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A elite e o coronelismo de barranco

CAPÍTULO 3. O PROJETO LITERÁRIO AMAZÔNICO DE ALBERTO RANGEL

3.3 Os povos: uma etnografia literária

3.3.3 A elite e o coronelismo de barranco

A elite local merece análise à parte. Em “A expulsão do ‘Paraíso’” [SNA], o Major é dono da fazenda “Paraíso”. O narrador atribui ao personagem “a figura ciclópica do fazendeiro”. E é mais um nordestino a habitar e a enricar no seio amazônico. A elite representa-se não somente pela figura do coronel de barranco, mas também pela classe política. Nesse conto, a figura do Governador do Estado desfila soberba no galeão da Marinha Brasileira. A relação de vassalagem presente entre o Major e o Governador se patenteia na própria narrativa. Esse aspecto do feudalismo, medieval, havia sido utilizado por Euclides para expressar o contrato trabalhista unilateral entre o senhor do barranco e o “cearense”: “Lendo-os, vê-se o renascer de um feudalismo acalcanhado e bronco.” (CUNHA, 1999, p. 14). Além disso, demonstra-se aparentemente o descaso da classe política com a classe econômica:

O Major comovia-se, pregado no barranco, jactancioso da importância que lhe dava a nau oficial, estacando à sua porta e enviando-lhe adeuses amigos e saudosos de lenço agitado, quando deveras, da borda do navio em recreio, um copeiro sacudia as migalhas do guardanapo. (p. 258)

Esse tom sarcástico faz lembrar a boa prosa machadiana da qual Rangel era tributário. A construção metafórica de “A expulsão do ‘Paraíso’” apresenta a disparidade existente entre as relações do coronel do barranco com a autoridade governamental. O tananá dado como presente pelo Major ao Governador possui uma filiação metafórica dicotômica: “o inseto e a Autoridade, a tananá e o Governo...” (p. 259). Rangel preocupa-se com o claro entendimento por parte dos leitores das possíveis relações políticas de suas metáforas.

“O marco de sangue” [SNA] traz a figura do coronel da borracha Serafim Baraúna com seu barracão no Acre. Sua ascensão social se reproduz do seguinte modo:

Aquele chavasco e torpido casarão, construíra-o o seringueiro, que, de “tangerino” no Seridó e “balanceiro” numa usina do sul de Pernambuco, chegara a firmar, na terra opima e deserta daquele sertão e pantanal, o definitivo e soberbo avatar de patrão ricaço e florentíssimo. (p. 298)

Para essa ascensão, o coronel Serafim aproveitou-se da falta de leis rigorosas que protegessem as terras públicas, invadindo o quinhão que considerava de boa conta. Entre as autoridades políticas, no conto homônimo “Inferno Verde”, aparece o governador Silvério Néri (1900-1904). Em “Pirites” [INV], esse mesmo governador

será homenageado como nome de um navio. Isso evidencia as relações políticas não do narrador, mas do escritor Alberto Rangel no ambiente amazônico.

Com os sucessivos exemplos da elite, o produto literário de Alberto Rangel plasma a mordaz submissão a que são submetidas as classes menos favorecidas nesse contexto amazônico de supervalorização da goma elástica. Entretanto, o coronelismo amazônico não se restringe ao boom do ciclo da borracha. O narrador de “Pirites” [INV] refere-se ao feudo do coronel Tito em Maués, terra natal do guaraná: “[...] o coronel Tito domina com os seus olhos rapaces e perfil imperativo de um gavião real.” (p. 133)

“Os inimigos”, último conto de Sombras n’água, reproduz o “seu” Tenente-Coronel Calixto. Esse tuxaua torna-se responsável pela primeira eleição em Pau d’Arco. Sobre esse momento republicano, o narrador rangeliano expressa sua crítica: “[...] primeiro ato público da comédia constitucional, representada, à mesma hora, no Brasil inteiro.” (p. 322). Os ribeirinhos pouco se preocupavam com esse espetáculo político, uma vez que

[...] Vegetavam anulados na servidão à vasta e meandrosa gleba da Amazônia, para que se lhes pegassem as abstrações sociocráticas de representação e sufrágio... Em fim de contas, que lhes poderia significar essa reunião, imposta e regulada por artigos peremptórios da lei, que não lhes valorizava as safras, não os socorria nas pestes, não lhes facilitava as comunicações e não lhes garantia as posses? (p. 323)

Sua relação com esse representante da elite local demonstra o grau de submissão a que se submetem ao “gênio bravateiro”. Nesse enfoque, Inferno Verde traz o conto “Um homem bom”. Numa curta fala da narrativa do “cearense”, há a descrição das eleições via coronelismo no Ceará: “[...] Um dia, por causa de ser preciso preparar as eleições na vila, o Governo mandou chamar o ‘seu’ Coronel [...]”. (p. 94)

A República e o momento da nacionalidade nos confins amazônicos são tomados de maneira alegórica quando Calixto de Os inimigos [SNA] desfralda a bandeira nacional no barracão. O estado de imundice do símbolo nacional indica o estado miserável em que se encontrava a política dos coronéis da nova república. Mesmo nessas condições, ao admirar a bandeira da outra banda do rio, o maioral verificava a consagração de seu poder. A república personalista mostra suas garras, para a perpetuação de um poder autocrático. Na voz da mulher do Coronel, ressoa a crítica do narrador aos anseios republicanos nascentes: “Repubricano é pior que mação!” A utilização da linguagem corriqueira da paraibana parece marcar uma característica da nova república de “inleição” [eleição]. Essa linguagem literária não pretende registrar tão somente o falar

O coronel Calixto possui um adversário e inimigo político, o Andrade. Esse outro coronel havia possuído “um grande cacaual e castanhal no Arapapá e um guaranazal no Amajuru”. Porém, no tempo da narrativa, ocupa a posição social de missionário homeopata, em outras palavras, curandeiro da região. No jogo político, Calixto luta contra o adversário, procurando evitar os votos dessa facção política. Um dos impedimentos provocados refere-se à identidade de um dos eleitores. Andrade argumenta com base no Regulamento. Porém, certo capitão Rocha, português de Alentejo, deslegitima o entendimento e a autoridade de Andrade. A palavra do descendente de colonizador amazônico fala mais alto. A facção de Andrade foi expulsa do processo eleitoral. A ironia do narrador comenta a vitória do partido de Calixto na eleição: “[...] De tal forma findou-se a cena do Sufrágio liberal, no país de regime constitucional e representativo!” (p. 347)