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CAPÍTULO 3. O PROJETO LITERÁRIO AMAZÔNICO DE ALBERTO RANGEL

3.4 O conflito histórico-econômico

3.4.2 Ciclo da Borracha

É no contexto do ciclo da borracha que o projeto de Euclides e Rangel se inicia. A partir disso, Mário Ypiranga Monteiro caracteriza a prosa rangeliana:

É por isto que Alberto Rangel estigmatizou a terra com o epíteto de ‘Inferno’, e não fez mais do que salientar as diferenças entre uma inefável existência pregressa de aceitação, de abençoada calmia e respeito aos valores ético-religiosos e a ulterior disputa frequente, choques de interesses, de resultados sangrentos. (MONTEIRO, 1976, p. 128)

Na transição do século 19 para o 20, enquanto o Brasil dava os primeiros passos no processo de industrialização, o Amazonas se entrega ao extrativismo da monocultura que alimentará os anseios do imperialismo (SOUZA, 1977, p. 88). Márcio Souza considera esse período como a “desenfreada entrega do Amazonas à alienação”. A região amazônica entra num novo ritmo, bem diferente do passado colonial. Os modernos extrativistas vivenciavam a oportunidade de enriquecimento fácil. Para os coronéis da borracha, a seringueira parecia um negócio inesgotável (SOUZA, 1977, p. 89-90). O látex torna-se um mito regional, como explicita Souza. Para esse autor, “a Amazônia do ‘ciclo da borracha’ esquece os padrões limitados do colonialismo português e entrega-se ao romantismo da aventura capitalista.” (p. 90). Esse surto econômico significa igualmente o retorno da Amazônia ao palco internacional. Sacudida pelo imperialismo, até mesmo o colono analfabeto pretende atingir o cosmopolitismo (p. 98). Manaus é um exemplo de cidade que se entregou à belle

époque, coordenada pelos coronéis da borracha. Na última década do século 19, a

Sem dúvida, o pano de fundo histórico dos contos rangelianos é o ciclo da borracha, especialmente daqueles compostos para a obra Inferno Verde. Podemos afirmar que a estética alcançada por Rangel e outros escritores são tributárias (devedoras) desse momento histórico. Além dos romances da borracha, há os contos e poemas da borracha. Somente esse trecho da história literária amazônica, rechearia inúmeros livros, periódico, artigos científicos, seminários.

O seringal como lócus de realizações e relações humanas conflituosas se encaixa numa série de obras literárias com fins semelhantes. Victor Hugo trata dos trabalhadores do mar; Zola, em Germinal, representa a condição dos trabalhadores nas minas de carvão. Aproveitando expressões de Erich Auerbach (1987) ao analisar a obra de Zola, esses autores mostram a situação do “quarto estado”. Desse lócus, em especial, advirá a inserção universal da Amazônia.

Em Sombras n’água, grande parte do prefácio revira pormenores da história da Amazônia. Em dado trecho, cita a figura de Manoel Urbano da Encarnação. A descrição sobre o heroísmo desse explorador encobre seu papel histórico, ou apenas indiretamente a indica. Manoel Urbano explorou os seringais do alto Rio Purus, na fronteira com o território peruano, por volta de 1861. Em Contrastes e confrontos, o ensaio “Entre o Madeira e o Javari” recupera a figura de Manoel Urbano: “[...] enquanto um mateiro destemeroso, Manoel Urbano da Conceição, um quase anônimo, como o é a grande maioria dos nossos verdadeiros heróis...” (CUNHA, 1975, p. 157). Nessas minudências, o conhecimento amazônico de Alberto Rangel e Euclides da Cunha possuem muitos pontos de convergência.

O cientificismo de Rangel impõe a necessidade de estabelecer as diferenças didáticas acerca da identificação das verdadeiras seringueiras:

[...] “Barrigudas” e seringaranas, nas vizinhanças inumeráveis, despertam apenas a lembrança da indústria com elas impossível. E por isto, que a nadas se prestam, nem para achas de lenha, em o seu leite é elástico, tendo o aspecto de semelhança completa à seringa legítima, dispõem-se como paródia de troça. [...] mas esse sangue branco não se coagula à defumação, que faz o líquido ficar unicamente pegajoso ou quebradiço, mas não elástico. (“O tapará”, INV, p. 44)

Marcando bem o conflito histórico-econômico, Rangel ventila suas impressões sobre as torpezas sociais ocasionadas pelo mito do progresso impulsionado por esse “novo ouro”:

[...] conflito natural no jogo tremendo de ambições forasteiras, que com o machadinho, as tigelinhas, o balde e o “boião” revolveram a terra, sacudindo-a para a eletricidade e para o vapor, e para os males das sociedades, que hoje se chamam fortes. (“O tapará”, p. 45)

Ao tratar do momento histórico, Alberto Rangel relembra o papel da memória. O desmemoriado Serapião, em “A ‘panella’ do Serapião” [SNA], apresenta a chave do problema histórico da Amazônia no quadro cultural da história do Brasil. O homem que apenas tira proveito dessa terra pode um dia ter que acertar as contas com a história: “O esquecimento, que geralmente é uma espécie de anestésico suplicado e bendito, remédio de absolvição e de paz, nas angústias da mágoa e do remorso, foi para o Serapião uma tortura original” (p. 137). A significação dessa passagem diz muito para a identidade nacional de conotação amazônica, a qual se sobrelevou no ciclo gomífero.

No conto “A traição dos rastos” [SNA], Rufino, irmão de Rita, representa um dos vários seringueiros iludidos por um canto de sereia do eldorado: “Durante a ausência de oito anos, estabelecerá muita ‘madeira em pique’, roçara muita estrada e ‘sangrara’ muito pau nos seringais do Coronel Pedroso [...]” (p. 182).

Em outro ângulo, o ciclo da borracha permite a modernização dos centros urbanos da Amazônia, especialmente Manaus e Belém, e vislumbra instalar moderno aparelhamento para o processo de exportação da goma elástica. A estrada de ferro Madeira-Mamoré aparece como símbolo dessas pretensões de modernidade em plena selva amazônica. Este fato histórico aparece ainda em “A traição dos rastos” [SNA], quando se descreve a vida de Rufino: “Lesto, que nem uma cotia, renunciara finalmente ao seringal e ‘se botara’ na ‘Madeira e Mamoré’” (p. 183). Mais à frente, há uma complementação sobre o assunto: “A locomotiva chegou a correr na mata, numa plataforma de sânie. O seu berro áspero espantou os pássaros e capoeiros. [...]” (idem). Pela narrativa, o corpo expedicionário responsável pelo projeto e construção foi abatido pelas condições adversas do meio, particularmente devido a doenças como malária e beribéri. Ao se reportar a esse fato histórico, o narrador Alberto Rangel se equilibra novamente entre a história e a ficção.

O trem-fantasma que representa a locomotiva da Madeira-Mamoré provoca arrepios em nosso instinto de nacionalidade:

[...] O nosso patriotismo acordado em face do fraquejar dos ingleses e americanos do norte levou um cheque. Três empreitadas faliram. Dissiparam-se fortunas, moveram-se bolsas e chancelarias... O duelo era de morte entre a locomotiva e a cachoeira. [...] (“A traição dos ratos”, SNA, p. 184)

Alberto Rangel não se exime de narrar o final da curta história da Madeira-Mamoré:

[...] mas depois de tanto esforço, de tantas vidas e despejo de riquezas, o homem, desbaratado, deixou a máquina com que devia vencer, contornando a escadaria de penedos e remoinhos, reduzida a um trambolho ferrugento, atabafado nas jitiranas... [...] (p. 185)

A movimentação de navios cargueiros, como Llyod, que aparece em “A traição dos rastos” [SNA], mostra a presença de interesses econômicos estrangeiros e da modernidade avançando sobre a floresta. Os contos “Fim de vida nova” [SNA] e “O Viking” [SNA] demonstram o processo de urbanização e a exploração comercial da construção da rede de telégrafos. Em boa parte, todas essas novidades do transporte e da comunicação foram estimuladas pela produção de borracha.

Em “O Leproso Xavier” [SNA], o protagonista Xavier trabalhara para um estabelecimento peruano no Javari. Em tal empreitada, sua tarefa era desnacionalizar a borracha brasileira mudando-a de margem durante a noite, com o intuito de enganar a balança do fisco. Sua doença, seu desfalecimento, sua degenerescência, metaforizam o desmantelamento do sistema econômico imposto pelo ciclo da borracha. Esse conflito entre as Amazônias peruana e brasileira, constitui preocupação de outro personagem histórico com perfil semelhante a de Euclides da Cunha: o irlandês Roger Casement. Sobre a história do Acre, região seringueira das mais prósperas nesse período, aparecerá Plácido de Castro, como figura central na disputa entre Brasil e Bolívia pelo território acreano:

[...] Fora, de fato, mais forçado pelo exemplo de um primo, que depois de julgado morto, lá chegara do Acre, onde façanhara, às ordens de Plácido de Castro, “matando boliviano”, com muita roupa, um guarda-sol de castão de prata, relógio, competente cadeia a “massagada de notas” que dispersava à toa, do que mesmo pelo torrado das caatingas e campos no sertão. (“Um conceito do Catolé”, INV, p. 53)

Nesse passo, o fato histórico não se descreve pura e simplesmente. Percebe-se a tentativa de transformá-lo em densidade estético-literária.

O começo do fim do ciclo da borracha desenha-se às claras no conto “O marco de sangue” [SNA], penúltimo conto de Sombras n’água. Nas entrelinhas, o narrador rangeliano referencia a derrocada do monopólio nacional, tendo em vista o espalhamento da produção de borracha no sudeste asiático, impulsionado pelo império britânico. A voz narrativa vem de um naturalista alemão, o qual também assume o condão de receitar o caminho para o fortalecimento da civilização sul-americana:

- Para a civilização sul-americana falta o essencial, senhor, policiamento e justiça, resmungou o cientista. O policiamento virá com a telegrafia sem fio e com a ave que o homem pilotar. A justiça, o atributo magnífico da consciência dos povos maduros e fortes, quando virá? A borracha, base de “economia destrutiva” como chamou Brunhes tais indústrias de vândalos e vampiros, não me entusiasma, não me ilude herr Figueiredo. [...] A hevea brasilensis pode ser finita, os produtores de substancias rivais do látex da famosa euforbiácea, as hancórnias, os ficus, as balatas, as isonandras, certas urticácias estão se tornando incontáveis; [...] (p. 309)

Em breve síntese da escala da produção de borracha na Amazônia, Alberto Rangel resume essa história em “Aspectos gerais do Brasil” [1914]:

A produção da borracha chegou a cifras formidáveis. De trezentos e noventa e quatro mil quilos em 1839-1840, alcançou exatamente a trinta e nove mil duzentos e sessenta e seis toneladas em 1909. Três quintos da borracha do mundo nos pertenciam. As rendas públicas dos dois Estados somaram parcelas memoráveis e avultadas. (RANGEL, 1934, p. 163)

Sobre a decadência da indústria da borracha amazônica, Rangel continua sua linha de raciocínio com alguns alertas:

A moral tremenda do fastígio e decadência fantásticas é também uma lição de cousas, para que alarguemos a nossa capacidade de triunfo no respeito judicioso ao cosmopolitismo dos problemas materiais e não nos embalemos na confiança perigosa de inconscientes e de travessos. (p. 164)

Sua prosa amazônica recobre historicamente o auge da produção gomífera e as primeiras evidência do esgotamento de uma economia carregada de paradoxos socioculturais e políticos. Dentro de seu projeto literário, Sombras n’água funciona como obra catalisadora de uma leitura ainda mais crítica das abordagens infernistas iniciadas em Inferno Verde, evidenciando possíveis rumos para história amazônica pós- borracha.