• Nenhum resultado encontrado

A LINGUAGEM NA ÉPOCA MEDIEVAL EM BORGES

No documento Jorge Luis Borges: um crítico da linguagem (páginas 131-138)

palavras podem fornecer um conhecimento real e verdadeiro, ou se a apreensão

2.2 A LINGUAGEM NA ÉPOCA MEDIEVAL EM BORGES

Tanto a problemática e as discussões sobre a linguagem que dominam o pensamento desde os pré-socráticos até o período onde surge uma Filosofia da Linguagem, a Idade Moderna, podem ser rastreadas na obra borgeana. Por isso os pensadores e a reflexão da Idade Média não são uma exceção nas letras do escritor argentino, onde não faltam referências a Santo Agostino, Santo Tomás de Aquino ou Guilherme de Ockham.

Sobre este período, Ashworth (2008, p.100) afirma que, a partir do ano 1150, começam a ocorrer profundas mudanças ao serem recuperadas, conjuntamente com outros textos, as restantes obras lógicas de Aristóteles, o que ocasiona um importante desenvolvimento nas

73

Sobre esta corrente de reflexão, Palma (2010, p.142) lembra que Aristóteles entende as ideais universais como generalizações e que os nomes que as identificam são arbitrários, pensamento nominalista que quebra o vínculo natural entre os homens e as coisas abrindo um hiato inevitável que leva a duas soluções: uma é procurar um tipo de linguagem que se ajuste à realidade de forma parcial ou total; a outra é admitir a imperfeição natural da linguagem para atingir o real, ou seja, aceitar sua impossibilidade para representar o mundo como é. E é justamente esse nominalismo, que gera um espaço forçoso entre a palavra e a coisa, o pensamento que, segundo alguns críticos como Rest (2009) ou Zulma Mateos (1998), sugere uma predileção filosófica do escritor argentino pelo filósofo grego. Sobre este ponto, assinalam-se as palavras de Rest (2009, p.65) quando afirma que, observado o conjunto de sua obra, Borges deve ser considerado como um representante do pensamento nominalista aristotélico; e as de Mateos (1998, p.23) quando lembra que: “El lenguaje: el máximo instrumento del hombre como expresión de su racionalidad es descubierto como un mediador ineficaz y un constructor de ficciones, al punto de que no hablamos sobre la realidad sino sobre la ficción creada. Por esta razón, las filosofías -fruto de la racionalidad y el lenguaje- no son más que una coordinación de palabras que no son reflejo de nada. A partir de esta concepción, se entiende su [de Borges] clara postura nominalista”.

novas áreas da lógica. E já na segunda parte do século XIII aparecem os gramáticos especulativos, pensadores que propõem um retorno parcial aos temas filosóficos da gramática:

[...] a gramática tinha de lidar com o que é comum a todas as linguagens. Encontraram esse fator comum no postulado paralelismo entre os modos de ser das coisas (modos essendi), os modos de entendimento da mente (modi inteligendi) e os modos de significação das palavras (modi significandi). Eles não se encontravam, no entanto, compromissados com a visão de que a linguagem espelha o mundo. (ASHWORTH, 2008, p.99)

E nessas mudanças do novo período histórico, se sobressaem alguns pensadores que incursionam ou dedicam suas reflexões às problemáticas ou questionamentos atrelados à linguagem. Uma dessas personalidades da Idade Média é Santo Agostinho (354-430). Este pensador, que forma parte da patrística74, declara em seus textos que a palavra significa, primeiramente, a ideia e, através desta última, a coisa designada. Por tal motivo, o conceito, para Santo Agostinho75, seria uma espécie de palavra interior ou verbo interno. E o que os homens querem comunicar é esse verbo interno, que é igual para todos, e para tal finalidade devem utilizar os verbos externos (orais ou escritos), que são diversos nas diferentes línguas (BEUCHOT, 2005, p.56).

E sobre essa relação interno-externo tão característica do pensamento agostiniano, Gadamer (1997, p.542) adverte que a analogia entre a palavra interior e a exterior, esse fato de que uma palavra se faça som na “Vox”, assume na Patrística, um caráter paradigmático. E isso se

74

A época patrística é conhecida como o momento histórico que corresponde à produção dos grandes padres da igreja no que concerne à formação do pensamento cristão desde o campo teológico, mas também desde o filosófico em diálogo com a filosofia grega e romana (BEUCHOT, 2005, p.51). Segundo Gadamer (1997, p.545), na patrística (que se apoia nas ideias da Antiguidade tardia, mas também as transforma), a compreensão cristã se aproxima do conceito de “logos” da filosofia grega clássica, pela recepção da filosofia aristotélica.

75

É importante salientar que assim como para Aristóteles a linguagem se faz possível pelo pensamento e é sua expressão (pela linguagem se vai até a coisa), para Santo Agostinho o pensamento é a condição de possibilidade da linguagem e não existe linguagem sem ele (BEUCHOT, 2005, p.56).

dá porque, no começo, está a criação por meio da palavra divina, o que permite que os primeiros padres da Igreja aludam ao “milagre da linguagem” para declarar um pensamento tão pouco grego como é a criação. Neste sentido, Gadamer (1997, p.542) acrescenta que:

No próprio Prólogo de João vem descrita, a partir da palavra, a verdadeira ação salvadora, o nascimento do Filho, o mistério da encarnação. A exegese interpreta que o fato de a palavra tornar- se som é um milagre igual ao fato de Deus tornar- se carne. O ‘tornar-se’, de que se trata em ambos os casos, não é um tornar-se no qual algo se converte noutra coisa diferente.

Entre esses milagres que a exegese aponta, segundo Gadamer (1997, p.543), o maior deles não seria que a palavra se torne carne e se manifeste no ser exterior, mas que aquilo que manifestado e expressado em sua exteriorização seja sempre palavra. Também sobre as particularidades da patrística, o filósofo alemão observa que a existência de uma íntima proximidade entre a palavra e Deus possibilita que a problemática da linguagem se vincule diretamente ao pensamento. Assim, citando o caso de Santo Agostino, Gadamer lembra a desvalorização da palavra exterior e da multiplicidade de línguas por parte do pensador da igreja, em detrimento do verbo que, longe da palavra externa e da sua simples reprodução interna, não pode ser manifestado verdadeiramente em língua nenhuma:

A “verdadeira” palavra, o verbum cordis, é inteiramente independente dessa manifestação. [...] Essa palavra interior é o espelho e a imagem da palavra divina. Quando Agostinho e a escolástica tratam do problema do verbo para ganhar meios conceituais para o mistério da trindade, seu tema é exclusivamente essa palavra interior, a palavra do coração e sua relação com a intelligentia. (GADAMER, 1997, p.543)

E embora existam ideias agostinianas muito ricas para a discussão sobre a linguagem no que concerne a essa palavra exterior à “verdadeira” palavra, na textualidade borgeana as referências a Santo Agostinho estão vinculadas geralmente às considerações sobre o tempo

e a criação. Já em 1925, em “Ejercicio de análisis”76, notam-se algumas ponderações borgeanas sobre a poesia em que se citam os pensamentos de Santo Agostinho sobre o tempo:

NI VOS NI YO ni Jorge Federico Guillermo Hegel sabemos definir la poesía. Nuestra insapiencia, sin embargo, es sólo verbal y podemos arrimarnos a lo que famosamente declaró San Agustín acerca del tiempo: ¿Qué es el tiempo? Si nadie me lo pregunta, lo sé; si tengo que decírselo a alguien, lo ignoro. Yo tampoco sé lo que es la poesía, aunque soy diestro en descubrirla en cualquier lugar: en la conversación, en la letra de un tango, en libros de metafísica, en dichos y hasta en algunos versos. (BORGES, 1995, p.99)

Também em “Una vindicación del falso Basílides”, em

Discusión, observa-se o seguinte:

El universo, según deja entender San Agustín, no comenzó en el tiempo, sino simultáneamente con él -juicio que niega toda prioridad del Creador. Strauss da por ilusoria la hipótesis de un momento inicial, pues éste contaminaría de temporalidad no sólo a los instantes ulteriores, sino también a la eternidad "precedente" (BORGES, 2004, p.215- 216).

Ideia sobre a criação e o tempo que se complementa com o manifestado em “La creación y P.H. Gosse”, em Otras inquisiciones, quando o escritor argentino assinala que: “El primer instante del tiempo coincide con el instante de la Creación, como dicta San Agustín, pero ese primer instante comporta no sólo un infinito porvenir sino un infinito pasado. Un pasado hipotético, claro está, pero minucioso y fatal” (BORGES, 2002b, p.29).

Mas no que se refere especificamente às ideias borgeanas e agostinianas conectadas ao pensamento sobre a linguagem, é significativo lembrar os conceitos vertidos no texto borgeano “El culto

76

Este artigo, que forma parte de El tamaño de mi esperanza, foi originalmente publicado na Revista Proa, segunda época, de Buenos Aires, ano 2, n° 14, em dezembro de 1925 (BORGES, 2007b, p.552).

de los libros” em Otras inquisiciones. Neste escrito, são indicadas interessantes ponderações sobre a leitura e a oralidade:

San Agustín fue discípulo de San Ambrosio, obispo de Milán, hacia el año 384; trece años después, en Numidia, redactó sus Confesiones y aún lo inquietaba aquel singular espectáculo: un hombre en una habitación, con un libro, leyendo sin articular las palabras. Aquel hombre pasaba directamente del signo de escritura a la intuición, omitiendo el signo sonoro; el extraño arte que iniciaba, el arte de leer en voz baja, conduciría a consecuencias maravillosas. Conduciría, cumplidos muchos años, al concepto del libro como fin, no como instrumento de un fin. (Este concepto místico, trasladado a la literatura profana, daría los singulares destinos de Flaubert y de Mallarmé, de Henry James y de James Joyce.) A la noción de un Dios que habla con los hombres para ordenarles algo o prohibirles algo, se superpone la del Libro Absoluto, la de una Escritura Sagrada. Para los musulmanes, el “Alcorán” (también llamado El Libro, Al Kitab), no es una mera obra de Dios, como las almas de los hombres o el universo; es uno de los atributos de Dios como Su eternidad o Su ira (BORGES, 2002b, p.92).

E assim como Borges recupera da patrística algumas ideias de Santo Agostinho, em “De las alegorías a las novelas”, considerando o realismo e o nominalismo como duas formas de intuição filosófica da realidade, o escritor argentino alude ao pensador da Alta Idade Média, Pedro Abelardo (1079-1142):

[…] las dos tesis [realismo e nominalismo] corresponden a dos maneras de intuir la realidad. Maurice de Wulf escribe: “El ultrarrealismo recogió las primeras adhesiones. El cronista Heriman (siglo XI) denomina antiqui doctores a los que enseñan la dialéctica in re; Abelardo habla de ella como de una antigua doctrina, y hasta el fin del siglo XII se aplica a sus adversarios el nombre de moderni” (BORGES, 2002b, p.124)

Embora Abelardo não seja um pensador muito recorrente nos escritos borgeanos, seu mérito radica em que pode ser considerado como o primeiro pensador que trata a linguagem a partir de seu aspecto primordial do som. De Abelardo surge a ideia, por exemplo, de que as vozes ou palavras são estatuídas por imposição dentro da comunidade de falantes e que a matéria que conforma as vozes são os sons (BEUCHOT, 2005, p.66).

Outro dos representantes da escolástica que é apontado na textualidade borgeana é Santo Tomás de Aquino (1225-1274), pensador que, segundo Ashworth (2008, p.110), postula a existência de uma palavra interior que captura a essência da coisa nomeada e que está além de qualquer correspondência entre um som arbitrário e uma essência. Sobre este ponto, Gadamer (1997, p.546) lembra as peculiaridades dessa palavra interior assinalando que esta não está referida a uma língua determinada, pois ela não se vincula ao dizer, mas ao pensar. Ela constitui a perfeição do pensar e, na medida em que tal palavra o expressa, reproduz, de certa forma, o caráter finito da compreensão discursiva dos homens. E também sobre a relação entre a palavra e a coisa em Tomás de Aquino, Gadamer (1997, p.549) assinala que no pensador da patrística:

A palavra é como um espelho, em que se vê a coisa. Mas o que há de especial nesse espelho é que em momento algum ultrapassa a imagem da coisa. Nele não se reflete nada mais que essa única coisa, de tal modo que em tudo que é, enquanto tal não faz senão reproduzir sua imagem (similitude). O magnífico dessa imagem é que a palavra é concebida, aqui, como um reflexo perfeito da coisa, como expressão da coisa portanto. Ela deixou para trás o caminho do pensamento a que unicamente deve toda sua existência. No espírito divino não se dá nada disso. [...] Diferentemente da palavra divina, a palavra humana é essencialmente imperfeita. Nenhuma palavra humana pode expressar nosso espírito de uma maneira perfeita. Mas como já o indicou a imagem do espelho, isso não representa a imperfeição da palavra como tal. A palavra reproduz de fato e por completo aquilo que o espírito tem em mente.

No exposto por Gadamer se observa que, além da problemática que no âmbito da reflexão sobre linguagem se coloca pela complexa relação entre coisas e palavras, a presença do divino possui um papel preponderante no pensamento de São Tomás. É por tal razão que, de certa forma, adquirem preponderância as alusões borgeanas sobre a existência de Deus quando o escritor argentino lembra os pensamentos de Tomás de Aquino. Assim, no texto “Avatares de la tortuga”, em

Discusión, observa-se o seguinte:

Hasta aquí, el regressus in infinitum ha servido para negar; Santo Tomás de Aquino recurre a él (Suma Teológica, 1, 2, 3) para afirmar que hay Dios. Advierte que no hay cosa en el universo que no tenga una causa eficiente y que esa causa claro está, es el efecto de otra causa anterior. El mundo es un interminable encadenamiento de causas y cada causa es un efecto. Cada estado proviene del anterior y determina el subsiguiente, pero la serie general pudo no haber sido, pues los términos que la forman son condicionales, es decir, aleatorios. Sin embargo, el mundo es; de ellos podemos inferir una no contingente causa primera que será la divinidad (BORGES, 2004, p.256).

E embora não seja explicitado no texto borgeano, deve ser assinalado o mérito do pensador escolástico no âmbito da reflexão sobre a linguagem pelos raciocínios sobre as relações entre verbo, signo e objeto. Neste sentido, Beuchot (2005, p.75-76) lembra que Tomás de Aquino observa que o verbo ou conceito funciona como uma espécie de intermediário entre um signo linguístico exterior, que pode ser oral ou escrito, e um objeto. Nesta vinculação, a palavra é signo do conceito e este último signo da coisa. A palavra faz compreender o conceito como se este fosse seu sentido, elemento que conduz até um objeto que funciona como a referência77. Desta forma, inicialmente viria a coisa

77

Sobre este ponto, pode ser lido em “A Deus pode convir algum nome?”, da Suma Teológica, que: “as palavras são sinais dos conceitos, e os conceitos são semelhanças das coisas. Isto mostra que as palavras se referem às coisas às quais se dará significado por intermédio da concepção do intelecto. Segue-se que podemos nomear alguma coisa conforme nosso intelecto a pode conhecer. Ora, demonstramos acima que Deus, durante esta vida, não pode ser visto por

enquanto pensada ou conhecida, para logo vir como realidade, ou seja, a palavra primeiro significa o conceito e depois o objeto.

E além de Agostinho e Tomás de Aquino, outro dos pensadores da história da filosofia da linguagem da Época Medieval considerado por Borges em seus escritos é Guilherme de Ockham (1295-1349). Este franciscano da Baixa Idade Média, segundo Beuchot (2005, p.91-92), acreditava na teoria do conceito como um signo, o que o levou ao estudo dos diferentes tipos de termos existentes (mentais, orais e escritos) e à análise das propriedades desses termos, à sua significação. Por sua parte, Ashworth (2008, p.111) lembra que:

Ockcam traçava um nítido contraste entre os termos de linguagem faladas convencionalmente significantes e os conceitos ou termos mentais aos quais essas seriam subordinadas. Esses conceitos seriam signos representativos, significantes por sua própria natureza, e seriam os mesmos para todos os seres humanos, ou pelos menos para todos com experiências sensoriais semelhantes. Assim como os termos da linguagem falada entram em frases, proposições e argumentos com uma estrutura gramatical, os termos mentais entrariam em composições gramaticalmente estruturadas, embora a linguagem mental não ostente todos os aspectos gramaticais das linguagens faladas, mas apenas aqueles essenciais para os aspectos semânticos.

E esses estudos sobre os diversos tipos de termos e sua correspondente significação, podem, de alguma maneira, explicar as referências borgeanas ao franciscano inglês. Assim, nota-se que, em alguns textos do escritor argentino se menciona Ockham sem muita preponderância, como em “El ruiseñor de Keats” ou em “De las alegorías a las novelas”78, mas outros escritos como “Correr o ser” em

No documento Jorge Luis Borges: um crítico da linguagem (páginas 131-138)