de metáforas, de metonímias, de antropomorfismos, em síntese, uma soma de relações humanas que foram poética e retoricamente elevadas, transpostas, ornamentadas, e que, após um longo uso, parecem a um povo firmes, regulares e constrangedoras: as verdades são ilusões cuja origem está esquecida, metáforas que foram usadas e que perderam a sua força sensível, moedas nas quais se apagou a impressão e que desde agora não são mais consideradas como moedas de valor, mas como metal. (NIETZSCHE, 2001, p.69)

As relações humanas e as verdades pactuadas entre os homens se atrelam fortemente à linguagem como meio organizador e criador de regras de convivência que se sustentam na comunicação linguística.

No documento Jorge Luis Borges: um crítico da linguagem (páginas 183-186)