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A CRENÇA NA ESCOLA COMO ESPAÇO DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

2. Democratização dos anos 80 e as políticas educacionais dos anos 90 no Brasil

2.1 O debate sobre a universalização do ensino fundamental

As políticas educacionais implementadas no governo FHC são exemplos emblemáticos da distância entre o que se propala no plano formal e o que efetivamente se realiza no plano real. Aquilo que é dito enquanto promessa e propaganda do governo e o que se materializa em ações é consideravelmente diferente, sendo o discurso sempre maior que a política implementada. A crítica que o governo FHC sofreu parece limitar-se a revelar essa distância entre o plano formal e o plano real, denunciar a ideologia e explicitar a materialidade estrutural, movimento necessário porém inicial, pois, tal denúncia reafirma o

caráter de classe do Estado e a tensão entre interesses divergentes na sociedade, entretanto, não aprofunda a análise sobre o real, porque o nega. Ao não reconhecer o resultado dessas políticas, os críticos do governo FHC explicitam a distância entre o que se prometeu e o que foi efetivamente cumprido. Exigem que o Estado de classes realize boas e adequadas políticas na direção das maiorias. Apesar de importante, esse movimento teórico precisa ser agudizado e o olhar sobre o real - vencido o falseamento posto pelo plano formal - necessita ainda ser realizado na sua radicalidade. Ir à raiz pressupõe considerar a totalidade, estabelecer as relações entre parte e todo, entendendo as políticas educacionais como parte e a formação social brasileira como todo. 6

O mal estar presente no movimento dos educadores quando se deparam com os dados da universalização do Ensino Fundamental deve ser analisado teoricamente, pois somente a aproximação cada vez maior da realidade permitirá um entendimento do real para possibilitar a formulação de alternativas realmente capazes de transformar essa realidade. Negar contundentemente que a universalização tenha se dado ou desconsiderar que 97% das crianças brasileiras tenham assento nos bancos escolares, parece-nos temerário. Mais que isso, essa leitura descarta as dimensões da realidade, mesmo que reconheçamos em quais condições e com qual qualidade o acesso a escola tenha se dado.

É evidente que apesar de termos universalizado a educação fundamental, há uma geração de crianças semi-alfabetizadas, quando não completamente impossibilitadas de comunicarem-se pela escrita ao final das séries iniciais. Em face desse dado do real, a baixa qualidade é o argumento central da crítica que não reconhece a universalização.

Por outro lado, na contra-mão da proclamada revolução democrática, a “universalização” do acesso à escola, embora tenha significado uma importante conquista popular, longe está de constituir-se na consagração efetiva do direito à educação para as grandes maiorias. De tal forma, pode se observar que, na década de 90, não só não diminuíram, senão se aprofundaram dinâmicas que comprometem a conquista efetiva da educação como direito da cidadania (GENTILI, 2006).

O pesquisador argentino [Gentili] revelou que a universalização do acesso de jovens de 7 a 14 anos na escola, verificada nos anos 90 no Brasil, veio acompanhada pelo aumento da pobreza da população brasileira como um todo. (...) A universalização do ensino foi uma concessão artificial a escolas sem condições, professores sem salários e uma pedagogia sem educação (MARSHALL, 2006).

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Esta análise é resultado de estudo realizado durante os anos de 2001 a 2004 em parceria com a professora Dra. Francis Mary Guimarães Nogueira, no Grupo de Pesquisa em Políticas Sociais – GPPS - da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Nossas conclusões estão publicadas em BORGES e NOGUEIRA (2004).

A universalização do ensino fundamental garantiu acesso de todos, ou de quase todos, à escola, mas não se traduziu em uma educação de qualidade social na qual os conhecimentos são democratizados e a educação é estrutura fundamental da democracia (UNCME, 2006).

Muito se comemorou a quase universalização do ensino fundamental no Brasil. Os números, sem dúvida são bons. O problema está justamente nas crianças que fazem parte desse quase (GOIS, 2006).

Para além dessa constatação, acerca da qualidade, entendemos ser fundamental admitir que está dada a universalização, porém, nas condições apontadas. Afinal, reconhecê-la não é em absoluto considerá-la como o ideal, é, ao contrário, chamar a atenção para a necessidade de analisarmos o que ela é e que papel cumpre. Para isso é fundamental admitir que ocorreu, com baixíssima qualidade, pela estratégia da Correção de Fluxo7 e, respondendo com a desigualdade de oferta dos saberes sistematizados, a escola sempre desigual da história da educação brasileira, nação das mais injustas do mundo. Temos das piores distribuições de renda do planeta e temos a universalização do ensino fundamental visceralmente colada a essa condição estrutural. Da necessidade de considerar o todo – a formação social brasileira e as condições de sua inserção no capitalismo mundial, parece-nos que neste contexto, não poderia dar-se qualquer outra forma de universalização. FHC e seu Ministro Paulo Renato pagam a dívida histórica com a sociedade brasileira e efetivamente garantem ensino fundamental para todos. A escola pública possível numa sociedade de classes, por origem excludente e hierarquizada. Escola que mesmo tendo sido pública desde o início do século, vinha atendendo a uma minoria, e hoje, inversa e contraditoriamente atende a todas as crianças de 7 a 14 anos.

Miriam Draibe, em entrevista à ao jornal Folha de S. Paulo de 06 de outubro de 2002, responde sobre as políticas públicas do governo FHC:

(...) Se olharmos para a década de 90, o país tinha como meta terminar a universalização do ensino fundamental e começar a mexer nos nós da educação, que eram os baixíssimos salários dos professores, a formação deficiente deles e ainda a pequena cobertura do segundo grau, que apesar de tudo ainda tem hoje matriculados só 32% das crianças da faixa etária equivalente. Eram 16% em 1991. No caso do ensino elementar, freqüentam a escola 97% das crianças, em

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Programa Correção do Fluxo Escolar - Aceleração da Aprendizagem , MEC, 1997 . Este programa visa assegurar o atendimento aos alunos do ensino fundamental que “apresentam distorção idade série de 2 ou mais anos, para que estes retomem, com segurança, a série correspondente à sua idade.”. Este programa acontece em todos os estados brasileiros, exceto o Acre. Para o ano de 2002 já estavam consideradas corrigidas as distorções idade-série dos estados do Sudeste e Sul, conforme informações da SEF/MEC. Manual de Orientações para Assistência Financeira a Projetos Educacionais, 2001MEC/FNDE (BRASIL, 2002)

lugar dos 89% no início da década passada. Isso já é, estatisticamente, universalização. Na França o ensino é universalizado, mesmo se 4% das crianças não estejam matriculadas (DRAIBE, 2002).

Estatisticamente temos a universalização do Ensino Fundamental e, esta é a universalização realizável numa sociedade marcada pela desigualdade material e inclusive plenamente adequada à lógica meritocrática da sociedade liberal que vai permitir a aquisição de educação de boa qualidade àqueles que puderem comprá-la no mercado cada vez mais ampliado e diversificado em propostas pedagógicas e filiações doutrinárias. Tais características, longe de serem uma afronta à democracia, parecem parte fundante da lógica na qual estamos imersos, inclusive o clamor por uma escola eficiente passa por atender as demandas próprias à livre concorrência – de origem democrática.

O reconhecimento das péssimas condições e das competentes estratégias para a realização da universalização como o programa Correção de Fluxo do MEC, não deve, portanto, obliterar o fato de que esta universalização realmente se deu. O movimento dos educadores não acreditava que essa universalização fosse ocorrer e, no entanto, se deu. Apostava-se que um governo neoliberal como o de FHC não realizaria a “escola para todos” inclusive esta política se concretizou muito antes do que este mesmo governo havia se proposto como meta.

O esforço empreendido na direção da universalização do ensino básico para a população de 7 a 14 anos, no país, apresentou ótimos resultados. De 1994 a 2000, a escolarização líquida, ou seja, a proporção real de crianças, nessa faixa etária, estudando no ensino fundamental, alcançou a taxa de 96,3%. Foi um crescimento extraordinário, dado o atraso que tivemos na década anterior, com a escolarização variando, apenas, de 80% a 84%. Já em 1998, o Brasil conseguiu antecipar e superar a meta estabelecida pelo Plano Decenal de Educação para Todos, que previa elevar a, no mínimo, 94% a cobertura da população em idade escolar, até 2003. (BRASIL, 2002)

Na direção de buscarmos um entendimento de como se tem apresentado a crítica e quais os resultados e implicações políticas para a realidade educacional apresentamos a seguinte proposição teórica: os intelectuais e militantes do movimento de educadores possuem um ideal de democracia do qual decorre um ideal de escola, um modelo do que seria a escola de qualidade para todos. Sua reflexão e sua ação apontam essa escola ideal como parâmetro para o não reconhecimento da escolarização que temos. Obviamente aliada a essa “escola que queremos”, desenha-se a “universalização que queremos”. Esse argumento amplia-se para questões mais internas à escola como a descentralização, a participação e a

autonomia da gestão escolar.

Pertence a esta lógica a evidente antecipação de um modelo a ser alcançado, que move e alimenta a ação e a reflexão desses educadores comprometidos com um projeto de transformação. Afinal, é indiscutível que o movimento de educadores dos anos 80 pautou e definiu a direção das reformas, que foram sendo adequadas ao projeto de classe do governo que as implementou. A participação direta ou indireta de representantes reconhecidos e respeitados no movimento dos educadores dos anos 80 nos governos dos anos 90, como Paulo Renato Costa Souza, Guiomar Namo de Melo, Eunice Durham, Rose Neubauer, Carlos Roberto Jamil Cury, entre outros, evidencia como havia uma sintonia de proposição e de entendimento do papel da escola. O tom predominante nas análises críticas às políticas educacionais indicam recorrentemente os referidos educadores como sendo traidores dos ideais dos anos 1980, ou mais especificamente mudam de lado ao estarem em espaços de poder. Tal análise leva a formulações simplificadas a ponto de se indicar que havia um plano diabólico a ser realizado. Ou ainda, por exemplo, o senso comum que vem afirmando que as estratégias de construção de uma universalização onde apesar de acesso à escola as crianças não aprendem é projeto pensado e posto em prática pelo ministro Paulo Renato.

Nesse sentido, conforme NOGUEIRA (2001), há uma multiplicidade de determinações que vão indicar quais são as necessidades da escola em seus diferentes níveis: as exigências dos setores organizados dos professores, pais, alunos, intelectuais, as novidades do pensamento pedagógico, os resultados das conferencias internacionais de educação além dos muitos projetos de políticas educacionais e de gestão escolar que se efetivam em municípios e estados federados onde a oposição ao regime militar ganha as eleições nos anos 80.

Não consideramos, portanto, que o Estado seja senhor absoluto da definição da política, mas pela própria característica democrática da sociedade brasileira esse movimento é tortuoso, é um processo rico em determinações variadas e que vai se definindo pela força política dos diversos setores que compõem a sociedade, muitos interesses e projetos atravessam as “demandas sociais” – que são também projetos diferenciados entre si. Em última instância, porém, é o Estado, ocupado por um determinado governo que implementa políticas educacionais. No caso do governo FHC projetos que partiram sim das demandas sociais, mas já não são reconhecidos pela sociedade em função dos ajustes que se fizeram necessários para tornarem-se políticas. Por uma questão lógica da manutenção do Estado, a propaganda de tais políticas é muito mais próxima aos projetos vitoriosos enquanto demandas. Daí a indignação e a referência à traição ou ressignificação das bandeiras da

esquerda. A fração vitoriosa na correlação de forças da sociedade implementa políticas, atendendo ao que caracteriza seu interesse. Em nosso caso, a acumulação do capital.

Pode-se, nessa medida, sustentar que detém a hegemonia no seio do bloco no poder a classe ou fração cujos interesses econômicos são prioritariamente contemplados pela política econômica e social do Estado. (SAES, 2001, p. 51)

Os educadores que criticam o projeto neoliberal ao lidarem com um ideal de escola e de universalização acabam por desprezar a escola e a universalização que estão realmente dadas. Dessa postura teórica decorrem determinadas ações políticas que, em última instância, não têm alterado a realidade. Tais limites estão postos pelo próprio caráter idealista da crítica.

Entender a universalização que foi possível no interior deste projeto de sociedade é perceber como a escola enquanto instituição é reveladora das condições sociais nas quais está inserida, pois, expressa no seu interior toda desigualdade material e cultural que marca os homens numa sociedade de classes.

Universalizamos, enfim, o ensino fundamental em condições precárias de qualidade pedagógica. É este o resultado concreto, a verdade sobre a escola no Brasil, hoje: temos todas as crianças na escola, mas elas não aprendem. Do slogan “Toda criança na escola” do MEC de FHC temos “Toda criança aprendendo” do MEC de Lula.

Marx e Engels em A Ideologia Alemã vão confrontar definitivamente o pensamento idealista alemão revelando inclusive o idealismo feuerbachiano ao afirmar que a verdade é a prática social dos homens. Verdade é o que se realiza no embate da ação efetiva de grupos humanos com projetos e interesses distintos. A verdade não é um bem a ser alcançado, não está na projeção ideal da escola, mas é a escola nas condições concretas que a temos. A escola precária em instalações, material pedagógico, corpo docente; a garantia do acesso sem qualidade; a ausência da ampliação da dotação orçamentária entre outras precariedades. A verdade é o real e sobre esse real é preciso debruçar-se na tentativa de entender a escola que temos com todas as suas decorrências e também reconhecer a universalização para além do discurso subjetivista de apropriação indevida das bandeiras da esquerda.

Desta constatação não deve decorrer nenhum tipo de imobilismo político, pois entender o real como ele é nos parece ser a única possibilidade de transformá-lo. Afinal, enquanto estivermos refletindo sobre elucubrações, aí sim nossa ação, por mais ruidosa que possa ser, nunca se configurará em efetiva transformação da realidade dada.

A análise que tem pretendido alimentar a reação às condições postas pela formação social brasileira necessita buscar uma aproximação cada vez maior das coisas como elas são. A negação da crítica à esquerda de que a baixa qualidade da universalização não a caracteriza como universalização é o movimento de procurar a realização de um ideal que não nos parece ser possível sem transformações mais profundas da realidade brasileira.

Definir o perfil de homem que queremos construir e uma sociedade transformada onde caiba esse homem é condição necessária a todo aquele que empreende uma luta – seja na academia ou na prática política. Esse objetivo que se define é também um ideal, porém visto como histórico, fundado nas condições reais e provisório. Não é o ideal de homem como homem ideal, nem o ideal de escola como escola ideal, que afinal de contas só se realizariam no hipotético fim da história.

O movimento dos educadores e os intelectuais que fazem a análise da escola acreditam, de forma mais ou menos intensa, na possibilidade da transformação da sociedade por meio da escola e, nesse sentido, parece ser uma encruzilhada reconhecer a universalização do ensino fundamental, apesar de termos 97% das crianças na escola. Esse dado da realidade – com as condições próprias dessa mesma realidade e, portanto, péssima qualidade – evidencia onde nos tem levado uma posição política apoiada em bases idealistas.

2.2 Aproximações entre a política educacional brasileira nos anos de 1980 e 1990 e os