• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3. O PROJETO LITERÁRIO AMAZÔNICO DE ALBERTO RANGEL

3.4 O conflito histórico-econômico

3.4.1 Ciclo do Cacau

Para esse estudo acerca da variedade histórico-econômica da Amazônia presente na literatura de Rangel, julgamos conveniente tomar o ciclo do cacau como ponto de partida, tendo em vista sua importância sociocultural exercida antes do boom da borracha. Nesse passo, a partir da leitura de Caio Prado Jr. em Formação do Brasil

Contemporâneo, destacamos o lugar ocupado pelo cacau na sociedade amazônica do

século 19:

O cacau constituía a principal atividade agrícola das capitanias setentrionais: o Pará e o Rio Negro. Trata-se de um gênero espontâneo da floresta amazônica, explorado desde os primeiros tempos da penetração do vale. Na segunda metade do século começa a ser cultivado regularmente. Pouco depois é levado para o Maranhão, e também começa a ser plantado em Ilhéus, na Bahia, que se

tornará mais tarde, e até hoje, como se sabe, o maior centro produtor de cacau do país. (PRADO JR., 1981, p. 155)

Embora se concentre no ciclo da borracha, Alberto Rangel julga necessário considerar outros períodos históricos amazônicos, para uma compreensão abrangente do universo amazônico. No preâmbulo de Sombras n’água, há evidências dessa nova perspectiva. “Sobolos rios que vão” [SNA] não é apenas um tratado naturalista, mas se compatibiliza a cultura amazônica de Rangel. Em dado trecho, aparece o velho ciclo do cacau: “[...] desenraizados numa franja de ‘terra caída’ agüentam-se ainda alguns pés de velhos cacaueiros” (p. 3)

Em “O caçador de plumas” [SNA], o caboclo Firmino cultiva um extenso cacaual. O que se pretende mostrar é que a ascensão de um ciclo econômico se sobrepunha às ruínas de outro. Dado o contexto histórico, o valor da cultura cacaueira não servia nem mesmo para os menores gastos. O personagem Firmino pensa em morrer ao vivenciar esse abalo econômico de desvalorização do cacau. Para esquecer esse momento, fuma “dirijo” (maconha). Estimulado pelo narcótico, sonha com ouro a brotar do fundo do rio. Com a baixa nos preços e a retração da venda do cacau, o caboclo Firmino partia para a atividade de caça e pesca da tartaruga ou do peixe-boi. No entanto, a única atividade rendosa era o trabalho no seringal.

No cenário de “A traição dos rastos” [SNA], a casa de João Bacatuba abrigava um cacaueiro. A cabocla Raimunda do Felismino de “O Viking” [SNA] era viúva de um “cacaulista”. Em “A expulsão do ‘Paraíso’”, o Major, em sua fazenda Paraíso, possui também seu cacaual, embora não se detivesse apenas a essa atividade econômica. O cacaual de “Os inimigos” [SNA] funciona apenas como cenário das primeiras eleições republicanas em Pau d’Arco. Primeiro, os “pequenos”, as crianças, utilizam-se de varas de cacau para espantar o xerimbabo. Depois, as copas dos cacauais cobriam o barracão onde se concentrava os populachos das eleições. O cacaual como pano de fundo, como algo que tem função apenas secundária no quadro histórico-político-econômico, pode ser lido na passagem: “Não durou muito que a maioria dos eleitores se dispersasse no cacaual, aguardando a hora de votação.” (p. 336). Não se faz mais qualquer referência ao peso econômico desse produto.

A profundidade histórica do conto “Os inimigos” [SNA] permite notar a transitoriedade e a sobreposição de ciclos econômicos na Amazônia. O personagem Andrade, por exemplo, havia sido homem de várias posses:

Tinha possuído em tempos um grande cacaual e castanhal no Arapapá, dois seringais e vários copaíbais no Maçauari e um guaranazal no Amajuru; depois lhe dera o tangro-magro e o pobre habitava, com seus dois filhos, uma barraca meio desmantelada, no empedrado estéril de uma terra firme. (p. 339)

Inusitadamente, Alberto Rangel estabelece o diálogo com Inglês de Sousa, mesmo sem indicar diretamente essa referência. De fato, o dialogismo estabelece-se pela cavidade temática das narrativas. Inglês de Sousa pertenceu a um período da literatura amazônica caracterizada pelo fim do ciclo do cacau, o que lhe possibilitou a construção romanesca de obras como o O cacaulista (1875), em que a presença do cacaueiro se torna orgânica. Em Rangel, a organicidade toma feições de decadentismo de um ciclo. Outra conexão estabelecida entre Inglês de Sousa e Rangel refere-se ao tratamento dado à revolta da cabanagem. Em “Os inimigos” [SNA], Rangel transforma o santo Andrade em personagem com profundeza histórica, por haver vivenciado a cabanagem em Ucuipiranga e a guerra do Paraguai.

No poema “O caçador e a tapuia” (1858), do português Francisco Gomes de Amorim, percebe-se a forte presença das plantações cacaueiras. Entre outros versos, podemos destacar:

“Tapuia, linda tapuia,/Que fazes no cacaual?”/ – Por aqui é meu caminho/ Para ir ao cafezal. – [...] – Ando em busca de baunilha,/ Que minha mãe me pediu./ - “menina, nos cacaueiros/ “Nunca a baunilha saiu”. (TELLES; KRÜGER, 2006, p. 31)

Essa exemplificação pode caracterizar a preocupação de vários escritores na caracterização de elementos socioeconômicos e naturais capazes de pintar as cores da terra amazônica. Rangel não fugiu a essa posição literária. Sombras n’água se encarrega de aprofundar essas relações com a terra amazônica, embora, em Inferno Verde, outros símbolos econômicos estejam presentes.

A presença do cacau não se faz em longos tratados, mas mantém suas pistas no discurso literário, como a indicar sua presença constante, mesmo que ornamental: “Um caminho, alargado de novo, levava por entre o canaranal ao terreiro da casa afogada nos cacaueiros e abieiros.” (“Terra Caída”, p. 64). Mais à frente, outra função: “Por baixo dos cacaueiros grupos de redes, onde alguns convivas tresnoitados e mais lassos recuperavam forças.” (p. 65) Ora ressurge como elemento da cultura alimentar: “Caboclas, velhas algumas, embalavam os filhos ou netos, outras, à beira do fogo esperto, preparavam o cacau e o café.” (p. 64)

No final do conto “Os inimigos” [SNA], Pau d’Arco é tomada por um fogo provocado por incendiários. Parte das labaredas avança no sentido de um cacaueiro, o que

prorrompe a interpretação do apagamento de um ciclo sobreposto por um ciclo de fogo incontrolável. A prática da queimada nos roçados já havia sido descrita por Alberto Rangel em “Terra caída” [INV], sem ganhar essa conotação de crime cometido contra a natureza, porque a floresta tem seus mecanismos de defesa: “Parece que o delírio da chama vai converter num só mar ígneo os plainos de em torno. E nada subsistirá. Nem mais uma verde copa de árvore nessa algara de fogo... Mas, a floresta defende-se com a umidade.” (p. 62)

Em “Os inimigos” [SNA], o fogo a avançar por sobre o cacaual liga-se à imagem da fumaça dos defumadores da borracha em meio à floresta. O “mar ígneo” metaforizado por Rangel participa do infernismo que caracteriza essa literatura amazônica.