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Os países distinguem-se, no que diz respeito à implantação das políticas sociais, na forma como se dá em cada um o início da ação estatal: como lida com a ordem, o ritmo em que os regulamentos sociais vão sendo estabelecidos, as dimensões sociais cobertas pela legislação, o formato de administração de programas sociais e a articulação desses programas. Em comum eles

têm que a política social é parte do processo estatal de alocação e distribuição de valores; está, portanto, no centro do confronto entre interesses de grupos e classes, cuja linha tênue que lhes serve de divisão é muito bem tratada por Abranches (1987). O autor salienta que esses interesses têm como objeto a reapropriação de recursos extraídos de diversos segmentos sociais, em proporção distinta, através da tributação, ponto crítico para o qual convergem as forças vitais da sociedade de mercado. Para o autor, isso faz com que se crie um complexo dilema político- econômico entre os objetivos da acumulação e expansão de um lado e as necessidades básicas dos cidadãos de outro. Ele ressalta que a política social intervém no hiato derivado dos desequilíbrios, na distribuição em favor da acumulação e em detrimento da satisfação de necessidades sociais básicas, assim como na promoção da igualdade. Conforme o autor, é a ordem política que define as opções disponíveis de ação e as direções plausíveis de intervenção estatal. As respostas do Estado para as políticas sociais emergem de um processo de escolhas sucessivas que envolvem confrontos, atritos, coalizões e pressões, e onde são muitas as forças envolvidas, dentre as quais se destacam os segmentos sociais, os técnicos burocráticos do Estado, o Congresso, a presidência, os partidos políticos, os sindicatos, os movimentos sociais e os especialistas.

Na implementação de políticas sociais no Brasil, na transição para o capitalismo, a economia brasileira foi marcada por dinâmicas de um mercado sem capacidade de crescimento interno, uma economia voltada para o exterior, em cujo contexto prevaleceram os interesses do setor agroexportador, ao invés de se estabelecer um rumo modernizador. O trabalho escravo teve impacto importante no impedimento da participação no movimento operário, com suas primeiras manifestações datando do início do século XX, ao invés do conflito e da competição. Essas características estruturais de formação social dificultaram o reconhecimento das políticas sociais (SANTOS, 1979).

Sobre as conseqüências dessa origem, Ianni (2004) assim se manifesta:

A questão racial sempre foi e sempre tem sido e continuará a ser um dilema fundamental da formação, conformação e transformação da sociedade brasileira. Está na base das diversas formas de organização social do trabalho e dos jogos das forças sociais, bem como das criações culturais. Praticamente tudo o que constitui a economia e a sociedade, a política e a cultura, compreende sempre algo da ou muito da questão racial (IANNI, 2004, p.143).

O Estado brasileiro entra na Primeira Repúbilica com a herança de uma política afirmada sobre o patrimonialismo, de caráter marcadamente burocrático. Burocracia não no sentido

moderno do aparelhamento racional, mas da apropriação de cargos pela aristocracia. A economiam baseava-se na comercialização e assegurava o pagamento periódico das despesas, o comércio era explorado pelo Caixa da Coroa e por ele controlado. Essa realidade impedia a racionalidade com um efeito estabilizador da economia: tudo é tarefa do governo, tutelando os indivíduos. O Estado se confunde com o empresário e o empresário especula para favorecimento dos seus associados. Há então um efeito nacionalizador do estamento5 que retarda a modernização do país (FAORO, 2001).

Durante a Primeira República, segundo Santos (2006), o Estado não consolidou os fundamentos institucionais que poderiam caracterizá-lo como moderno. Ao mesmo tempo em que se fixam as primeiras estacas do Estado nacional e empreende-se esforço de integração política e social na relação entre empregados e empregadores o desequilíbrio é mantido: o movimento operário é notoriamente reprimido, as associações industriais e comerciais, embora reconhecidas pelas autoridades governamentais da antiga República, juntam-se a forças repressoras e contra as manifestações obreiras. O problema nacional brasileiro teria nascido com a Independência, e durante o século XIX havia consciência dos governantes da necessidade de promover compulsoriamente a integração para obter o indispensável precitado da identidade nacional. Diante da ausência de instituições econômicas favoráveis ao mercado capitalista, foi de epsódios dramáticos – abdicação de D. Pedro I, a maioridade de D. Pedro II e a derrota das revoluções separatistas – que se nutriu uma unificação. Durante a Primeira República, ficaram por se inaugurar os fundamentos institucionais do Estado moderno: as regras de relacionamento entre grupos sociais competitivos e entre o próprio Estado e a existência material do Estado, não apenas jurídica. Nesse cenário, havia uma crise da integração nacional: a falta de participação política e a redistribuição da riqueza que foram os desafios dos países que entraram no mundo moderno. No Brasil, nesse período, a intensidade dos conflitos capital e trabalho era de grande extensão, mas o movimento operário não conseguia criar condições jurídicas e materiais para a superação dos limites da legislação vigente, e as transgressões impunham às lideranças do movimento operário uma violenta repressão. A luta por diretos dos trabalhadores, já iniciada no século XIX em muitos países – descanso remunerado, férias, segurança no trabalho feminino e

5 Estamento: comunidade que se estrutura na organização político-administrativa, juridicamente sistematizada. Nela os membros do grupo pensam e agem conscientes de pertencer a um mesmo grupo, a um círculo elevado qualificado, para o exercício do poder. Ao contrário da classe, no estamento não vinga a igualdade das pessoas, o estamento é, na realidade, um grupo de membros cuja elevação se calca na desigualdade social (FAORO, 2001, p.60-61).

infantil, limites às jornadas diárias de trabalho, aposentadorias e programas de saúde – faz parte da integração produtiva do regime capitalista. Reivindicações começam a se consolidar na Europa, na segunda metade do século XIX, com uma edificação material do Estado. No Brasil, essas reivindicações, surgem com mais força no início do século XX.

Ao contrário dos países desenvovidos, onde lhes foi permitida a experimentação e o aprendizado na administração das crises, aqui quando se rompe a rotina oligárquica, inicia-se uma marcha irreversível rumo ao desenvolvimento, mas os obstáculos se apresentam em coligação. Nas palavras de Faoro (2007), esse processo resulta numa condição de Repúbica Inacabada.

Ainda para Santos (2006), como conseqüência, desses fatores, a política social se desenvolveu com iniciativas de caráter compensatório incipientes, como as caixas de aposentadorias e pensões de índole remedial. A assistência social estava quase que exclusivamente nas mãos de entidades particulares. Sobreviviam muitas irmandades religiosas da época colonial que ofereciam apoio aos tratamentos de saúde, auxílio funerário e mesmo pensões para viúvas e filhos. Contava-se também com as sociedades de auxílio mútuo, uma versão leiga das entidades religiosas, com a função de dar assistência social aos seus membros. Com a proclamação da República no Brasil em 1889, os funcionários da Imprensa Nacional e os ferroviários conquistam o direito à pensão e a 15 dias de férias, o que se estende aos funcionários do Ministério da Fazenda. Em 1892, os funcionários da Marinha adquirem o direito à pensão: isso se constitui em um marco de conquistas sociais. Em 1891, tem-se a primeira legislação para a assistência à infância no Brasil regulamentando o trabalho infantil, que nunca foi cumprida. No ano de 1923, é aprovada a Lei Eloy Chaves, que institui a obrigatoriedade de criação de Caixas de Aposentadorias e Pensão (CAPs) para algumas categorias profissionais, como os ferroviários e marítimos. Os benefícios concedidos eram proporcionais às contribuições recebidas. Havia ainda as Santas Casas de Misericórdia, instituições de caridade para atendimento à população pobre. Nesse contexto do século XIX e início do século XX, o liberalismo do Estado brasileiro não comportava os direitos sociais, que só foram incorporados sob a pressão dos trabalhadores nos anos 1920 e sofreram mudanças substanciais em 1930.

Neste estudo, ao analisarmos a gênese das políticas públicas para creche no país, a sociologia histórica de Theda Skocpol poderá nos servir como suporte teórico para a abordagem que pretendemos. Ela tem como hipótese que os fenômenos sócio-políticos estão fortemente

condicionados por fatores contextuais, exógenos aos atores; ou seja, as instituições, uma vez criadas, ganham vida e dão lugar às dinâmicas e situações que freqüentemente não eram nem desejadas nem previstas pelos atores. O período histórico abordado compreende os anos 1899 até a década de 1920. Segundo a abordagem teórica escolhida, os fenômenos sócio-políticos não podem ser explicados pela simples vontade dos atores, nem mesmo pela natureza de suas relações, dado que eles se constituem – na maioria dos casos – como um produto acidental de um processo macro-histórico de desenvolvimento institucional no qual cada configuração condiciona a próxima.

Os estudos de Theda Skocpol (1996)6, pela perspectiva de Arretche (1995), estariam vinculados à corrente analítica neo-institucionalista, cujo entendimento da evolução das políticas de proteção social estaria integrado às capacidades e estrutura das instituições do Estado. Esses estudos seguem a tradição weberiana, na qual a lógica de ação das burocracias públicas constituir-se-ia numa variável independente; dito de outro modo: os atores vinculados ao Estado, os policy makers, as tecnoburocracias estatais terminariam por formular propósitos que não reproduziriam propriamente os interesses da sociedade civil. O Estado nacional e as estruturas políticas de cada país são objeto central de análise. A história singular de cada país pode oferecer pistas para compreensão das variáveis de desenvolvimento de uma determinada forma de proteção social; tal teoria perpassará o tratamento dado às políticas sociais no Brasil. Estudaremos como as Políticas Públicas transformam e expandem a capacidade do Estado, como as novas políticas aparecem ou podem aparecer na política social de uma nação, incluindo o recorte de classe, mas não se restringindo a ele. Explorar-se-á também como se combinam os fatores sociais e políticos e as capacidades de grupos implicados na elaboração das Políticas Públicas e na construção de uma agenda política.

Para Skocpol (1996), uma política tem "êxito" se melhora os tipos de capacidades estatais que podem promover seu desenvolvimento futuro, em especial, se estimulam grupos e alianças políticas e defendem a continuação de sua expansão. Em primeiro plano, as causas dos esforços oficiais feitos para implantar novas – Políticas Públicas – podem então transformar ou expandir a capacidade do Estado. Em segundo plano, as políticas novas afetam as identidades sociais, os

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Ver em Estados e Revoluções. Um estudo comparativo da França, Rússia e China e Los Orígenes de la Política Social en los Estados Unidos. Lisboa: Editorial Presença, 1996.

objetivos e as capacidades dos grupos que consecutivamente recusam ou se alinham a essas políticas.

Ao se analisar Políticas Públicas, é imperativo considerar que qualquer explicação válida para justificar o desenvolvimento delas numa nação deve levar em conta que elas se dão sob condições genuinamente históricas e são sensíveis aos processos que se desenham ao longo do tempo. Este estudo, suas formulações e implementações – positivas ou negativas – terão enfoque no contexto histórico em que foram sendo desenvolvidas as políticas sociais para a infância; ele procura compreender quando a preservação da infância e as instituições a ela destinadas se tornam assunto público e motivo de intervenção governamental. Villanueva (2003) citando o estudo de Cobb y Elder (1972,1983), considera que o acesso à agenda de governo necessita cumprir três requsitos: ser objeto de ampla atenção, ou de amplo conhecimento público; ser considerado pelo público como algo que esteja requerendo algum tipo de ação; ser considerado pela comunidade como ação de competência governamental. A formação da agenda, por sua vez, pode advir das demandas de vários grupos da população que se transformam em assunto para as autoridades públicas. No caso do nosso objeto de estudo, procuramos analisar quais os atores sociais envolvidos na gênese da formulação das políticas públicas para creche no país.

Segundo Rus Perez (1998), numa avaliação da implementação de políticas públicas de educação, é possível identificar três dimensões de modelos de análise de implementação:

1ª) trata das relações entre o desenho e a formulação da política, de um lado; dos formatos que os programas adquirem no final do processo, de outro;

2ª) é a dimensão temporal do processo e de seus efeitos diferenciados no tempo sobre a organização em que se processam, sobre os atores que implementam (resistências e adesões);

3ª) refere-se às condições que propiciam ou entravam a implementação. Pela perspectiva desse autor, teríamos um modelo mais dinâmico que não examina só o contexto mais geral da macropolítica, mas as relações dinâmicas entre as estruturas organizacionais, os recursos de apoio e as características sociais, culturais e econômicas dos atores. Sendo assim, os fatores aqui envolvidos, interagindo entre si, podem afetar os graus de alcance dos resultados e as formas de implementação. Na construção de uma agenda de prioridades das políticas sociais, uma questão ainda relevante: a de que os atores sociais não dispõem do poder de negociação de que necessitariam. Portanto,

numa avaliação de políticas, programas e projetos sociais, o objetivo não será só o de determinar se os objetivos propostos foram alcançados, mas também se atendem às necessidades dos atores sociais envolvidos. Na perspectiva desse estudo, enfocamos como atores sociais o Estado, a Igreja, os médicos, os juristas, os industriais, os filantropos e os políticos.

1.2 POLÍTICAS PÚBLICAS: A CRECHE COMO DIREITO E POLÍTICA SOCIAL NA