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DEMOCRATA NO PENSAMENTO MARXISTA EM EDUCAÇÃO

2. Democracia e educação no Brasil

2.4 Cidadania e direito

A questão da cidadania, como a expressão do homem pleno em direitos é uma constante na argumentação crítica às políticas educacionais, afinal, o papel da educação é formar o cidadão – tanto no discurso do Banco Mundial quanto da esquerda. Toda nossa análise sobre a democracia se sobrepõem à cidadania e ao universo dos direitos – que nunca são universais – mas por serem históricos, são os direitos definidos na esfera jurídico-política do Estado burguês. Este foi também tema da social-democracia, menos na utilização do termo cidadania, mais em voga no final do século XX, porém a questão do homem pleno em direitos resguardados juridicamente, foi a maior das bandeiras de luta, além de ter sido o maior resultado histórico do movimento político da social-democracia. A presença no parlamento e as estratégias de garantir, pela legalidade burguesa, os avanços do mundo do trabalho, caracterizam essa postura teórica do marxismo enquanto social-democracia.

nacionais, é mais uma palavra que encobre o fenômeno da exclusão dos “cidadãos” brasileiros de diversas instâncias da vida social, a exemplo da educação (FRIGOTTO, 2003b, p. 120).

Ao criticar enfaticamente a interferência da política na esfera social, econômica e cultural, o neoliberalismo vai questionar a própria noção de direito e a concepção de igualdade que serve (ao menos teoricamente) como fundamento filosófico da existência de uma esfera de direitos sociais nas sociedades democráticas (GENTILI, 1996, p. 19).

Ora, não se trata de ser “ao menos teoricamente”, a igualdade é ideologia nas sociedades democráticas, ideologia essa que pode se expressar como igualdade em teoria filosófica, mas não revela a realidade das sociedades democráticas que se constituíram na história. Além do que, a idéia de direito é a formulação mais acabada do instituto jurídico da sociedade capitalista burguesa, é pelo direito que se dá a conformação em lei das regras acordadas e toleradas pela lógica da acumulação. Nem por isso cumpridas, afinal o acordo muitas vezes é resultado de derrota burguesa na tensão de classes e a vitória na elaboração da lei não garante absolutamente o cumprimento dessa mesma lei. Assim, a derrota da classe trabalhadora pode configurar-se pelo não cumprimento da lei, ou pela implementação de políticas distorcidas se comparadas ao “espírito da lei”.

Ocorre que, no interior do debate marxista, a social-democracia constitui a defesa dos direitos como a bandeira por excelência da construção socialista e as muitas das variadas correntes desse pensamento, identificam que pela ampliação do direito a todos os homens – o que se cola à democratização – é possível ir constituindo-se um novo Estado no interior das relações capitalistas de produção. O autor continua:

Tal questionamento supõe, na perspectiva neoliberal, aceitar que uma sociedade pode ser “democrática” sem a existência de certos mecanismos e critérios que

promovem uma progressiva igualdade e que se concretizam na existência de um conjunto inalienável de direitos sociais e de uma série de instituições públicas nas quais tais direitos se materializam. Para os neoliberais a

democracia não tem nada a ver com isso. Ela é, simplesmente, um sistema político que deve permitir aos indivíduos desenvolver sua inesgotável capacidade de livre escolha na única esfera que garante e potencializa a referida capacidade individual: o mercado (GENTILI, 1996, p. 20, grifos nossos).

De certa forma, a crise é produto da difusão (excessiva aos olhos de certos neoliberais atentos) da noção de cidadania. Para eles, o conceito de cidadania em que se baseia a concepção universal e universalizante dos direitos humanos ( políticos, sociais, econômicos, culturais etc.) tem gerado um conjunto de falsas promessas que orientam ações coletivas e individuais caracterizadas pela improdutividade e pela falta de reconhecimento social no valor individual da competição (GENTILI, 1996, p. 20).

O neoliberalismo, para triunfar (...) deve quebrar a lógica do senso comum mediante a qual se “lêem” esses princípios. [democracia e direito] Deve-se, em suma, criar um novo marco simbólico-cultural que exclua ou redefina tais princípios reduzindo-os a sua mera formulação discursiva, vazia de qualquer referência de justiça e igualdade (GENTILI, 1998, p. 230).

Semelhante esquema [princípio do mérito como norma da desigualdade] questiona a noção mesma de “cidadania” ( ou melhor, dá-lhe novo significado, esvaziando-lhe o conteúdo democrático) (GENTILI, 1998, p. 234).

A retração do Estado e a privatização dos serviços, ao contrário do discurso oficial e publicitário, não trouxeram benefícios à população. Ao contrário, privatizaram e elitizaram os serviços, transferiram o clientelismo populista para o clientelismo junto às organizações da sociedade civil e introduziram o voluntariado como uma questão de cidadania. (FRIGOTTO e CIAVATTA, 2003 b, p. 113).

Historicamente, entendemos o problema da cidadania, no Brasil, como uma questão mal resolvida. A questão da cidadania é, originalmente, uma questão alheia à constituição da sociedade brasileira pós-colonial, situação que teria se prolongado sob o fenômeno da exclusão dos “cidadãos” brasileiros de diversas instâncias da vida social. A questão que lhe está subjacente é sobre quem pertence à comunidade política, e, por extensão, quem são os cidadãos e quais são os seus direitos de brasileiros (FRIGOTTO e CIAVATTA, 2003 b, p.100).

No VII Seminário: “Utopia e democracia na educação cidadã” realizado em Porto Alegre em julho de 2000, Gentili (2000) amplia o debate acerca da cidadania explicitando como a entende para além da formalidade do direito, como moral, como ética, no plano dos valores. Sua argumentação vai na direção de que educar para cidadania não é elencar conteúdos éticos e morais, mas realizar o processo ensino-aprendizagem por meio de práticas efetivamente democráticas. Construir uma sociedade eticamente aceitável pode ser para alguns social-democratas – particularmente os revisionistas e os austromarxistas – uma questão de convencimento das maiorias, como se a lógica de tal proposição fosse tão universalmente humana que, ao entendê-la, as classes se irmanariam. Também identificamos aqui uma grande aproximação com o pensamento de Dewey, conforme o capítulo I.

Se entendêssemos que o direito implica em acesso às condições materiais de existência, ainda assim seriam tais condições que permitiriam a vivência cotidiana num plano de maior humanização. Práticas e valores decorrem das condições materiais em que os homens se constituem como homens. Não haveria, portanto, nenhuma possibilidade de cidadania em condições extremas de exclusão dessas condições materiais, sem enfrentarmos a exclusão em si – material – e ao mesmo tempo, mas determinada por aquela – a questão da exclusão da cidadania. Isso seria partir do que é fundamental e secundarizaria todo discurso

moral e ético em torno de uma cidadania desigual. O contrário é tomar a realidade pela idéia.

(...) cidadania e posse de direitos: ser cidadão significa ser portador de uma série de direitos, cuja natureza pode mudar ao longo do tempo. (...)Podemos afirmar que, embora sendo fundamental, essa concepção limita a cidadania a um conjunto de atributos formais (o igual reconhecimento de direitos comuns) que restringem e condicionam as possibilidades e os alcances da ação cidadã. A redução do campo da cidadania a uma questão meramente jurídica e, mais especificamente, de direito positivo, acaba condenando a condição cidadã à esfera da lei e ao compromisso por respeitá-la. Apelar aos indivíduos em sua condição de cidadãos e cidadãs significa, aqui, referir-se aos direitos que lhes

pertencem e não a determinado tipo de comportamento, de responsabilidade, de

deveres ou de ações que os mesmos devem conquistar, cumprir e desenvolver (GENTILI, 2000, p. 145, grifos nossos).

A defesa de uma universalidade dos direitos que pertencem ao homem, descolam-no da história e das condições materiais como questões sociais, coletivas, e Gentili segue cobrando do indivíduo sua conscientização e sua postura ética, como vontade particular, ou como atividade desejável:

Definida como atividade desejável, a cidadania exige uma dimensão mais substantiva e radical. A partir desse ponto de vista, a posse de direitos deve combinar-se com uma série de atributos e virtudes que fazem dos indivíduos cidadãos ativos em consonância e mais além do que a lei lhes concede. O exercício da cidadania se vincula, assim ao reconhecimento de certas responsabilidades derivadas de um conjunto de valores constitutivos daquilo que poderia definir-se como o campo da ética cidadã. Nesta segunda perspectiva, a cidadania é considerada uma dimensão que excede o meramente formal (a esfera dos direitos legalmente reconhecidos) para vincular-se, de forma indissolúvel, a um tipo de ação social e de possibilidades concretas para a sua realização (GENTILI, 2000, p. 146).

Essa insistência na ética cidadã e das responsabilidades dela decorrente é muito próxima a todo discurso liberal – inclusive o neoliberal em educação – pois, não se trata de ter direitos definidos em lei, trata-se de ter a responsabilidade de ser um democrata usufruindo de seus direitos.

Como vimos no capítulo anterior, a questão da cidadania está presente – nestes termos – apenas no revisionismo de Bernstein, quando ele afirma que a social-democracia não quer proletarizar os cidadãos, mas dar cidadania aos proletários, o que significa a manutenção da sociedade civil numa outra ordem social - a socialista. A manutenção da sociedade civil seria a manutenção de todo o ideário liberal, já que para aquele autor “(...) não existe idéia

liberal que não pertença também ao patrimônio de idéias do socialismo” (BERNSTEIN apud FETSCHER, 1982, p.283). Assim, nessa identidade patrimonial, Gentili define cidadania:

A cidadania é, desta forma, o exercício de uma prática indefectivelmente política e fundamentada em valores como a liberdade, a igualdade, a autonomia, o respeito à diferença e às identidades, a solidariedade, a tolerância e a desobediência a poderes totalitários (GENTILI, 2000, p. 147).

Na esteira de ampliar o conceito de cidadania de direito para valor, poderemos apontar pela secundarização da luta por direitos – que é afinal espaço de contradição e de vitórias históricas da classe trabalhadora – mesmo no limite do projeto capitalista. Daí temos que se cidadania vinha a ser o direito – a anunciação no plano jurídico - de comer, ter emprego, vaga na escola, morar, descansar, se vestir, votar..., no plano do valor é fazer migrar o espaço da luta política construído pela classe trabalhadora para o plano religioso. É a substituição da ação coletiva pela postura individual. A ação legal-revolucionária que nos indica Saes (1994) nem chega a ser considerada, pois a própria esquerda negaria o direito por entender que no capitalismo ele não se realizará, porém, mesmo que não se realize é espaço de tensão e contradição que pode produzir consciência de classe, muito diversa é a opção religiosa que se desenha nos escritos de Gentili. Nesta proposição:

Através da ação legal-revolucionária, o proletariado simultaneamente invoca a proteção da legislação constitucional burguesa e denuncia a impossibilidade de seu cumprimento integral; a reivindicação do cumprimento da lei faz parte, portanto, da preparação das massas para a Revolução (SAES, 1994, p.171/172).

Ao contrário, propõe Frigotto(1999a):

(...) a crise do Estado de Bem-Estar carrega consigo uma positividade, cuja concretização política depende da capacidade dos sujeitos sociais concretos de manter e ampliar democraticamente a esfera pública na disputa dos bens, serviços e direitos conquistados no terreno contraditório deste mesmo Estado de Bem-Estar (FRIGOTTO, 1999a, p.78).

Lutar pelo o direito, assim como pela democracia burguesa, é entender o movimento contraditório do real e seus espaços de ampliação das tensões que podem favorecer a classe trabalhadora, porém existem mediações que não permitem essa vinculação direta entre a conquista de direitos no interior do Estado capitalista e o avanço na construção

do socialismo, conforme Martorano (2002, p.61). A vinculação direta entre conquista de direitos e construção do socialismo – formulação mais acabada da social-democracia - permite uma supervalorização da cidadania:

A partir do ponto de vista que defenderemos neste ensaio, a cidadania é um processo construtivo, o qual inclui a possibilidade de definir (sempre de modo conflitivo) os valores e as práticas que constituem, sua própria esfera de ação. De tal forma, quando a cidadania se fecha em “dever ser” de valores e práticas imutáveis ou predeterminadas deixa, por assim dizer, de ser cidadã. (GENTILI, 2000, p. 148).

Se é evidente que o reconhecimento formal dos direitos é uma condição central para a construção de uma comunidade de cidadãos e cidadãs, também o é o fato de que uma cidadania reduzida a critérios jurídicos é, quase sempre uma cidadania vazia (GENTILI, 2000, p. 149).