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Cisão, dissidência e fragmentação do movimento de luta pela terra: antecedentes

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4.1. Cisão, dissidência e fragmentação do movimento de luta pela terra: antecedentes

Conforme Azevedo (1982) as Ligas surgiram em 1945, após o governo do presidente Getúlio Vargas (1930 - 1945). As primeiras Ligas se organizaram sob a direção do PCB e tiveram como um dos principais objetivos obterem maior projeção das discussões acerca da situação do campo e das relações agrárias no Brasil naquele momento. A tentativa do PCB era expandir a sua área de influencia da cidade para o campo, para construir um elo solidário entre camponeses e operários na luta contra o latifúndio e o imperialismo. A Reforma Agrária inicialmente não constituiu o eixo central das demandas das Ligas, mas, a aliança operária camponesa do ideário do PCB. Todavia, com a luta contra o latifúndio, procurava-se enfatizar a necessidade de definição de novas políticas de âmbito agrário.

Em 1946, na Assembléia Nacional Constituinte, o senador Luiz Carlos Prestes da bancada do PCB, apresentou um projeto de lei de Reforma Agrária. Este projeto, segundo Stedile (2005) já era fruto da consolidação da base social das Ligas Camponesas no embate contra o latifúndio e, portanto, a afirmação da luta pela Reforma Agrária no eixo central das suas demandas. Em 1947, o governo Dutra (1946 – 1951) torna ilegal o PCB e desmobiliza a força das Ligas, que segundo Meira citada por Bastos (1982): “(...) termina a década de 1950 com 40 mil associados no estado de Pernambuco e cerca de 70 mil em todo o nordeste” (p.74).

As Ligas Camponesas foram construídas no embate direto de classe. A imprensa tentou, desde a sua origem, criar uma imagem pejorativa e alienada. Foi essa forma que a luta dos trabalhadores no campo assumiu durante as

décadas de 1940 e 1950. Destaca a entrevista de Francisco Julião3 dada ao Jornal Pasquim em janeiro de 1949:

quem batizou a Sociedade Agrícola e Pecuária com esse nome “Liga”, em 1955 foram os jornais do Recife para torná-la ilegal. A Liga Camponesa começou sendo crônica policial. Qualquer coisa relacionada com a Liga estava na página policial, porque considerava que tudo o que acontecia no campo não era senão uma série de delitos cometidos pelos camponeses sob a orientação desse fulano de tal, esse senhor advogado e agora deputado que criava conflitos, tirando a paz do campo.

(MELO; SILVA, T.M. 2009, p.03)

Embora a impressa oficial tente cumprir com o seu papel de classe, as Ligas Camponesas, como movimento camponês de luta, se expandiram rapidamente no Nordeste. Para Bastos (1984) um fator determinante para isso foi, além da desapropriação do Engenho de Galiléia4, o fato de sua base social, o camponês foreiro, representar uma categoria ameaçada de extinção frente à expansão das grandes propriedades e dos latifúndios. De acordo com Wanderley (2009), a expansão das usinas de açúcar e álcool no Nordeste, a diminuição das áreas de produção de alimentos e as cobranças de altos impostos aos foreiros determinaram também a expansão do movimento das Ligas.

A expulsão em massa, a partir da década de 1950, de moradores de condição e posseiros e a expropriação dos lotes arrendados aos foreiros, fez com que uma parcela significativa de camponeses e trabalhadores rurais se deslocasse para as terras menos férteis e afastadas da Zona da Mata, na fronteira com o Agreste. Para Azevedo (1982) essa dinâmica territorial no Nordeste recriou um campesinato marginal com dupla função de produtor de alimentos e exército agrário de reserva. Também fez com que uma parte desses camponeses desterreados se proletarizassem, migrando para as cidades e vilas próximas aos engenhos e usinas, se tornando o que conhecemos como trabalhadores volantes, temporários, bóias frias do negócio

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Francisco Julião Arruda de Paula, político e escritor, advogou pela Liga Camponesa fundada em 1955 no Engenho Galiléia chamada Sociedade Agrícola Pecuária dos Plantadores de Pernambuco. Eleito Deputado Federal por Pernambuco em 1962 foi cassado e preso em 1964. Foi liberado em 1965 e saiu para o exílio no México ate ser anistiado em 1979.

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A desapropriação do Engenho Galiléia aconteceu em 1959 e foi considerada como a principal vitória da Liga, sobretudo simbolicamente.

canavieiro. Concordamos com a leitura deste movimento feita por Oliveira, A.U. (2007) quando destaca que:

o movimento das Ligas Camponesas tem, portanto, que ser entendido, não como um movimento local, mas como manifestação nacional de um estado de tensão e injustiças a que estavam submetidos os camponeses e trabalhadores assalariados do campo e as profundas desigualdades nas condições gerais do desenvolvimento capitalista no país. (2007, p. 108).

Para entender a complexa trama de relações envolvida no declínio das Ligas, além de levar em conta fatores recorrentes na organização dos trabalhadores rurais, principalmente no Nordeste, como a exclusão, expropriação e exploração, precisamos atentar para a falta de união no interior desta classe. Pois apesar do grande contingente de trabalhadores organizados nas Ligas naquele momento, 1950 - aproximadamente 10 mil trabalhadores - a desunião entre os trabalhadores e o sindicalismo rural foram fatores decisivos para a fragmentação e posteriormente, extinção do movimento.

No que concerne à união desses trabalhadores para participar da mudança da estrutura socioeconômica, principalmente na estrutura fundiária Silva (2009) aponta que:

essa idéia nos apresenta e reforça o quanto os movimentos sociais, quando unidos e coesos, podem refletir nas estruturas econômicas e sociais estabelecidas de uma sociedade. E o quanto esses movimentos podem influir na ordem estabelecida, quando buscam espaços para representar seus interesses, mesmo quando setores conservadores se colocam na tentativa de desvalorizá-los e de constituir sua imagem de forma pejorativa (p.20).

Uma questão específica nas Ligas foi o debate que travou cisões internas a respeito das formas a serem desenvolvidas para alterar a estrutura agrária do país: pela via institucional ou de forma radical.

Também, Azevedo (1982) e Bastos (1984) confirmam a tese da fragmentação das Ligas a partir do processo de dissidências internas que se iniciou com a polêmica gerada na sua militância em relação à radicalidade das suas ações. Entre 1960 e 1961 deu-se a dissidência das Ligas com o PCB,

processo que, para este autor, supõe-se um momento de amadurecimento ideológico das Ligas frente às questões políticas e estruturais que permeavam o cenário nacional.

Para Bastos (1984), a radicalização das Ligas se fortaleceu a partir do I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas em 1961 celebrado em Belo Horizonte. No Congresso de Belo Horizonte o PCB e a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil - ULTAB, que organizavam o evento, tiveram alguns desentendimentos políticos e ideológicos com as Ligas Camponesas. O balanço feito por Azevedo (1982) é que o PCB e a ULTAB saíram derrotados do evento, frente ao apoio conquistado pelas Ligas Camponesas. O que estava em pauta era radicalizar a luta em detrimento de posições mais moderadas e institucionais, adotadas nesse momento pelo PCB. Para Bastos (1984); “desses atritos resultou que, desde 1961, rompeu-se a unidade tática do movimento camponês, unidade proposta pela ULTAB e buscada durante anos de trabalho e arregimentação camponesa”. (BASTOS, 1984, p. 100).

A partir desse momento, a realidade posta para a mobilização da classe trabalhadora rural e camponesa no Brasil se resumia a duas grandes frentes, com posicionamentos claramente opostos na condução da luta pela Reforma Agrária no país: as Ligas Camponesas e o PCB.

As Ligas hasteavam a bandeira da Reforma Agrária radical como a única forma capaz de unir e organizar as forças nacionais que desejavam o progresso para o Brasil, na contramão de reformas que adiassem a liquidação da propriedade latifundiária no país. O PCB era partidário, nesse momento, de uma Reforma Agrária por etapas e sem radicalismos.

Todavia, o embate ideológico que se travou entre as Ligas e o PCB girava em torno do caráter que a revolução brasileira deveria vir a assumir. Esse embate acabou estilhaçando as forças de esquerda, fragmentando-as exponencialmente. Os termos da discordância entre os grupos poderiam ser resumidos da seguinte forma: para as Ligas, sob a liderança de Francisco Julião, existia a possibilidade de uma revolução socialista no Brasil tal como tinha acontecido em Cuba “queimando etapas”, todavia tendo o campesinato como base. Já para o PCB, as reformas estruturais do país que mantinham “resquícios feudais” deviam ser realizadas de forma institucional. A Reforma

Agrária deveria ser realizada seguindo uns passos, sem radicalidade. A nova estratégia de “frente única” que apresentava o PCB naquele momento estimulava a aliança com a burguesia e até os latifundiários, pois a luta era contra o imperialismo (norte)americano. A nova estratégia dos comunistas descartava a revolução armada.

As diferentes frentes, ao se fragmentarem em debates ideológicos, fragilizaram a luta da esquerda pela Reforma Agrária tornando cada vez mais suscetíveis a extinção das Ligas. Aliás, nem pela via radical nem pela institucional a Reforma Agrária se concretizou, em outras palavras, “nem o mé nem a cabaça5”, (sic.).

Nesse contexto de embate ideológico com as forças de esquerda, as Ligas Camponesas ainda eram combatidas pelos latifundiários que, impunemente, as agrediam na tentativa de submeter os camponeses ao seu controle. Esse ambiente hostil, fez com que as Ligas iniciassem uma escalada de radicalização política e ideológica que acabou as isolando ainda mais. Tal processo desembocou numa dissidência ainda maior no movimento, fragilizando-o e enfraquecendo-o. Tanto as forças de esquerda como as de direita estavam interessadas, então, na perda de poder de “fogo” das Ligas. Portanto, agiam para o enfraquecimento e fragmentação interna do movimento.

Essas dissidências por divergências político-ideológicas no interior das Ligas acabaram por ficar registradas na história dos movimentos sociais como o embate entre os “julianistas” e os comunistas, que se conflitaram em defesa das suas convicções e crenças políticas.

Esse conflito, como apontamos, desencadeou uma fragmentação polarizada das Ligas em dois núcleos da catalisação de forças, de um lado o PCB e por outro, segundo Aued (2006):

(...) de um lado o grupo que ficou sendo conhecido, no Nordeste, como os “julianistas”, pois boa parte dele era liderada por Francisco Julião. Integravam-no também alguns militantes afastados do PCB, que não haviam constituído outro partido. O grupo dos “julianistas” enfrentava por sua vez

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Expressão utilizada pelo camponês Elizeu Lima Santos. Isto significa a perda total de um objetivo. No caso aqui, faz-se referência a não efetivação da Reforma Agrária durante o período das Ligas Camponesas. Nem foi possível pela radicalidade do movimento, tampouco pela via institucional.

duas tendências: a dos seguidores de Julião e a da luta armada, à revelia de Julião. (p. 86).

No interior das Ligas, enquanto o grupo de João Pedro Teixeira6 optava pelo cumprimento da lei para realização da Reforma Agrária, a ala radical “julianista” conduzia o movimento dos trabalhadores do campo sob a bandeira de “reforma agrária na lei ou na marra”. Lema que repercute até hoje nos movimentos sociais que atuam no campo.

As lideranças das Ligas em seus discursos políticos em enfrentamentos com o PCB e os próprios “julianistas” se consideravam forças políticas oponentes, utilizando-se segundo esta autora de “recursos que eram de combate de seus adversários comuns, os proprietários” (p. 92).

O processo de cisão interno do movimento das Ligas tornou-se tão acirrado que a dissidência político-ideológica transformou-se na própria fragmentação do espaço, como resgata Aued (2006):

[...] chegou-se a estabelecer uma linha divisória em Sapé/PB, delimitada territorialmente da seguinte forma: Da cadeia pública em direção ao Café do Vento, mandavam Elizabeth e os seguidores de Julião, da “reforma agrária na lei ou na marra”. Da cadeia em diante, seguindo pra Guarabira/PB, mandava o pessoal do PCB (p. 92).

Todavia, na época as iniciativas de organizações rurais se multiplicavam no campo sem a menor previsão nem controle do governo. Foi em 1962, quando as Ligas já estavam presentes em 22 estados, que o presidente Goulart estimulou a sindicalização do campo, numa tentativa de controlar a mobilização agrária, que provocará diretamente um enfraquecimento maior das Ligas.

Segundo Stedile (2006), a ULTAB foi a grande organizadora dos sindicatos de assalariados agrícolas em todos os estados, ao mesmo tempo em que transformava centenas de uniões de agricultores em sindicatos rurais. O clero também se dividiu entre cristãos de esquerda e cristãos de direita para trabalhar na organização rural. O clero direitista encabeçou a sindicalização rural em Pernambuco, área que até o momento era de exclusiva atuação das Ligas. Para este autor o trabalho de sindicalização rural alcançou proporções

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extraordinárias, especialmente durante o governo Goulart, quando o ministro Affonso de Amaury Filho assumiu o Ministério de Trabalho, com clara posição a favor da Reforma Agrária.

Embora, ao mesmo tempo que esse processo se consolidava no campo, as Ligas Camponesas se debatiam numa profunda luta interna. De tal maneira que em 1963 quando representantes da Igreja da esquerda, o PCB, a ULTAB e outras forças convocaram uma reunião para tratar da formação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), as Ligas foram de antemão excluídas dessa central única institucionalizada dos trabalhadores agrícolas. Todavia, a força das Ligas na Paraíba, Pernambuco e Rio Grande o Norte não parou de crescer até o golpe de 1964.

Na prática, o PCB ao propor a sindicalização institucional dos trabalhadores rurais, não previa a fragmentação, fragilização e controle social deste movimento por parte do Estado brasileiro como coloca Aued (2006):

Ao propor a sindicalização no campo, o PCB retoma o sentido das lutas, mas reproduz suas limitações estruturais. Elas se tornam mais transparentes à medida que analisamos o conteúdo das reivindicações. Liga ou sindicato, não conseguiram propor mais que lutas por melhores condições de vida. (Ibidem, p. 92).

O processo de sindicalização no campo, foi apontado como um mecanismo de controle dos movimentos sociais, contribuindo também para a fragilização do movimento de luta como um todo. Segundo Silva (2009), esse foi um projeto pensado pelo presidente Goulart a partir de 1962, dando assim um perfil moderador para a representação da classe no campo.

Afirmamos, portanto, que, a radicalização da estratégia de ação junto às divergências político-ideológicas no interior do movimento das Ligas e o “boom” do sindicalismo rural induzido pelo Estado com apoio do PCB, contribuíram para a fragmentação, dissidência e extinção desse movimento.

Portanto, podemos concluir que foi o golpe militar de 1964 que sinalizou a derrota efetiva do movimento camponês liderado pelas Ligas. Uma das repercussões diretas foi a drástica redução do debate em torno da questão agrária no país, assim como também os debates sobre as relações presentes no campo; a luta contra a exclusão social, política e econômica imposta ao

campesinato brasileiro em especial na região nordeste, até a sua retomada nos finais dos anos 1970 e em especial a década de 1980.

4.2. Movimentos sociais e a fragmentação da luta por terra e pela Reforma