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FIGURA02 MAP

3.1.2. No canavial: a Comunidade Quilombola Pretinha do Congo em Pernambuco

A comunidade “Pretinha do Congo” se encontra nas margens da BR 101 no estado de Pernambuco, no município de Goiana, cercada pelo cultivo desenfreado dos canaviais da mesorregião da Mata Norte pernambucana. Não temos registro da origem histórica da comunidade, todavia a criação da sua sede social data de 1936, quando as famílias negras que ocupavam aquelas terras próximas às áreas de corte de cana-de- açúcar e longe do centro da cidade de Goiana, se organizaram reivindicando as suas raízes africanas e negras escravizadas durante séculos pelo trabalho nos canaviais. A memória dos antepassados permanece viva na comunidade e fortalece a resistência dessas famílias diante das miseráveis condições de vida que o trabalho no corte da cana continua oferecendo-lhes nos períodos de safra.

Na sede da comunidade, apresentada na Fotografia 08, as famílias negras repassam para as gerações mais novas a história dos primeiros moradores e fundadores da Nação Africana Pretinha do Congo e ensinam-lhes como viver e preservar os valores e rituais culturais desta Nação63:

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O grupo de apresentações culturais desta comunidade divulga os valores da Nação Africana por todo o Brasil.

Fotografia 08: Sede da Nação Africana Pretinha do Congo da Comunidade Pretinha do Congo, Goiana, Pernambuco.

Fonte: Trabalho de Campo, 2008.

Como mostram as Fotografias 09 e 10 na página seguinte, as casas onde moram as famílias negras de trabalhadores canavieiros se espalham entre a BR, à beira do o rio Goiana e as “bocas de rua” dessa parte da cidade. A disposição das moradias mostra o surgimento de um acampamento (Fotografia 09) constituído pelas gerações mais novas da comunidade que foram construindo as suas próprias famílias e ficando próximas do território da Nação Africana Pretinha do Congo, onde famílias de trabalhadores canavieiros sem terra e sem condições de alugar uma moradia na cidade se uniram esta ocupação.

A cana cultivada sem exceção em todo o relevo, desde as nascentes e beiras dos rios e riachos, como nas encostas, declives e topos de difícil acesso para os trabalhadores no corte manual. O monocultivo de cana substitui tudo o que se interpõe à sua expansão nas encostas de morros e tabuleiros e nas várzeas e terraços fluviais. A cana, portanto, monopoliza a ocupação do solo e destrói a cobertura florestal, inclusive, de encostas com alta declividade, apesar das restrições destas áreas ao uso agrícola, especialmente à culturas temporárias.

Fotografia 09: Disposição das moradias das famílias acampadas da comunidade quilombola Pretinha do Congo, acompanhando o trajeto da BR 101 no estado de Pernambuco, na altura da cidade de Goiana, Pernambuco. Fonte: Trabalho de campo, 2008.

Fotografia 10: Disposição das moradias mais antigas da Comunidade Pretinha do Congo, acompanhando o curso do Rio Goiana, Goiana, Pernambuco.

Fonte: Trabalho de Campo, 2008.

A Comunidade Pretinha do Congo está confinada numa pequena faixa, como observamos nas Fotografias 09 e 10, entre o leito do rio Goiana, a BR e os extensos canaviais irrigados da Usina Maravilhas do grupo CRUANGI. Trata-se de uma comunidade que congrega tanto descendentes de escravos negros como de camponeses expropriados e trabalhadores rurais. Todos eles, economicamente dependem do corte da cana para sobreviver. Durante os nossos trabalhos de campo e

visitas à comunidade, constatamos que no período da entressafra os trabalhadores também criam mecanismos de sobrevivência na informalidade, como a venda caseira de doces, concerto de bicicletas, catação de mariscos e caranguejo nos manguezais próximos e serviços domésticos como diaristas na cidade. As famílias também são

contempladas com a cesta básica do INCRA/CONAB64, porém a demora na entrega e

o alto número de membros das famílias da comunidade, fazem desse auxílio uma reclamação constante.

A ocupação da terra e a constituição do acampamento de trabalhadores na Comunidade Pretinha do Congo difere, por exemplo, dos territórios de luta criados pelo BTG e do MP na Zona da Cana da Paraíba e que apresentados anteriormente. Durante as nossas entrevistas com os membros mais antigos da Comunidade ficou claro que este grupo também deseja ter a garantia de ter um pedaço de terra onde morar e trabalhar. Todavia, isso não constitui uma bandeira de luta, não conduz a uma ação de conscientização política das famílias da Comunidade para lutar organizadamente por isso. Apenas a permanência na terra, nas margens dos canaviais, se apresenta como seu ato de resistência secular à marginalidade que a comunidade trabalhadora negra foi e continua sendo submetida no Brasil pelos valores da colonização branca. Permanecer, criar as suas famílias, construir um espaço de fortes raízes africanas local de tributo a sua cultura, agregar cada vez mais filhos, netos, sobrinhos além de outras famílias despossuídas do campo e da cidade é a resposta silenciosa, porém presente, dada pela comunidade. Nas entrevistas que realizamos nesta comunidade ficou claro que nunca formaram parte, enquanto grupo, de movimentos sociais envolvidos direta ou indiretamente na luta pela terra e pela Reforma Agrária. Entretanto, dois membros da comunidade já tiveram militado no MST local e todos os trabalhadores entrevistados já ouviram falar e conheceram algum dos movimentos de luta por terra que atuam na região.

Durante as nossas visitas ao município de Goiana tivemos a oportunidade de nos encontrar com um dos membros da Comunidade, junto a outros trabalhadores, no corte de cana em áreas de plantio da Usina Maravilhas. Naquele momento, e depois de nos apresentar, a maioria dos trabalhadores se recusou a conversar conosco. Todavia, o membro da Comunidade Pretinha do Congo, que nos reconheceu, nos

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Empresa estatal pública vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. A Companhia Nacional de Abastecimento tem em seu discurso a missão de contribuir para a regularidade do abastecimento e garantia de renda ao produtor rural, participando da formulação e execução das políticas agrícola e de abastecimento do meio rural e urbano. Também tem como responsabilidade preservar os mecanismos dirigidos pelo mercado. Maiores informações no site: http://www.conab.gov.br/conabweb/index.php?PAG=1. Acesso em 16/04/2010.

ausentou para dar continuidade ao seu trabalho no “campo”. Já, fora do eito, durante o intervalo para o almoço, o cortador de cana de Pretinha do Congo decidiu colaborar com o nosso trabalho com a condição de manter o seu anonimato, tanto na hora de tornar pública a pesquisa como, fundamentalmente, diante do fiscal. O depoimento a seguir relata as condições do trabalho as que se submetem estes trabalhadores durante a safra:

(...) o trabalho é realizado por quadra, lote ou tarefa, algo assim. Quando o cortador termina, já pode ir embora. Mas só ganha entre 1 e 2 salários mínimos. A quantidade que é determinada para aquele corte diário é de 2.400 quilos, mas no final do mês você só ganha R$ 450,00 e termina às 12:00 horas. Então estamos livres para ir embora. Somos registrados com carteira. Mas existem aqueles que trabalham por produção. Seguem trabalhando até extrapolar seus limites físicos. Estes ganham até mais que dois salários mínimos. Essa é a usina Maravilha, mas existem outras como: São João, Dois Rios e Timbaúba.

(Trabalhador da Usina Maravilhas e membro da Comunidade Pretinha do Congo, Goiana, Pernambuco, 2009).

A Fotografia 11 registra a labuta no eito do cortador de cana no campo de plantio da Usina Maravilhas:

Fotografia 11: Corte de cana manual na Usina Maravilhas, Goiana,

Pernambuco.

Fonte: Trabalho de Campo, 2009.

Ainda que os trabalhadores sejam registrados pela usina durante o período da safra, a temporalidade dos contratos dá à usina a liberdade para demitir seus funcionários sem penalidade do Ministério do Trabalho, principalmente no final da

colheita; a liberdade para pagar apenas um salário mínimo quando o trabalhador não cortar acima de 2.400 quilos de cana, sem ser penalizada quando o trabalhador adoece por exaustão, induzido pela própria usina a cortar mais cana, e finalmente; liberdade para fazer contratos em regime de trabalho temporário e a tempo parcial, até às 12:00 horas com o salário de R$ 450,00, como recolhe o depoimento, num ambiente de trabalho absolutamente insalubre. As usinas também têm a liberdade de não garantir ao trabalhador um plano de saúde condizente com o esforço físico e o desgaste da saúde e do corpo ao qual está submetido durante anos “de serviços à empresa”, plano que cobra a sua necessidade e da sua família.

No município Goiano, em função dessas liberdades legais, entre outras determinações, o setor empresarial da cana-de-açúcar é predominante e próspero. Todavia, as comunidades de trabalhadores canavieiros como Pretinha do Congo, longe de atingir as condições mínimas de vida digna, nem usufruem do reconhecimento do Estado na figura do INCRA, pois este instituto não reconhece o acampamento como um desdobramento da demanda por terra de trabalho no estado, por não estar vinculado a nenhuma forma de organização social de luta por terra e Reforma Agrária reconhecida e por ocupar uma área entre a periferia da cidade e o canavial.

Ante tais apreciações, consideramos que estamos diante de uma das formas como a fragmentação do trabalho, da classe trabalhadora no campo, especificamente na Zona da Cana, se manifesta. Contudo, a ausência da luta no terreno do embate político coloca esses trabalhadores longe da superação dos males que os oprimem, marginalizam e exploram. A espiritualidade e o enraizamento com o espaço que ocupam é, sem dúvida, uma ferramenta importante para a permanência do grupo no local, todavia, desde o nosso ponto de vista, não cria resistência. Além do mais, fragiliza o movimento de luta quando fragmenta o poder que os embates dos trabalhadores, seja qual for a forma que assumam – se movimentos sociais, se sindicatos, se partidos - na sua confluência atingem, negando-os, os efeitos perversos de uma sociedade guiada pela lógica do trabalho abstrato alienado, seja no canavial seja fora dele.

A força do agronegócio se sustenta na sua relação com o trabalho, dominando e controlando este por meio do assalariamento no campo. Dominação mediada e “legalizada” pelo Estado. Lutar por terra significa hoje, na Zona da Cana, lutar contra o assalariamento, a monocultura, o agronegócio, modelo de desenvolvimento econômico que, sobre diretrizes neoliberais, impõem a qualquer custo, seja social - com as vidas

alienação dos trabalhadores no fetichismo de uma sociedade de açúcar e etanol. Entretanto, territórios de trabalhadores rurais e camponeses coordenados pelo MST na região são expressões que tomam o movimento de luta pela terra no seu embate contra a lógica capitalista no campo.

3.1.3. Nas áreas de Reforma Agrária: do acampamento ao assentamento do MST