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Os caboclos e seu caboclismo

CAPÍTULO 3. O PROJETO LITERÁRIO AMAZÔNICO DE ALBERTO RANGEL

3.3 Os povos: uma etnografia literária

3.3.1 Os caboclos e seu caboclismo

No conto “Hospitalidade” [INV], o narrador rangeliano contraria a crença de um Amazonas inabitado. Esse narrador-viajante visa revelar o modo de organização social da Amazônia para o leitor brasileiro de outros centros metropolitanos:

[...] a sucessão das moradias, fazendas ou pequenos sítios, acotovelando-se em toda a margem, marcos extremos na frente comuns, daria um desmentido à ignorância do país, embaido pela falsa visão de um Amazonas inculto e inabitável. (p.71)

O caboclo, tipo comum da região, aparece sucessivas vezes, como o verdadeiro protagonista regional, seja na extração da borracha, no cacaual, na montaria, ou em meio diverso. Pela prosa de Rangel, destaca-se a diversidade de tipos do caboclo. Em “Terra caída” [INV], José Cordulo representa o “caboclo onça”, trabalhador infatigável (p. 60). Por outro lado, “A expulsão do ‘Paraíso’” passa a impressão do major sobre a “incapacidade do ‘cearense’ e a preguiça do caboclo”. Contudo, no mesmo conto, há Pedro de Deus, o “braço de lancha”. Além de condutor de montarias, distinguia-se como “bufão rústico” e contador de histórias folclóricas:

Eram sobretudo velhos casos do romanceiro inextinguível, que ouvira aqui e ali, desde criança, anedotas e novelas desabrochadas na anonímia do povo: - o Homero disperso desses contos borralheiros, - constituindo, numa coleção agregada de acaso, o mais imaginoso e pitoresco dos folclores. Coligira-os no Amazonas e no Ceará, nos igarapauas de Marajó e nas quebradas da Meruoca e areias do Trairi, no pouso dos tropeiros, dando uma ajuda ao arrastão dos pescadores, “pegando o jacumã”, de tocaia aos tigres nos lapedos, ou “borrifando” a vela nas jangadas em mar alto... (“A expulsão do ‘Paraíso’”, SNA, p. 246)

Essa passagem pode ser lida como metaficcção. O narrador demonstra, em partes, por meio de quais procedimentos enreda sua contística, uma vez que alia narrativas populares com narradores da literatura clássica. Em alguns casos, como o conto “Um homem bom” [INV], boa parte do enredo preenche-se pela prosa de um “cearense”, que promete explicar a razão histórica para uma cicatriz que traz no peito, desenvolve-se um conto macabro. Ainda na exemplificação do literário Pedro de Deus, de “A expulsão do ‘Paraíso’” [SNA], cabe outra citação curta que relaciona os mitos amazônico a outros

mitos da literatura mundial:

[...] E os mitos transluziam fugitivamente na textura ingênua desses poemas, que da piedade ao sarcasmo, da crueldade à ternura, continham vibrações indefinidas de temas de tragédia ou de comédia, com desfechos inesperados e onde as paixões estrepitavam, desbordadas em sucessos sérios ou risíveis. Esopo em colaboração com Schérazade, Andresen, Perrault e Rabelais. (p. 248)

Desse modo, há a tentativa de equiparar tipos amazônicos a reconhecidos personagens históricos, reinventando lendas ou mitos, como no caso da comparação do potentado latifundiário Roberto de “Obstinação” [INV] com a personagem Gargantua de Rabelais. Em “Hospitalidade” [INV], o temível bandido Flor dos Santos pode ser comparado a um serial killer francês: “Duas, três, seis mortes, eis a folha de serviços do Troppmann sertanejo.” (p. 75)

Em face da presença dos imigrantes “cearenses”, da disputa por uma melhor situação de vida, Rangel predestina o caboclo a ser o verdadeiro dono da terra:

Mal sabe o caboclo que, na avidez da sociedade nova acampada no Amazonas, ele, com o seu caráter reservado onde paira certa tristeza de exilado na própria pátria, é um moderador feliz e inabalável. ( “O tapará”, INV, p. 44)

O “exilado na própria pátria” detém um conhecimento intuitivo do funcionamento do bioma amazônico. Em “Hospitalidade” [INV], é ele quem conhece os regimes do vento: “O caboclo percebe com um tato assombroso a menor alteração no bafo animador, quando está para cessar, para avultar em rajadas curtas ou demoradas, ou para manter o seu expirar manso.” (p. 70). Essa constatação deixa o narrador naturalista perdido com seu aparelhamento científico falível ou artificial.

No seu pensamento positivista, o narrador rangeliano não se furta ao desejo de difundir possíveis teorias étnicas, como a que assistimos no desfecho do conto-ensaio “O Tapará” [INV]:

[...] o sangue do pária tapuio terá o seu coeficiente molecular de mistura ao sangue de tantos povos, argamassado num só corpo, cozido em cadinho único, fundido num só molde. Cadinho, molde, corpo: aparelho e resíduo de transformação consumada, onde com o mameluco, o carafuz e o mulato e esse indo-europeu, que preponderar na imigração, ter-se-á tornado o brasileiro tipo definitivo de equilíbrio etnológico. [...] (p. 46-47)

Nessa teoria étnica, o negro apenas tangencia o discurso literário. Em “Hospitalidade” [INV], uma família de negros mora em um paradeiro inusitado, o Cainamã. A problemática do negro pode se reportar ao fato de o Amazonas ter sido a segunda província a abolir a Escravidão por volta de 1º de julho de 1884 (FIGUEIREDO, 2011). Na história da literatura amazônica, o romance O Cacaulista (1876), de Inglês de Sousa, contém marcas da escravidão de negros na sociedade paraense.

No excerto de “O Tapará” [SNA], fica patente o projeto civilizatório concebido para a Amazônia. Pela voz narrativa, a culminância civilizatória torna-se inescapável, como parte de um evolucionismo social. O caboclo amazônico configura o ponto máximo da miscigenação de raças.

Outras teses vão se perfilando de acordo com a temática abordada. Em “Os inimigos” [SNA], Rangel descreve novamente o mosaico que compõe a gente da terra: “[...] o sangue de raças típicas se mesclara no jogo permutante das transfusões de acaso, entre índios, negros e iberos exóticos.” (p. 322)

Em “O leproso Xavier” [SNA], notamos a comparação do homem com espécimes da

natureza. A leveza do protagonista na observação de seu antigo mundo faz o narrador

compará-lo a um maracajá (gato-do-mato). E de sua preocupação decorrente da gravidez de Marcolina ocorre a comparação com uma “anta espantada”.

O banditismo social de “Hospitalidade” [INV] surge vinculado a espécies naturais da região. O temido personagem Flor do Santos é caracterizado do seguinte modo:

Na flora do crime, Flor dos Santos devia impressionar como uma corola dos jardins do inferno. A doce expressão dos verticilos e o título dos bons ajuntados para nomear um bandido! (p. 75) Devia ser assim, uomo delinqüente, constritor como as sucurijus e matador como o timbó... (idem)

Na caracterização despretensiosa do criminoso, Rangel remete seu conhecimento ao pai da criminologia e positivista Cesare Lombroso, o qual publicou L’uomo delinqüente em 1876. O criminoso do Amazonas amplia a aplicação do tratado lombrosiano, uma vez que, na descrição do suspeito, inclui a comparação com a sucuriju ou o timbó.

Em “Os inimigos” [SNA], D. Florinda, esposa do coronel Calixto, recebe qual tratamento representantivo com traços da ictiologia regional: “[...] paraibana gorducha, ralhona e grulha, de meia idade, com olhos expressivos de um ducudu e a boca larga de um mandubé.” (p. 334)

A natureza participa tão ativamente da vida do amazônida que, em “O tapará” [INV], Rangel afirma: “No dilúvio amazônico o homem trocaria bem os seus pulmões por guelras.” (p. 36). Em “Um homem bom” [INV], o aspecto doentio configura a compleição física do caboclo: “[...] A barba rala no queixo magro, o rosto de maçãs salientes, a tez baça de linfático e, na fisionomia de maleitado, os olhos redondos e inexpressivos de peixe morto.” (p. 92). Em tese evolucionista, o botânico alemão de “O marco de sangue” [SNA] destaca: “Na raça humana nada havia a admirar. O homem era um ser contínuo, ele mesmo se historiava; as lições do presente somavam-se às do passado...” (p. 310). Humboldt, Goethe, Darwin e Haeckel se sucedem na explanação do botânico. E as marcas do pós-naturalismo de Rangel se multiplicam e se espalham pelas narrativas com ênfase no caboclo.