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Do Império à República: do Positivismo ao Liberalismo

CAPÍTULO 2. EUCLIDES DA CUNHA E ALBERTO RANGEL PELA AMAZÔNIA

2.1 Do Império à República: do Positivismo ao Liberalismo

O positivismo de Euclides pode ser compreendido pelas evidências que sua formação filosófica comteana empresta a suas produções intelectuais. No artigo “Da independência à república”, de À margem da história, a evidente referência ao positivismo de Comte surge do comentário atinente à contenda política entre “Exaltados” e os “Reacionários”, entremeada dos “Moderados” ou liberais-

monarquistas da Regência: “[...] o que equivalia à conciliação entre o Progresso e a

Ordem, ainda não formulada em axioma pelo mais robusto pensador do século.” (CUNHA, 1999, p. 149)

Por volta de 1893, na Escola Militar da Praia Vermelha, Euclides estava dominado pelo pensamento de Comte, como assinala em carta de 1904 a Lúcio de Mendonça: “(nesta época sob o domínio cativante de Augusto Comte [...]” (GALVÃO; GALOTTI, 1997, p. 194)

José Leonardo do Nascimento (2011, p. 25) destaca um dos mecanismos do positivismo de Comte utilizado por Euclides: “Empregava, notadamente, as noções comteanas da classificação enciclopédica das ciências.” Nascimento destaca a utilização por Euclides de noções científicas presentes nos Cursos de filosofia positiva de Augusto Comte. A paisagem positivista brasileira foi tingida igualmente pela presença do pensamento do historiador inglês Henry Thomas Buckle. A partir de 1870, sua História da civilização

na Inglaterra passa a merecer leitura dos principais intelectuais brasileiros do fim do

século 19 e início do 20, entre os quais: Sílvio Romero, Capistrano de Abreu, Araripe Jr., José Veríssimo. Euclides da Cunha aparece nesse rol de intelectuais influenciado pelo historicismo positivista de Buckle. Na primeira parte de Os sertões, Euclides assinala que:

[...] A terra sobranceia o oceano, dominante do fastígio das escarpas; e quem a alcança, como quem vinga a rampa de um majestoso palco, justifica todos os exageros descritivos – do gongorismo de Rocha Pita às extravagâncias geniais de Buckle – que fazem deste país região privilegiada, onde a natureza armou a sua mais portentosa oficina. (1946, p. 4, grifo nosso)

Em Sombras n’água, Alberto Rangel cita Buckle em passagem de seu prefácio, de modo a particularizar sua influência no pensamento social brasileiro. Buckle atribuía a fatores geográficos as leis de organização das sociedades humanas. O progresso e a evolução na Humanidade poderiam ser acompanhadas pela linha histórica. A Amazônia, entendida como história incompleta, se sucede no discurso buckleano de Euclides e Rangel. De acordo com Sevcenko (2003), o realismo “intoxicado de historicidade” corresponde a uma das características mais típicas da literatura de Euclides.

Muito embora Euclides confirme sua influência filosófica positivista, não se mantinha um pensador ortodoxo, incapaz de ceder a outras façanhas do conhecimento. Em uma correspondência de 1895, Euclides afirma:

Por aí já vês que a minha atividade intelectual agora converge toda para os livros práticos – deixando provisoriamente de lado os filósofos, o Comte, o Spencer, o Huxley etc. – magníficos

amigos por certo mas que afinal não nos ajudam eficazmente a atravessar esta vida cheia de tropeços e dominada quase que inteiramente pelo mais ferrenho empirismo. [...] (GALVÃO; GALOTTI, 1997, p. 84-85)

Em capítulo sobre a evolução industrial brasileira na passagem do século 19 para o 20, Foot Hardman tece comentário que inclui a figura de Euclides da Cunha:

O fato é que a cabeça dos engenheiros brasileiros da segunda metade do século XIX, chegando até Euclides da Cunha, combinava exemplarmente elementos do positivismo e do liberalismo, disciplina do trabalho e visão transformadora da paisagem, parcimônia de gastos e modernidade urbano- industrial. (HARDMAN, 1988, p. 93)

Essa percepção de Foot Hardman pode ser complementada pelo pensamento de Euclides em 1895:

[...] Infelizmente é uma verdade: as páginas ásperas dos Aide-Mémoires ou dos Engineer’s pocket books são mais eloqüentes, neste fim de século, do que a mais luminosa página do nosso mais admirado pensador. Imagina, se podes, a imensa tristeza que sinto ao escrever isto. [...] (GALVÃO; GALOTTI, 1997, p. 84-85)

É na faina de seus ofícios no ramo da engenharia, como funcionário da Comissão de Saneamento de Santos, que Euclides percebe como se distancia de suas balizas filosóficas, conforme escreve para Machado de Assis em 1904: “Durand-Clayde, Bechmann, Arnold (como estamos longe de Taine, Buckle, Comte, Renan...) estes bárbaros anônimos são os familiares deste Mau-Ofício...” (p. 197)

Nessa discussão, não pode ficar de fora a “geração de 1870”, que impulsionou o pensamento crítico brasileiro, bem como o ambiente intelectual de Euclides da Cunha. Pensadores como Sílvio Romero, José Veríssimo, Tobias Barreto, Nina Rodrigues significariam um salto na intelectualidade brasileira. Em Os Sertões, Sílvio Romero aparece em nota de rodapé com trecho de A poesia popular no Brasil, em que trata da passagem do naturalista George Garner pelo Ceará. Mais uma vez, recorrendo ao prefácio de Sombras n’água, o qual indica personalidades com influência nas ciências humanas e sociais do Brasil, Alberto Rangel faz referência à preocupação de Romero quanto à constituição étnico-racial brasileira: “Sylvio Romero, o erudito e ardente perscrutador das correntes de nossa formação étnica, devia encontrá-los [os imigrantes]. O olhar agudo do sergipano acompalhá-los-ia com interesse mais grave e mais proveitoso.” (p. 38-39). Nessa passagem, Rangel analisa a mestiçagem provocada pela relação da tríade da constituição da identidade nacional: o índio, o negro e o branco europeu.

Segundo Candido (2000, p. 107), a obra crítica do paraense José Veríssimo, outro representante da geração de 1870, constrói a “passagem do historicismo à estética”, um novo momento para o positivismo no pensamento da história literária. Em Que é

literatura?, Veríssimo (1994) preocupa-se com o problema do isolamento entre as

regiões brasileiras: “[...] e de fato os ribeirinhos do Amazonas estão muito menos em contato com os do Paraná que com os do Tejo ou do Sena...”.

No discurso de recepção na Academia Brasileira de Letras, Euclides refere-se ao artificialismo com que certas ideias aportavam na “inteligência brasileira”, incluindo algumas que partiam dessa “geração de 70”:

O qüinqüênio de 1875-1880 é o da nossa investidura um tanto temporã na filosofia contemporânea, com os seus vários matizes, do positivismo ortodoxo ao evolucionismo no sentido mais amplo, e com as várias modalidades artísticas, decorrentes, nascidas de idéias e sentimentos elaborados fora e muito longe. (CUNHA, 1975, p. 237)

Na passagem para a República, o positivismo representou para alguns republicanos a possibilidade de ter uma doutrina de coesão, especialmente diante das incertezas na organização da República nascente (FAUSTO, 2008, p. 138). Floriano Peixoto e outros oficiais do Exército, por exemplo, não cediam às influências positivistas.

No final de sua vida, Euclides vislumbra outras perspectivas de pensamento filosófico, criticando acidamente seus antigos postulados, como podemos ler na carta de 1909 a Oliveira Lima: “Logo que me desembarace do Kant, do Comte, do Spencer, do Spinoza (o mais maravilhoso dos malucos) [...] – logo que me veja livre desses felizes medalhões – irei dedicar-me de corpo e alma à tarefa.” (GALVÃO; GALOTTI, 1997, p. 405-406). E continua imperturbável:

Mas ao falar nos sujeitos precitados, não tenho meios de conter uma expansão de sinceridade: que desapontamento, lendo-os detidamente! Até então eu rodeava-os de uma veneração religiosa. De perto, vi-lhes a inferioridade. [...] Não pararia mais se desse curso à onda de rancor que me abala diante desses nomes outrora tão queridos. Felizmente aí estão George Dumas, Durkheim, Poncaré, e na Áustria, o lúcido e genial Ernesto Mach [...] (p. 406)

Nessa renovação do pensamento euclidiano, entra a figura do pensador liberal John Stuart Mill (1806-1873), como assinala carta de 1909 a Gastão da Cunha, no contexto do concurso que prestou ao Ginásio Nacional (Colégio Pedro II): “[...] mantive intactas todas as linhas de defesa que eu delineara com os ensinamentos do meu mestre Stuart Mill – tão incompreendido pelos presunçosos filosofantes destes tempos...” (p. 421)