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EXPERIÊNCIAS DE “CUIDADO”: CIRCULAÇÃO E DEVIR “Vais encontrar o mundo, disse-me o meu pai, à

2.1 CLARISSA: A VIDA COMO BEST-SELLER

“A minha vida dá um best-seller”, ela me disse na primeira vez que eu fui até a casa dela, na época, localizada no bairro Brejaru na

Palhoça, Santa Catarina. Clarissa é uma jovem de 27 anos, de sorriso fácil e muito articulada para falar. A diretora do abrigo Nossa Senhora do Carmo, quando me passou os contatos dos “egressos”, sabia praticamente de cor o paradeiro da Clarissa, uma jovem que para ela seria batalhadora e decidida. E logo na nossa primeira conversa, a descrição dada pela diretora parecia feita sob medida: a Clar issa é uma empreendedora e desde cedo aprendeu a fazer as coisas do seu jeito. Quando precisou trocar de emprego, logo após a separação do seu atual companheiro, para dedicar mais tempo ao cuidado da filha, logo colocou suas condições para a dona da padaria: “Infelizmente, eu não posso trabalhar por menos de mil reais. Se eu tiver uma renda abaixo de mil reais eu não consigo sobreviver, porque é difícil. Não é só questão de pagar aluguel, tu paga a água, tu paga a luz. Tu tem um nível de vida, é muito fácil tu subir, tu voltar é difícil”. Diante dos argumentos, a dona da padaria titubeia: “não, mas primeiro tenho que ver teu serviço...”. Mas a Clarissa se mantém firme: “Infelizmente, eu não consigo viver com menos de mil reais”. A dona da padaria bateu o martelo: “Então tá, podes começar na segunda-feira”.

No nosso primeiro encontro, ela estava morando com a filha numa casa de madeira, que à primeira vista me pareceu abandonada. As portas e janelas tinham frestas enormes e pela ação do tempo já não fechavam em sua totalidade. Havia muitos buracos nas paredes e também no assoalho, através dos quais era possível enxergar o chão de terra embaixo da casa. Mas ela nem sempre viveu assim. Como ela mesma fez questão de dizer, já esteve “bem de vida”, tinha casa própria e mais de um carro na garagem e foi dona de bar e lanchonete, mas o ex- marido tinha colocado tudo fora, em festa. Mãe e filha moravam de frente para o terreno onde ficava anteriormente a sua casa de alvenaria. Desta, na ocasião, só restavam alguns escombros e da história de como tudo se perdeu, parece ter ficado a memória e a certeza de que era preciso recomeçar sozinha. A vontade de um recomeço foi o que marcou os relatos da Clarissa desde o nosso primeiro encontro. No entanto, no decorrer da pesquisa, esse foi sendo reconfigurado em função de algunscontecimentos importantes na vida da jovem: a retomada da vida em comum com seu ex-companheiro e consequentemente uma nova chance para uma convivência familiar (incluindo a aproximação da jovem do seu segundo filho, que durante o período da separação havia preferido permanecer morando com o pai, e também a reaproximação dos seus dois filhos) e a gestação não programada do seu terceiro filho. Em função dessas mudanças, mãe e filha deixaram o Brejaru e foram morar em uma casa ampla de alvenaria, talvez aos moldes do que a

Clar issa havia desejado, no Alto Ar iriú (outro bairro da Palhoça). Firme em suas opiniões e posições, é como se o tempo a tivesse feito olhar de maneira reflexiva e distanciada o seu próprio percurso. Desde criança aprendeu a assumir os riscos em nome de um modo de vida que fosse alternativo àquele exper imentado no ambiente familiar. Tanto que a sua experiência de acolhimento não foi uma intervenção externa sobre a sua trajetória, foi uma escolha sua. “Eu saí de casa por vontade própria. Eu fui para a rua porque eu quis, porque eu não quis mais viver dentro de casa com a minha mãe”. Ela desejava se desvencilhar dos maus-tratos e da exploração da mãe, a qual fazia ela e a irmã pedirem esmola para sustentar os caprichos dela. E depois de cinco anos nessa condição, ela decidiu, aos 13 anos, que a saída de casa seria a chance de inventar novas possibilidades de vida. A prática de esmolar que havia surgido para a Clarissa e a irmã como uma brincadeira de criança, de “guri pequeno travesso”, como lembra a jovem, cujo dinheiro permitia que elas comprassem salgadinhos na escola, acabou virando obrigação diár ia: se as crianças podiam pedir esmola para elas, a mãe entendeu que essa prática seria, daquele dia em diante, para o seu benefício. “Na verdade, assim, se chegasse em casa e não tivesse, a gente apanhava. Se tornou tão obrigação que ela não tinha mais obrigação de colocar comida dentro de casa”, lembra Clar issa.

A prática de esmolar se tornou uma forma de controle, com todos os rigores disciplinares e cuja máxima seria extrair desses corpos o máximo de produtividade. Ao contrário do que se poderia imaginar ou mesmo buscar uma justificativa para tal forma de exploração, a mãe era funcionária da prefeitura municipal de Florianópolis. Ela “[...] nunca ganhou mal, sempre se especializou nos setores em que ela trabalhou, ela trabalhou na Biblioteca Pública, no Posto de Saúde, na creche São Sepé, então, assim, em vários lugares conhecidíssimos, com influência”. A esmola desencadeou uma série de outras obrigações diárias que, quando não cumpridas, a mãe respondia com surra59. Depois que o padrasto deixou a casa – padrasto esse que a Clarissa reconhece como pai –, a relação da mãe com as filhas se tornou ainda mais complicada. “Daí foi sempre uma situação pior que a outra, um dia mais estressante que o outro, porque todo dia tinha alguma coisa. Se não pedisse esmola, apanhava; se não cozinhasse, se não limpasse. Com oito anos a gente

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Opto, nesse momento, como ao longo de todo o trabalho, em não usar a categoria violência, uma vez que essa não emerge enquanto conceito dos relatos das jovens e, portanto, ao tomá-la estaria incorrendo numa espécie de tradução dos termos delas por termos descritivo-analíticos da pesquisadora.

tinha que lavar a nossa roupa. Lavar não era tu lavar uma calcinha debaixo do chuveiro. Era lavar roupa pesada mesmo. Até que depois, com 10, 11 anos, nós já tínhamos a obrigação de lavar a roupa dela. Então, assim, a história é bem sofrida, bem complicada mesmo”.

No caso da Clarissa, num olhar mais apressado, a fuga de casa poderia parecer uma forma de não enfrentamento da situação de maus- tratos, mas pelo contrário, esta se torna a própria motivação para que a jovem percebesse que ali estava a oportunidade de assumir a condução da sua própria vida, de se tornar agente no processo de criação de novos modos de existência, como ela mesma relata:

Eu cheguei atrasada em casa, além de eu ganhar uma surra, de eu ficar de castigo, ela [a mãe] simplesmente disse que eu só sairia de casa para ir pedir esmola. Então, aquilo ali ficou batendo na minha cabeça: por que eu posso sair de casa para ir pedir esmola para ela, eu posso sair de casa para pedir favor para ela, por que eu não posso mais conversar com um amigo? Por que eu não posso mais namorar? Para dar dinheiro para ela, podia; para fazer outra coisa, não; sendo que nem estudar nós estudávamos mais. Então, eu fugi de casa, mas não fugi nesse dia. Eu levei uma semana para fugir, para tomar coragem e fugir de casa.

Depois de ficar na casa do então namorado, de buscar abrigo na casa de uma amiga, ela começou a vagar pelas ruas e conheceu o Betinho, um homem que era usuário de drogas, soropositivo e tinha uma filha com a idade da Clar issa. Ele morava numa “casinha, um barraquinho de favela, bem pequeninho de pau a pique que mal conseguia abrigar pai e filha”. E foi pela mediação do Betinho, desse homem fora de qualquer padrão esperado pela sociedade, que ela ouviu falar pela primeira vez em Conselho Tutelar. “De madrugada, eu acordei e escutei uma conversa dele com outras pessoas usando droga de que o certo para mim seria procurar meus direitos, porque aquilo ali não era normal, que se o Betinho me deixasse morando ali, o Conselho Tutelar podia vir me buscar...e daí, quando foi de manhã, eu levantei e fui até o Conselho Tutelar”.

Ela não sabia ao certo onde ficava o tal Conselho Tutelar60, mas

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O Conselho Tutelar é uma instituição criada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) com o objetivo de zelar pelo cumprimento dos direitos das crianças e dos adolescentes. Tendo em vista tal função, esta instituição age a

mesmo assim foi atrás daquilo que lhe parecia ser a única possibilidade de enfrentar toda aquela situação, sobretudo a mãe. Foi perguntando e se informando até que chegou ao lugar que procurava. Estava ali naquele lugar, o qual poderia ser entendido como sendo fundado no simples “artifício de redefinir convenções” (a partir do encaminhamento de crianças e adolescentes para os serviços de acolhimento em nome da sua proteção), a possibilidade de seguir um curso particular da ação em uma situação que admite cursos alternativos (WAGNER, 2010). A partir daquele momento, o Conselho Tutelar que, a princípio, funcionaria como um dispositivo que produz sujeitos (sujeitos sob medida protetiva, sujeitos em situação de vulnerabilidade, sujeitos em situação de risco, etc) tem seu uso subvertido pela jovem, na medida em que ela faz deste uma “linha de fuga”, no sentido de efetivar novas possibilidades de vida e de se tornar agente do seu próprio processo de institucionalização.

Diante do conselheiro tutelar, ela tinha apenas um pedido a fazer : “Ó, Marcelo, é assim, eu não quero voltar para casa, eu não vou voltar para casa!”. O conselheiro sabia o que precisava ser feito, mas resistiu em fazer por vias que não lhe são as habituais, ou mais esperadas e portanto racionais: “Não, mas a gente não pode fazer assim, porque tem que ter um acompanhamento... A gente tem que chamar tua mãe, porque a gente tem que conversar, porque não é assim, a gente tem que tentar uma reconciliação”, lembra a Clar issa. A jovem já havia experimentado a inef iciência da reconciliação quando tinha oito anos de idade e fugiu de casa com a irmã, por conta da mesma situação, e acabaram indo parar no SOS Criança. Onde ele tentava enxergar reconciliação, ela já não via nada além de ruptura. E, nesse ponto, é possível observar uma tentativa de chegar a uma espécie de consenso acerca da proteção, o qual, no entanto, não seria possível, pois quanto mais o conselheiro acionava a convenção (é tarefa do conselho proteger os direitos da criança e do adolescente, mas isso deve ser feito de maneira a preservar o máximo possível o princípio da convivência familiar e comunitária) mais ele acabava por contrainventar o seu oposto: a dimensão da invenção (era a própria jovem que desejava ser acolhida e que sinalizava os termos da intervenção). Havia um curso esperado da ação, mas a Clarissa desejava fazer do seu jeito. Além disso, para o conselheiro, a concepção de proteção passava pela garantia dos direitos da Clarissa à convivência familiar e pelo trabalho de restabelecimento dos vínculos, ao passo que,

partir de denúncias de violação dos direitos previstos no ECA, mediante a atuação dos conselheiros, os quais são legalmente encarregados de assegurar tais direitos (RIBEIRO, 2009, p.94).

para a jovem, a proteção, naquele contexto, signif icava a possibilidade de romper o mais rápido possível com a situação de exploração materna. Em termos de “proteção”, a jovem e o conselheiro estavam produzindo o fenômeno da “equivocação não controlada”, ou mais exatamente do “desconhecimento da significação alternativa”, o qual acaba por alimentar a busca improdutiva de uma posição consensual entre a perspectiva do Estado (em termos de políticas públicas) e dos sujeitos (com suas demandas) (KELLY, 2010).

Após três dias, a jovem retornou ao Conselho Tutelar e foi atendida por uma conselheira: “Aí, eu já tava bem pior, aí eu não tinha tomado banho nesses três dias, eu não tinha me alimentado direito, eu não sabia o que era dormir direito”. Mas, mesmo assim a Clarissa mantinha a mesma posição: “O que eu disse, eu vou voltar a dizer : ou vocês me arrumam um orfanato61 ou eu vou continuar nas ruas, para casa eu não volto”. A conselheira providenciou o encaminhamento da jovem para um albergue, como era da vontade dela, mas fez isso ainda tendo em vista a possibilidade de uma reconciliação ou de “formar essa união familiar de novo”. E tendo o convencional (intervenção do Conselho Tutelar) como base para sua invenção, a Clarissa circulou por muitos lares, antes de chegar na casa-lar Nossa Senhora do Carmo. Teve problemas de adaptação, pois aquilo que ela entendia por proteção e que a fez sair de casa, fugir da tutela da mãe, não coincidia com a proposta de cuidado que orientava alguns dos lares por onde passou. “Coisa assim, uns tratamentos que não era cabível a umas crianças que precisavam de carinho, de atenção, de apoio, de conversa, sabe? Então, eu achava aquele cara [responsável por uma das instituições onde a jovem foi acolhida] muito estranho, as meninas passavam e ele ficava olhando. E, realmente, até na época, aconteceu que o lar foi fechado porque foi descoberto que ele saía com meninas da casa, que ele abusava de meninas na casa”. Nisso, a Clarissa ligou para a assistente social que, na época, cuidava do processo e pediu para trocar de casa, pois ela queria ir para um lugar onde fosse respeitada, onde pudesse ser “bem acolhida” e “bem aceita”. A conselheira não sabia mais o que fazer com a Clarissa, talvez porque ela não estivesse acostumada com uma jovem que tinha optado pelo acolhimento institucional e que iria cobrar para ser vista não como mais um caso de direitos violados, mas como sujeito com demandas específicas. “Não, mas como é que tu não vais ficar na casa?” – impacientou-se a conselheira, “Meu deus! Eu arrumo

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Categoria nativa usada naquela época para fazer referência aos serviços de acolhimento.

uma casa para ti, tu não fica; eu arrumo outra para ti, tu não fica. O que tu queres, afinal de contas?”. A pergunta da conselheira a princípio poderia remeter apenas à inconstância própria da adolescência, em termos das dúvidas, insatisfações, etc. Mas na verdade, ela é reveladora de uma falta de consenso ou tensão entre o ponto de vista dos jovens e o daqueles responsáveis pela concepção e execução das políticas públicas. A Clar issa sabia o que ela queria, mas talvez a sua demanda não correspondesse às expectativas e ao modo de ação próprio da profissional naquele contexto.

Então por mais que a conselheira tenha procurado fazer com que a jovem agisse segundo as expectativas coletivas, segundo uma imagem compartilhada de moral e do social, ela não foi capaz de impedir a invenção; pelo contrário, o modo de ação da Clarissa revelava uma dimensão que extrapolava as categorias postas pelo sistema de proteção: aquelas próprias de um sujeito que se constrói na falta e que incorpora a intervenção do Estado. Ao revelar suas expectativas em relação ao cuidado no âmbito dos serviços de acolhimento e confrontar estas com a da conselheira, a Clarissa estava acionando e tornando visível o seu potencial de agência e, portanto, agindo de maneira a desmarcar aquilo que era tomado como convenção. Mas para que esse potencial de agência da jovem fosse visibilizado e mesmo para que ela conseguisse levar adiante a sua invenção e se diferenciar, ela precisava estar em relação com a convenção (nesse caso, a dimensão revelada pelo sistema de proteção), uma vez que, como bem lembra Wagner (2010, p.165), o sujeito pode de fato “[...] „contrafazer‟ um mundo convencional dele próprio, mas o convencional será sempre um fator”.

Até que a conselheira decidisse sobre o encaminhamento da Clar issa, ela ficou temporariamente na Casa de Passagem, que ela chama de “albergue” e onde a irmã dela já havia permanecido por três anos. Foi no albergue que a Clarissa conheceu a Virgínia, uma outra “egressa” da Casa-Lar Nossa Senhora do Carmo. Já na minha primeira visita à Clarissa, ela me falou sobre a jovem, sobretudo acerca da possibilidade de encontrá-la, uma vez que ela também estava morando na Palhoça, no bairro Frei Damião. “Tem uma outra menina que morou no “orfanato” comigo e que também está morando por aqui. Eu encontrei ela umas duas vezes ali na padaria”. Logo que ela me falou sobre a jovem, eu me interessei em encontrá-la e quem sabe reunir as duas, em um mesmo encontro, para que pudessem falar sobre suas experiências de cuidado.