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CAPÍTULO 3. O PROJETO LITERÁRIO AMAZÔNICO DE ALBERTO RANGEL

3.3 Os povos: uma etnografia literária

3.3.2 O indianismo

Nos poucos contos em que o elemento indígena se faz presente, a narrativa indica ruínas da cultura e da memória nacionais. O conto “Hospitalidade” [INV] revela parte da história da transformação étnico-social e econômica pela qual passou as localidades habitadas pelos índios Muras:

[...] O Amatari é barranco cheio de história; figura um palimpsesto em barro e húmus. Nele inscreveu-se certa maloca de Muras, rasparam-na e substituíram-na pela fazenda Mendes e, mais tarde, por uma colônia agrícola do Governo. Entre estes dois extremos – maloca e núcleo colonial, do índio Manuel João e Frei José das Chagas ao coronel Bezerra, medeiam mais de dois séculos e meio. (p. 71)

Em “A decana dos Muras” [INV], é notória a indicação do genocídio provocado pelos colonizadores e por outros interesses econômicos na região. A respeito dos Muras, interessa-nos anotar que, em 1729, mais de 20.000 índios dessa tribo foram assassinados por um comando militar português (SOUZA, 1977, p. 46). Finazzi-Agrò faz relevante análise desse conto de Rangel. O horror com que o narrador descreve a personagem beira o grotesco. Mas, vai além. Finazzi-Agrò percebe o funcionamento da dialética “centro de horror” e “centro ideal” da Nação:

[...] Como se sabe, de fato, as palavras madeira, matéria, matriz e madre têm todas a mesma raiz que as associa, apontando para uma gênese selvática daquilo que “materialmente” existe, ou seja, remetendo para uma dimensão ancestral – ao mesmo tempo, central e liminar, física e metafísica – a partir da qual tudo se pode dar. (FINAZZI-AGRÒ, 2002, p. 226)

Essa “dimensão ancestral” permite que a leitura se prolongue até a primeira manifestação literária sobre os Muras, no épico Muhraida, de João Henrique Wilkens, signo da deplorável barbárie praticada por colonizadores na tentativa de domesticar o indígena. A justificativa épica encontra na resistência dos Mura em proteger seu território contra a invasão estrangeira, por vezes de modo violento, a razão para o holocausto português. Alberto Rangel escreve o conto como indicativo das sucessivas matanças, “muhraidas”, sofridas pelos diversos grupos étnicos indígenas até o início do século 20. Além disso, demonstra a dispersão ocorrida nesse povo. No último conto de

Sombras n’água, aparece João das Mercês, mura dos “Autazes”, como mesário das

eleições em Pau d’Arco.

O indianismo não se constitui apenas pela presença dos grupos indígenas, mas também pela presença do imaginário indígena. Em “A expulsão do ‘Paraíso’” [SNA], a personagem Rosa refere-se ao mito de Jurupari, para compreender seu sonho de mau agouro. Em “O leproso Xavier” [SNA], um pajé não é capaz de curar a hanseníase. Nesse mesmo conto, outros índios aparecem em um barracão peruano no Javari. Por outro lado, em “Os inimigos” [SNA], o homeopata popular Andrade entregava os casos mais desenganados por sua medicina para a medicina indígena: “[...] o pajé do Maracauaçu tentava aguentar o doente, espancando a caruara, com as fumigações, gritos, fomentações, danças, escarficações [sic], benzeduras e insuflações mágicas.” (p. 340)

É preciso entender igualmente a presença linguística e cultural dos indígenas na base da cultura amazônica. A linguagem vem recheada de termos tupi, do nheengatu: “A Rosa arrumava os seus modestos haveres, os “picuás”, atafulhando em um grande panacu os

cacarecos que sobravam da caixa e do baú de folha [...] (p. 252)”. Em “Os inimigos” [SNA], as vespas vêm sob o nome de “tatucabas”. Essa cavidade linguística não transcorre em puro artificialismo ou exibicionismo, mas por uma necessidade de verossimilhança, de ligação com a realidade amazônica. O indianismo rangeliano acaba por configurar uma das frações do nacionalismo literário de sua prosa.

Segundo Paul Ricoeur, na definição de mimese I, compartilhada pelo autor e leitor no mundo da pré-compreensão do mundo objetivo, a mediação simbólica compõe-se de símbolos de natureza cultural (1997, p. 92). Essa linguagem indianista de Rangel configura-se como parte indispensável da mediação simbólica para compreensão da realidade amazônica.

O mesmo nheengatu foi alvo de pesquisas apaixonadas de Couto de Magalhães em O

Selvagem (1876) e do italiano Ermano Stradelli. Pouco antes, em outras obras

amazônicas, sucede-se o léxico transmitido pela língua geral amazônica. Como proposição comparativa, separamos um trecho de Os Selvagens (1875), de Francisco Gomes de Amorim: “- Um ubá e dois remadores para flechar tartarugas e arpoar pirarucu. Seis homens ao lago para bater timbó; dois, à espera dos caititus; outros, vão apanhar frutos de inajá, tucumã, miriti e mucajá.” [...] (AMORIM, 2004, p. 36)

Ainda no conto “Os inimigos” [SNA], um oficial do gabinete do Governador conta o caso do Aiapuá “numa meia língua de mura domesticado.” (p. 256). Podemos argumentar igualmente que a própria ficção contribui para a domesticação da linguagem indígena, absorvendo-a para o universo da língua portuguesa ou indicando seus processos de apropriação pela cultura hegemônica.

No derradeiro conto de Sombras n’água, a presença do índio como eleitor nos confins de Pau d’Arco é descrito pelo narrador: “[...] o índio, simplacheirão, conservava-se indiferente, de olhos pregados nas manchas de purupuru, que lhe nodoavam todas as manoplas.” (p. 343). A indiferença do índio exemplifica a distância cultura desses povos com a dita civilização republicana. O elemento indígena serve como parte do grupo de manobra política. Os purupurus, tribo do rio Purus (AM), fazem lembrar a ligação de Euclides da Cunha com a região. Embora a preocupação indianista não seja o mote do projeto de Euclides e Rangel, não se trata de tema evitado ou relegado a segundo plano como alguns pensam ou poderiam supor. Nesse momento da cultura nacional, não é permitida mais a idealização romântica do indígena. As transformações pelas quais os

índios passam em romances como Simá e Os selvagens se agravaram de forma avassaladora no início do século 20.