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A Ciência Médica e a Maternidade do Final do Século XVIII ao Século XIX

O desenvolvimento urbano no século XIX traz consigo uma outra aliança com o Estado: o poder médico. A ciência médica aliou-se ao Estado e à Igreja na luta pela constituição das famílias; assim como o padre, o poder médico coloca-se como um aliado das famílias e tem acesso à sua intimidade. Nesse contexto, a higiene aparece como possibilidade de revisão estratégica da reestruturação do núcleo familiar.

Segundo Costa (2004), os segmentos do universo familiar com poder econômico dos senhores eram imunes às represálias jurídico-policiais do Estado. Surge então a necessidade de organizarem-se formas de coerção capazes de redefinir o Estado junto às famílias, e o poder

médico aparece como uma possibilidade. No contexto da independência do Brasil, realizada a partir de interesses de grupos que forjavam uma identidade nacional, essa possibilidade iria se fortificar junto com a estruturação do país. Hobsbawn (1998), sobre a construção do Estado- nação, considera que o conceito de nação historicamente é muito recente. Antes de 1884, a palavra significava “o agregado de habitantes de uma província, de um país ou de um reino, e também um estrangeiro” (p.27). Só mais recentemente é dado ao Estado o corpo político que o reconhece como um centro supremo de governo comum.

Ainda na análise de Costa (2004), no Brasil do século XVIII, a língua e a religião passam a integrar a corrente cultural em favor do sentimento nacional; só no século XIX, no entanto, o nacionalismo começa a ser exaltado e defendido. A dependência de Portugal, as relações de trabalho e convívio social não permitiam o desenvolvimento de um sentimento de espírito nacional. O universo de dificuldades, os problemas e as aspirações se sobrepunham à ideologia nacionalista como imperativo da ordenação política. Resíduos do passado colonial infiltraram-se na sociedade independente do século XIX, contaminando o espaço cultural e a direção política de um Estado agrário.

Com a ascensão do Estado independente, a higiene médica passa a ter significativo progresso, a política nacionalista do Estado agrário favorece a corporação médica, desprestigiada até o século XIX. A insuficiência de conhecimentos e o número inexpressivo de profissionais, até o século XVIII, fizeram com que a Medicina pouco se distinguisse do saber empírico de jesuítas, pajés e curandeiros. No século XIX, os médicos vão procurar monopolizar o saber em suas figuras o seu direito de assistir os doentes. Para que o poder estatal reconhecesse o poder médico e sua eficácia, o poder médico precisava ser aceito pelas famílias (COSTA, 2004, p. 60-1).

É a partir do final do século XVIII e do século XIX, pelo alarmente índice de mortalidade, que os médicos começam a influenciar a forma de pensar a maternidade buscando construir o elo mãe e filho – o eixo articulador da família moderna no Brasil. As mães serão chamadas a contribuir com a organização do Estado, serão vistas como necessitadas de conselhos por parte dos profissionais da saúde e serão, muitas vezes, apresentadas como ignorantes, negligentes e incompetentes na criação de seus filhos. A ciência médica se sustentará na própria organização do Estado durante o século XIX. Este processo constituirá uma corporação de intelectuais e médicos que, apoiados, pelo Estado, condenaram as práticas de curas caseiras e o exercício ilegal da Medicina, influenciando a opinião pública. A situação de saúde da população ainda é precária;

a mortalidade infantil, uma constante. Há, então, o início de um processo de medicalização13 com medidas saneadoras; esse se dá aliado com Estado.

Costa (2004) constata que a autoridade médica e sua influência sobre a vida privada variam conforme a relação que se estabelece entre os médicos e as famílias, dependendo da época. O médico-higienista14 tende a ampliar sua influência e regulamentar as mais diversas atividades humanas: os exercícios corporais, a prática de equitação, a freqüência a bailes, a leitura de romances, as relações conjugais. Não é difícil depreender que, mesmo na tentativa de “popularizar” os conhecimentos médicos, a visão desse profissional faz com que seus preceitos acabem por se direcionar aos representantes das classes mais abastadas. Nas famílias de classes populares essa intervenção se deu sob forma de campanhas de moralização e higiene da coletividade, a partir da desautorização da medicina doméstica e das práticas de curas caseiras. Ao longo do século XIX, os médicos constituíram um grupo influente que precisava do Estado para legitimar-se e, assim, obter o monopólio de sua profissão na busca da necessária autonomia do saber científico. Isso implicava um processo de desautorização de outras pessoas e de conhecimentos disseminados pela cidade por parteiras e curadores, que atendiam grande parte da população, mas nem sempre conseguiam resolver os problemas de saúde no âmbito doméstico. A aliança entre a ciência médica e o Estado permitirá que a medicina responda pelos rumos da higiene e intervenha no universo familiar com a idéia de que a saúde e a prosperidade da família dependem de sua sujeição ao Estado.

O discurso médico era dirigido às famílias de elite que podiam educar os filhos e aliar-se ao Estado, para cujos objetivos – e também o dos médicos – os preceitos higiênicos pretendiam convergir. Para fortalecer os laços entre família e Estado, o poder médico precisava ser eficaz, o que seria medido pela sua capacidade de aceitação nas famílias Os higienistas percebem então que o seu papel não deveria ser de aliado nem do Estado nem da família, mas de intérprete dos dois. Na relação com as famílias populares, os higienistas desenvolveram a idéia de que os pais erravam por ignorância. Assim, a higiene institui novas técnicas de intervenção na vida privada:

13 A medicalização da infância é o sinal de uma aliança entre médicos e famílias, principalmente com as mães: a saúde das crianças tornou-se uma causa importante afetiva e demográfica (ROLLET, 2001 p. 190).

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Médicos-higienistas são, segundo Costa (2004), os profissionais da medicina que funcionaram como teóricos ou executores da política de higienização das cidades, da população e da família. Kuhlmann Jr. (1998) registra que em 1870, com os avanços dos conhecimentos relativos às relações dos microorganismos e das doenças, inaugura-se a era bacteriológica (George Rosen) aliada aos resultados concretos obtidos a partir das descobertas de Louis Pasteur e dos demais cientistas que se ocupavam de pesquisas no campo da epidemiologia; os cientistas dotaram a medicina de uma autoridade social incontestável e iniciaram, assim, a influência médico-higienista nas questões educacionais.

as famílias eram eximidas de culpa, mas não era retirada do Estado a responsabilidade de nelas intervir (DONZELOT, 1986, COSTA 2004).