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Um paraíso perdido: novos rumos

CAPÍTULO 2. EUCLIDES DA CUNHA E ALBERTO RANGEL PELA AMAZÔNIA

2.4 Um paraíso perdido: novos rumos

Em junho de 1906, cerca de seis meses após retornar ao Rio de Janeiro, Euclides volta a tratar de Um paraíso perdido em carta a Escobar:

Em paz, portanto, esta rude pena de caboclo ladino. Ou melhor, que vá alinhando as primeiras páginas de Um paraíso perdido, o meu segundo livro vingador. Se o fizer, como o imagino, hei de ser (perdoa-me a incorrigível vaidade) hei de ser para a posteridade um ser enigmático, verdadeiramente incompreensível entre estes homens. (GALVÃO; GALOTTI, 1997, p. 306)

O projeto amazônicos de Euclides prossegue e suas pretensões não se modificam desde março de 1905, quando objetiva a nova obra vingadora. Fato não mesmo curioso, ainda no início de julho de 1906, Euclides comenta com Firmo Dutra: “Não sei se aí chegou a notícia de que ia ser nomeado chefe da fiscalização da Madeira-Mamoré” (p. 307). Essa modernidade na selva, para escoamento da produção gomífera, não foge às reflexões de Euclides, como veremos a seguir.

Na iminência de assumir o referido cargo de fiscal do Governo na construção da Madeira-Mamoré, o autor de Os sertões confessa a seu pai mais pretensões amazônicas:

[...] Não pude resistir a esta atração. Será mais um sacrifício; mais uma arrancada valente para o futuro; e sei que o sr. não reprovará o meu ato, que será o meu último ato de temeridade. Além disto irei completar as minhas observações, ainda falhas, sobre a Amazônia. (p. 311)

Essa nova fase não se consuma, por algumas razões apresentadas em carta do final de setembro de 1906:

[...] Recusei a fiscalização da Madeira-Mamoré – não só por evitar grande contrariedade a meu pai – como por não perder viagem que me será mais útil: a demarcação dos limites com a Venezuela – que só não terei se o barão não continuar no governo. [...] (p. 313)

Apesar das incertezas na carreira como engenheiro, o processo de composição de Um

paraíso perdido não parece ser interrompido. Na verdade, o planejamento euclidiano

exige a colaboração de companheiros da Comissão mista ao Alto Purus:

Já comecei – finalmente! – a alinhar Um paraíso perdido – e a este propósito peço-te que me mandes o Álbum do Amazonas, assim como as melhores observações que obtiveres quanto à borracha em geral, e a sua atual situação mercantil, em Manaus. Além disto manda-me o que encontrares relativo ao assunto. (p. 314)

No post-scriptum dessa mesma correspondência, Euclides dá notícias da breve publicação de Contrastes e confrontos, o qual possui ensaios relacionados à Amazônia, como: “Conflito inevitável”, “Contra os caucheiros”, “Entre o Madeira e o Javari”. Esse anúncio é reforçado no final de 1906, com a iminência da publicação: “[...] Tais artigos são uma espécie de filhos naturais do espírito, mais descuidados, talvez, porém às vezes mais dignos do nosso amor.” (p. 322). Certamente, esses artigos amazônicos configuram partes indispensáveis do projeto amazônico de Euclides. Até mesmo seu “Discurso de Recepção”, por ocasião de sua posse na Academia Brasileira de Letras, enfrenta a questão amazônica, como um problema literário e científico. Após a publicação dessa reunião de ensaios, parece que Euclides abandona o grande livro sobre a Amazônia, antevendo a impossibilidade de compor uma obra nos mesmos moldes de

Os Sertões.

Em fevereiro de 1907, em missiva a Oliveira Lima, trata novamente de seus trabalhos no Ministério das Relações Exteriores e indica novo convite recebido para voltar à Amazônia, porém sem poder a assumir o compromisso:

Tudo muito arrependido de haver recusado uma [Comissão], pessoalmente oferecida pelo dr. Afonso Pena, e que é a mesma confiada agora ao Bueno de Andrada. Mas como voltar já, tão cedo, outra vez, à monotonia acabrunhadora da Amazônia? Além disto teria de contrariar ao meu velho, e cometer o pecado de dar-lhe um desgosto numa idade em que lhos devo poupar. (p. 325)

Depois disso, não encontramos qualquer informação que se refira à concretização do projeto de Um paraíso perdido. Em 1909, Euclides organiza À margem da história, em que reúne boa parte de sua produção amazônica. Segundo Foot Hardman (2009, p. 42), com essa obra, o autor parecia ter abandonado o projeto de Um paraíso perdido.

Na verdade, como bem observa Foot Hardman (2009, p. 38), Euclides deixou “ensaios, relatórios, cartas, crônicas ficcionais, a principal reunião desses textos ele próprio organizou, na primeira parte do livro À margem da história, que veio à luz no Porto, em 1909, poucos meses após sua morte.” O projeto inicial, então, dispersou-se em várias

manifestações literárias. Todas elas incluem capítulos amazônicos entre aqueles que enfocam outras dimensões da realidade brasileira, como ocorre em À margem da

história, numa visível pretensão de integrar a Amazônia ao Brasil, para completar a

nacionalidade brasileira.

Em relação a “Judas-Asvero”, Foot Hardman (2009, p. 47) considera que “essa narrativa curta possui uma unidade épico-dramática que nenhum outro escrito amazônico do autor logrou alcançar.” Ademais, enxerga nesse trabalho euclidiano o seguinte:

[...] uma escritura inserida nos rumos mais gerais e elevados da modernidade, em sua matriz romântica mais agônica, vinculada a uma linhagem de representação do destino trágico da condição humana pela atualização do mito clássico do labirinto, que trafega desde Dante e Shakespeare e a Milton, de Dostoiévski a Kafka, desde a Borges? (HARDMAN, 2009, p. 47)

No tocante ao estilo literário de Euclides, Foot Hardman deixa registrado que:

[...] Sua literatura, alheia a escolas estéticas fechadas, cavava espaços na luta contra os limites extremos do habitat humano. Forjava assim, nesse confronto do vazio, um estilo único. Não só estilo, mas gênero único, híbrido, mestiço, inclassificável e, por isso mesmo, desde sua primeira aparição, inteiramente moderno.(p. 49)

Essa modernidade literária de Euclides, inconfundível em seu estilo, apresenta-se como expressão genuína da América Latina, pois transforma modelos, ideias, ideologias europeias, com os elementos próprios da realidade local.

Leandro Tocantins (1978, p. 56-57) arrisca dizer que o estilo euclidiano mistura expressionismo com cubismo. Em outras palavras, ao representar a Amazônia, Euclides impinge “lirismo e crueza”. Tocantins aduz:

A compreensão da trajetória geológica da região e dos aspectos singulares da geografia, absorvida nas leituras de Alfred Russel Wallace, Frederico Hartt e outros (ele os cita nominalmente, e completadas pela observação pessoal), fazem-no recriar um cenário insólito que nunca os cientistas, com sua linguagem seca e hirta, poderiam nos transmitir [...]. (TOCANTINS, 1978, p. 57)

Nos textos legados de seu segundo projeto vingador, parte da tradição literária exposta no primeiro capítulo desta Dissertação aparece de maneira condensada no artigo “Terra sem história (Amazônia)”, de À margem da história. Provavelmente, mais uma das antilogias registradas por Euclides, haja vista que a “terra sem história” possui, na verdade, uma história desconhecida ou esquecida.

Em seus estudos amazônicos, Euclides dedica-se ao que considera “o maior dos problemas fisiográficos”, em especial ao homem da terra, seu “ator agonizante”. Como páginas literárias, o conto “Judas-Asvero” e a crônica do “caucheiro de Shamboyaco” são índices exemplares das preocupações euclidianas que se estenderão pelos contos de

Alberto Rangel. A preocupação quanto às condições sociais do trabalhador perpassa as narrativas em torno da agonia dos seringueiros e caucheiros.

Nessa direção, Euclides revela, em caráter quase profético, uma proposta de projeto civilizatório para a região, como no capítulo “Transacreana”. Segundo Djalma Batista (1938, p. 38), o autor de À margem da história vai formando seus “sólidos argumentos de ordem civilizadora, econômica, administrativa e visando a defesa nacional: não se assentaram os trilhos da ferrovia que abarcaria a ‘circunvalação desmesurada Madre-de- Dios – Ucaiali’”. Outra vantagem levantada por Euclides quanto ao investimento em locomotivas como a “Madeira-Mamoré” ou a “Transacreana” correspondia ao avanço para o “sistema de comunicações em zonas fronteiriças” (CUNHA, 1999, p. 82).

Sílvio Romero (1980, p. 1782) assevera que À margem da história é “superior ao antecedente [Contrastes e confrontos], porque nele se nos deparam muitas das melhores páginas devidas à sua pena.” Romero acredita que o perfil desbravador de Euclides justifica sua posição nas letras nacionais. Embora não tenha legado a obra projetada, na percepção de Péricles Moraes, Euclides escreveu “o primeiro monumento que se vislumbra no horizonte literário amazônico.” (MORAES, 2001, p. 17)