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Políticas Públicas: a Creche como Direito e Política Social

Ao definirmos o direito ao atendimento educacional e de cuidados em creches como uma política de corte social, precisamos considerá-lo implicado nas questões de Estado, sociedade, cidadania e educação, cujas articulações variam conforme o momento histórico que analisamos. A cidadania, por seu lado, nos remete a indivíduos sujeitos de direitos; nessa perspectiva, são as conquistas de direitos que a configuram. Segundo Bobbio (1992), a formulação dos direitos do homem muda conforme mudam as condições históricas, as necessidades e os interesses, as relações sociais e de poder, a ciência e a tecnologia. Bobbio, em conferência proferida em 1964, destacou que “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto justificá-los, mas o de protegê-los” (BOBBIO, 1992, p.25). Estaríamos diante não mais de um problema filosófico, mas jurídico; num sentido mais amplo, político.

Ao abordarmos a temática da creche como direito, é necessário também nos reportarmos à perspectiva construída por Marshall (1970) que, em seus estudos, analisa o desenvolvimento da cidadania na sociedade inglesa, e coloca a cidadania como uma construção histórica que a definiu em direitos civis, políticos e sociais, quais sejam: a) civis – direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, direito à propriedade e de concluir contratos válidos e direito à justiça no sentido de defender e afirmar todos os direitos em termos de igualdade com os outros, pelo devido encaminhamento processual. As instituições mais intimamente ligadas aos direitos civis são os tribunais de justiça; b) políticos – o direito de participar no exercício do poder político, como membro de um organismo investido de autoridade política ou como eleitor dos membros de tal organismo – as instituições correspondentes são o

parlamento e os conselhos do governo local; c) sociais – o elemento social se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança até o direito de participar, por completo, da herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade. As instituições de referência são o sistema educacional e os serviços sociais.

Marshall concebe como cidadão pleno aquele contemplado com os três direitos, mas ressalva que os direitos como elementos da cidadania se distanciam entre si, podendo se atribuir na Inglaterra, sem distorcer fatos históricos, um período para a consolidação de cada um: no século XVIII, os direitos civis no século XIX, os direitos políticos e, no século XX, os direitos sociais. A educação foi apontada por esse pensador como um objeto de apropriação pelo Estado, como um serviço de um tipo único de extrema importância e relacionada à cidadania:

A educação das crianças está diretamente relacionada com a cidadania, e quando os Estado garante que todas as crianças serão educadas, este tem em mente, sem sombra de dúvida, as exigências e a natureza da cidadania. Está tentando estimular o desenvolvimento de cidadãos em formação. O direito à educação é um direito social, de cidadania, genuíno, porque o objetivo da educação durante a infância é moldar o adulto em perspectiva. Basicamente, deveria ser considerado não como direito da criança freqüentar a escola, mas como direito do cidadão adulto de ter sido educado. E, nesse ponto, não há nenhum conflito com os direitos civis de modo pelo qual são interpretados numa época de individualismos. Pois os direitos civis se destinam a serem utilizados por pessoas inteligentes e de bom senso que aprenderam a ler e escrever. A educação é um pré-requisito necessário de liberdade civil (MARSHAL, 1970, p. 73).

Nesse contexto, encontramos Estados modernos que admitem responsabilidades pela formação das crianças, algumas vezes chegando a ponto de institucionalizar essas responsabilidades. As crianças, então, são consideradas peça central dos estados, para assegurar a continuidade da nação. A creche passa, então, a ser um serviço social, que deve ser garantido como essencial dentre as políticas de educação. As perspectivas de provisão serviços de creches são muito distintas entre países, elas dependeram das conquistas de direitos sociais, de sua manutenção e da articulação dessas políticas entre Estado e famílias. Nesse sentido, Esping- Andersen (1990), o desenvolvimento do Estado de bem-estar e os direitos sociais seguindo uma classificação entre países, a partir de modelos de Estado de bem-estar social. Para o pensador francês, à medida que examinamos as variações internacionais dos direitos sociais e de estratificação do Welfare State, encontramos combinações diferenciadas entre mercado, Estado e família.

Num primeiro grupo, encontramos o Welfare State liberal, em que predomina a assistência aos comprovadamente pobres com reduzidas transferências universais e planos modestos de previdência. Nesse grupo, os beneficiários se constituem numa clientela de baixa renda, pertencentes às classes trabalhadoras, ou dependentes do Estado. O modelo apresenta um progresso de reforma social limitado às normas tradicionais e liberais da ética do trabalho; os benefícios são restritos e modestos. Como conseqüência, esse modelo estabelece um amplo espaço para a mercantilização dos serviços de proteção social, contém o avanço dos direitos sociais e edifica uma pobreza entre os beneficiários do Estado. Os países citados como exemplo dos que adotam esse modelo são os EUA, o Canadá e a Austrália.

No segundo grupo, o corporativismo estatal foi ampliado de modo a atender a nova estrutura de classe pós-industrial. Nesse caso, a obsessão liberal com a eficiência do mercado não chegou a predominar; a concessão de direitos não foi, portanto, objeto de questionamento. O que predominava era a preservação das diferenças de status; os direitos estavam ligados à classe social e ao status, o corporativismo era sustentado pelo edifício estatal que substituía o mercado nos benefícios sociais. Esses regimes corporativistas são moldados pela forma típica, pela Igreja e pela família tradicional. A previdência exclui as mulheres que não trabalham fora, e os benefícios que são destinados à família encorajam a maternidade. Creches e outros serviços prestados à família são subdesenvolvidos. O princípio da subsidiaredade serve para enfatizar que o Estado só interfere quando falta estrutura de estratificação social que se traduz na igualdade à família. Exemplos de países que se utilizam desses regimes: Alemanha, França, Itália e Áustria.

O terceiro modelo apresentado pelo autor é constituído por um grupo menor de países, quase circunscritos à Escandinávia. Ele é composto por nações onde os princípios de universalismo e desmercantilização dos direitos sociais estenderam-se às novas classes médias; a social-democracia foi a força dominante da reforma social. O Welfare State idealizado foi o que promovesse a igualdade com melhores padrões de qualidade, não a igualdade das necessidades mínimas. Esse modelo traduziu-se em programas altamente desmercantilizantes e universalistas que – mesmo assim – correspondiam às expectativas diferenciadas, sendo que os trabalhadores chegavam a desfrutar de direitos idênticos aos dos funcionários públicos e white-collar assalariados. Esse modelo exclui o mercado; em conseqüência, constrói uma solidariedade universal em favor do Welfare-State. Em relação à família; o regime socialdemocrata dirige-se tanto ao mercado quanto à família tradicional. O princípio é de socializar antecipadamente os

custos da família, o resultado é que o Welfare State garante as transferências diretamente aos filhos e assume a responsabilidade direta de cuidado com as crianças, os velhos e os desvalidos. O Welfare State assume uma pesada carga do serviço social, não só para atender às necessidades familiares, mas também para permitir às mulheres escolherem o trabalho remunerado, não as tarefas domésticas. Nesse regime, há uma preocupação com a garantia do pleno emprego, o direito ao trabalho tem o mesmo status de proteção à renda, o regime é solidário, universalista e desmercantilizante, minimizando os problemas sociais e maximizando os lucros, o que se garante com maior número de pessoas trabalhando e com o mínimo possível vivendo de transferências sociais.

Esping-Andersen justifica que os critérios essenciais de que se utiliza para definir o Welfare State foram a qualidade dos direitos sociais, a estratificação social e o relacionamento Estado, mercado e família. Como se verificam regimes distintos, compará-los à revelia de suas diferenças específicas poderia – segundo o autor – nos conduzir a resultados equivocados no tocante à análise da gênese e do desenvolvimento dos regimes de proteção social.

No estudo de Faria (1998), a tipologia de Esping-Andersen foi aplicada para análise dos serviços de provisão de creches em países onde o atendimento de educação e cuidado à criança faz parte da política de bem-estar social. Ele faz uma análise comparativa de provisão de creches em distintos países, como Suécia, Estados Unidos e França, em A Criança, entre o Estado, o Mercado e a Família: O Sistema Sueco de Creches em uma Perspectiva Comparada, utilizando- se da tipologia de Esping-Andersen (1990) da obra The Three Worlds of Welfare Capitalism como padrão para uma análise. Ao aplicar a tipologia do Estado Provedor de Serviços, o estudo demonstrou a adequação da utilização de tal abordagem tanto quanto suas debilidades. As peculiaridades do sistema sueco de provisão dos serviços de creche encontravam-se muito bem no padrão de políticas públicas do regime de bem-estar social “social-democrata”, como definido por Esping-Andersen. Já a provisão dos serviços de creche nos Estados Unidos reproduzia as características de tais serviços no chamado Welfare State liberal. Ao ser tomada a França como exemplo do Estado de Bem-estar corporativista, no entanto, várias foram as dificuldades encontradas para a compreensão das peculiaridades do sistema francês de provisão de serviços de creche.

Ao tratar de creches na Suécia, o autor destaca que a provisão maciça de tais serviços possui alto padrão de qualidade; trata-se de um elemento essencial para que se compreenda o

porquê do Estado de Bem-Estar Social escandinavo e o sueco, em especial, ser definido como amigo das mulheres. O sistema de creches públicas na Suécia é descrito pelo termo Estado Provedor de Serviços (service state), e a questão da provisão de creches tem-se colocado como política conflituosa, não somente pelo impacto no orçamento público desse serviço, mas porque numa possível flexibilização, privatização ou expansão do sistema perpassam questões sociais, políticas e ideológicas, essenciais à manutenção das diretrizes dos mecanismos de proteção social. O sistema de creches públicas emprega cem mil pessoas e representa a fatia de 2% do Produto Nacional Bruto (PNB), além de causar impacto nas taxas de emprego feminino e nos padrões de estruturação familiar. Esse quadro faz desses serviços uma questão central na agenda política. Quanto ao financiamento da provisão dos serviços de creches sueco, é o Estado, as municipalidades e os pais que os financiam; a parcela que cabe às municipalidades é maior do que a do governo central, e as mensalidades pagas pelos pais é a parcela menor. As mensalidades variam conforme as municipalidades e são proporcionais à renda familiar e ao número de crianças atendidas por família. O Estado determina as diretrizes básicas e os objetivos da provisão e aloca subsídios para que certas necessidades sejam contempladas, como o atendimento às crianças com necessidades especiais e a ampliação da qualificação dos servidores. Faria (1998) vê que uma forma de caracterizar a provisão pública de creches nos países nórdicos, como a Suécia, é enfatizar que esses serviços são considerados um componente essencial do welfare state concedido a todas as crianças, sem distinção de classe social ou econômica dos pais. No de 1987, 80% das crianças de 3 a 6 anos de idade a freqüentavam algum tipo de creche pública na Suécia.

Ao analisar a provisão de serviços de creche nos Estados Unidos, o autor considera que esses são caracterizados pela máxima responsabilidade privada, um welfare state liberal ou residual, no qual os benefícios às pessoas necessitadas e as transferências universais são restritas, e os serviços de seguridade social subdesenvolvidos. Entre as nações desenvolvidas, aquele país, apesar das altas taxas de participação das mulheres no mercado de trabalho, não possui uma legislação nacional sobre a concessão obrigatória de benefícios como a licença maternidade e a licença para pais7, busca-se que acordos setoriais entre empregados e empregadores sejam firmados. Diferentemente do padrão europeu, os serviços de atenção à criança com fins lucrativos são muito comuns nos Estados Unidos, onde a participação dos empregadores torna-se da maior

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Ver Tabela 1 – na Introdução – UNESCO, Brasil. OCDE, Ministério da Saúde. Educação e Cuidado na Primeira

relevância. Lá, o Estado não criou nenhum programa nacional de provisão de creches públicas; apesar das várias tentativas de se legislar sobre padrões federais para esse atendimento, a legislação ficou a cargo de cada estado da Federação. O governo federal repassa verbas às autoridades estaduais e locais para subsidiar os serviços de creche e outros serviços às famílias carentes, mas as políticas são focalizadas e asseguram um padrão mínimo de qualidade. Há ainda um incentivo à oferta de serviços com fins lucrativos pelo setor privado, com a dedução dos gastos com os serviços de creche nos impostos. Os mecanismos adotados pelo país minimizaram o apoio estatal e encorajaram o mercado a oferecer serviços com ofertas diferenciadas entre as famílias, tornando o direito aos serviços de creche vinculados à renda familiar. Para Faria (1998), podemos considerar que a provisão de creches nesse país assim se constituiu:

[...] os serviços de creche oferecidos às famílias norte-americanas, heterogêneos e guiados pelo mercado, refletiriam a consistência das tentativas de se preservarem a privacidade familiar e a escolha individual. De uma perspectiva escandinava, a provisão de serviços de creche nos Estados Unidos representa a refutação deliberada da responsabilidade coletiva pelas crianças (FARIA 1998, p. 18).

Esses serviços, na França, foram analisados pelo autor segundo a perspectiva conservadora ou corporativista de Esping-Andersen; que sempre deixou espaço para a intervenção estatal; um modelo de welfare state no qual a preservação do status é uma marca, e os direitos sociais são relacionados à classe e ao status, o que minimiza o impacto redistributivo do welfare state. A França possui um programa de educação pré-escolar dos mais abrangentes do mundo, totalmente integrado ao sistema nacional de educação. Essa cobertura fez com que o país chegasse na década de 80 com 60% das mães de crianças de 3 a 5 anos de idade que trabalhavam fora de casa e com mais de 95% das crianças inscritas em algum programa. Pela leitura do autor, a provisão de serviços para crianças de 3 anos de idade ou mais poderia ser definido como de máxima responsabilidade pública, mas devemos considerar que esse país é diferente dos escandinavos, onde as autoridades públicas decidiram compartilhar as responsabilidades sobre as crianças.

Ainda segundo o autor, na França os serviços oferecidos para essa faixa etária poderiam ser considerados aparentemente universais, levando a um descrédito das tipologias de Espin- Andersen (França como um país de Welfare State corporativista). Os dados, porém, não podem ser interpretados como se os pais quisessem compartilhar com as autoridades públicas a responsabilidade de cuidar de seus filhos pequenos. Os serviços oferecidos à criança pequena,

naquele país, devem ser entendidos como um programa educacional que enfatiza o seu desenvolvimento cognitivo. Os programas, no entanto, não têm como objetivo básico a provisão de cuidados que permitam às mães se engajarem no mercado de trabalho. Os serviços de creche para crianças de idade inferior a 3 anos são disponibilizados por diversas instituições: em 1986, 65 % das crianças freqüentavam as creches familiares (créches familales), 24 % eram atendidas nas creches coletivas (creches collectives) ou nas mini-creches e nas creches parentais (créches parentales), e ainda 10,25% freqüentavam as creches abertas (halte-garderie). Diferentemente do modelo existente nos países nórdicos, o francês deixa de atender o “modelo de máxima proteção social”, pois aqueles países têm uma maior proporção de crianças atendidas se comparada com a deste, e os subsídios são mais generosos.

O autor conclui que, quando se trata de examinar a situação francesa sobre esse tema, devemos ponderar que a natureza da intervenção estatal é mais complexa; transcende à simples defesa dos princípios da família tradicional. O ingresso da mulher no mercado de trabalho está longe de ser satisfatório, pois a preocupação com a provisão dos serviços de creche fez com que esses fossem estruturados visando mais ao bem-estar da criança do que à facilitação do ingresso da mulher no mercado de trabalho. O que os estudos demonstram é que as relações entre mercado de trabalho e os serviços de creche oferecidos à criança menor de 3 anos, na França, parecem estar desconectados.

Segundo Faria (1998), a importância de trazer ao debate os modelos de welfare state de serviços sociais pode enriquecer a tipologia de Esping-Andersen. No entanto, a modalidade de análise adotada por esse autor – Esping-Andersen – pode falhar quando se reflete sobre os serviços financiados por recursos públicos na França. Caso à sua análise fossem acrescentadas as questões de gênero dos regimes de bem-estar social, novas perspectivas seriam incorporadas, e resultados diversos seriam obtidos.

Olhar para essas políticas em que mulheres estão diretamente implicadas sem contemplar a variante gênero faz com que se perca importante reflexão, pois os direitos sociais das mães atrelam-se aos direitos e às garantias de bem-estar das crianças pequenas. Isso vale não só para a França, e será levado em consideração quando analisarmos a situação do Brasil.