• Nenhum resultado encontrado

PROBLEMATI ZAÇÃO DA CAT EGORI A EGRESSO: SUJEITOS EM DEVIR

CIRCULAÇÃO E DEVIR 121 2.1 CLARISSA: A VIDA COMO BEST-SELLER

1.5 PROBLEMATI ZAÇÃO DA CAT EGORI A EGRESSO: SUJEITOS EM DEVIR

A necessidade de problematizar a categoria egresso aparece desde a elaboração do projeto de pesquisa. Num primeiro momento, em diálogo com Fonseca, Allebrandt e Ahlert (2009, p.45), já era possível pensar o quanto essa categoria pode ser imprecisa, visto que faz referência tanto “ao nenê adotado por um casal de classe média, à criança que retorna à família na favela, ao “menino de rua” que passou três dias no abrigo e ao jovem que cresceu e completou dezoito anos dentro da rede institucional”. No entanto, à medida que comecei a rastrear os jovens “egressos” de serviços de acolhimento, tal categoria me pareceu ainda mais vaga, não só pela heterogeneidade que abrangia, mas principalmente porque, conforme os jovens foram sendo encontrados, pude perceber que não havia um grupo de egressos (como as políticas de proteção parecem conceber) e que esses sujeitos eram atravessados por inúmeras outras experiências e relações as quais, na maior ia das vezes, não estavam relacionadas à experiência de acolhimento.

O tensionamento da categoria egresso veio acompanhado de uma mudança na ordem das perguntas postas em relação a esses jovens. Quem são? Onde estão? Por onde andam? O que fazem? E quais são as políticas voltadas a esses jovens? Essas são perguntas comumente suscitadas em se tratando de jovens em processo de desinstitucionalização; elas despertam o interesse de todos (inclusive os meus, como mencionei na abertura do capítulo), sobretudo daqueles envolvidos com a criação e execução de políticas de proteção à infância e à adolescência. Conforme pesquisa realizada por Bernal (2004) junto aos prontuários de crianças e adolescentes institucionalizados pelo Serviço Social de Menores no período de 1938-1960, é possível ter pistas de que, desde a década de 40, o problema da “integração dos jovens na sociedade após internamento” gerava debates. Nos

prontuários, prevalecia a saída aos 18 anos e esse momento marcava a passagem da categoria “interno” à de “egresso”. “Fecham-se os prontuários. Agora é vida de egresso” – esse é o título do último capítulo do livro de Bernal (2004), o qual nos revela o quanto a categoria egresso esteve e permanece atrelada ao encerramento de um conjunto de procedimentos formais por parte das instituições. “Pensar em alguns desfechos para aqueles jovens”, propõe-se a pesquisadora, diante do “ponto crítico na vida” que representaria o término do período de institucionalização.

Acontece que esse “desfecho”, ou ainda as respostas para as perguntas acima citadas, ajudaria a avaliar e repensar as políticas de proteção e os serviços de acolhimento institucional. Tanto é que, como observa Cruz (2006, p.17), a ausência de estudos acerca da situação dos egressos pode ser um sinal da concentração de esforços das instituições sobre o atendimento e o consequente desprezo da “análise e produção de indicadores que poderiam subsidiar os gestores das políticas públicas, bem como qualificar os serviços prestados pelas instituições”. De fato a qualif icação dos serviços é de grande importância e praticamente todas as pesquisas sobre a temática se propõem a dar conta dessas questões, que certamente são relevantes para a construção do campo. No entanto, tais perguntas nos fazem, de certa forma, perseguir um “grupo social” que seria produto ou resultado de uma política institucional, dos sucessos e insucessos dessa. E nesse sentido, seria pertinente indagar, em diálogo com Wagner (1974), se em termos desses jovens se poderia falar em grupo. Ou se, por trás da categoria “egressos”, estaria a suposição da existência de um grupo social, com contornos e forma definidos em função de semelhanças em suas trajetórias, especialmente daquelas geradas pela intervenção do Estado. Pensá-los como grupo não seria uma impossibilidade, mas resta saber o que deixamos de ver nessas experiências quando as circunscrevemos a partir de uma “forma de organização e de uma coerência” que não correspondem à maneira pela qual esses jovens parecem se movimentar.

E quando pensamos em grupos, estamos fazendo isso sob quais termos? Pois afinal “temos inúmeras maneiras de definir grupos” e igualmente muitas “definições para grupos”, as quais vão desde seus aspectos físicos, de forma, até sua máxima fluidez, como as redes (WAGNER, 1974). O próprio desenvolvimento da Antropologia Social sempre esteve marcado, ainda que por correntes teóricas distintas, pela necessidade de localizar e descrever as forças que mantêm os seres humanos juntos, sua “grupidade”, como bem pontua Wagner (1974). E tal preocupação veio acompanhada de uma espécie de “jogo de

fingimento heurístico”, conforme observou o autor. Tratava-se de fazer dos nossos problemas os problemas dos outros. Ou seja, se, em nossa cultura, “fundar, integrar, tornar-se membro e participar de grupos é uma questão intencional e importante”, de alguma maneira “esse modo nativo de fazer a sociedade” poderia, por extensão, ser explicado e descrito a partir dessa mesma lógica. É nesse ponto que reside a insuficiência de uma definição padrão, centrada nos grupos, para dar conta daquelas socialidades que nos são desconhecidas (WAGNER, 1974).

Ao trazer essa reflexão, de cunho mais epistemológico, empreendida por Wagner acerca da existência de grupos sociais, para analisar as experiências das jovens da presente pesquisa, reconheço que não se trata de um mesmo contexto e tampouco da mesma preocupação. Talvez possa ser interessante reter algo desta discussão a fim de problematizar a maneira como os sujeitos são tomados pelas políticas e mesmo pelo campo da proteção à infância e à adolescência. Tenho pistas para pensar que esse paradigma da “grupidade” está muito presente nas práticas e rotinas dos serviços de acolhimento, como será possível observar no Capítulo 2 em função dos relatos das próprias jovens. E talvez seja por isso que os jovens, quando têm a oportunidade de ir para uma república, acabem por sentir o peso do que seria uma experiência mais individualizada, focada na autonomia e no projeto do indivíduo. Dessa forma, em se tratando das jovens dessa pesquisa, parece-me mais produtivo, ao contrário de recair na facilidade da suposição pr évia da existência de grupos, procurar compreender as sutilezas das suas dinâmicas de socialidade. E essa socialidade, pelo que pude observar, não necessariamente resulta de um agrupamento, mas sim da própria maneira como esses jovens lidam com ela, pela maneira como constroem seus modos de vida, através de esforços criativos.

Dito isto, é importante apresentar uma outra questão de ordem aparentemente mais “operacional”, sobre como tratar esses jovens na pesquisa e sobretudo no texto etnográfico. Inicialmente parecia que as aspas resolveriam temporariamente esse impasse, como forma de sinalizar para o leitor e para mim mesma que eu estava falando sobre os egressos, mas que isso sinalizava uma incongruência teórico- metodológica. Como denominá-los? Sujeitos? Jovens? Atores? Agentes? Cada uma dessas formas remete a uma diferente perspectiva teórico- metodológica e todas, em alguma medida, incorrem em generalizações acerca de experiências e subjetividades muito específicas. É interessante pensar como propostas tão ousadas acabam, em termos textuais, retomando as nomenclaturas e categorias combatidas em termos

teóricos. Não se pode esquecer de que o texto é o ponto alto da pesquisa cujo empreendimento depende, na maior ia dos casos, dos interesses e das intenções de um sujeito: o pesquisador. E nesse sentido, as palavras de Favret-Saada parecem esclarecedoras ao lembrar que não existem posições neutras no campo de poder dos relacionamentos discursivos: “o evento da interlocução sempre destina ao etnógrafo uma posição específica numa teia de relações intersubjetivas” (FAVRET-SAADA, 1977, apud CLIFFORD, 2008, p.42).

Então, percebi que cada vez que acionava a categoria egresso para falar sobre os “egressos” eu estava permanentemente presentificando uma problemática que seria o próprio cerne da pesquisa. Ao mesmo tempo, a palavra egresso funcionava como uma chave explicativa, a quem perguntasse sobre o que eu estava pesquisando: eu diria “egressos” de serviços de acolhimento e parecia que tudo estava esclarecido. Mas somente parecia, pois – excetuando os profissionais que trabalham com políticas de proteção e serviços de acolhimento, que lidam com essas questões cotidianamente – tal chave acionava, para as demais pessoas, uma série de mal-entendidos, como, por exemplo, associar os serviços de acolhimento e os jovens que cumprem medida socioeducativa. A própria ideia de serviços de acolhimento parecia mais confusa do que o termo abrigo e, mesmo em se tratando de jovens que deixaram serviços como esses, o comum seria associar a trajetórias de insucessos e de dificuldades em firmarem sua independência.

Uma outra tendência que também parece acompanhar a categoria egresso pôde ser observada por mim, não só entre os pesquisadores franceses, mas também entre os brasileiros: a preocupação em relação àqueles que experienciaram longos períodos de acolhimento institucional, sobretudo quanto à inserção social depois da maioridade. Os pesquisadores observam que, se para os jovens que não tiveram tal experiência e mesmo aqueles em condições mais favoráveis, a inserção social e a conquista da autonomia, com a chegada da maioridade, já podem ser complicadas, essas dificuldades seriam potencializadas no caso dos jovens que passaram pelos serviços de acolhimento e que, por vezes, não podem contar com a ajuda de familiares. E sobre esse ponto, é possível pensar no prolongamento sistemático da tutela, que se estende da família ao Estado, como lugares incontornáveis na inserção desses jovens:

[…] temos assistido a um crescente alargamento do período de dependência, e a guarda é atribuída primordialmente à família nuclear. Quando esse

esquema falha, o problema deve ser equacionado e decidido preferencialmente pelo Estado, mas com participação ativa da sociedade civil. Contudo, mesmo considerando um número expressivo de experiências bem-sucedidas, o destino dessas crianças e jovens sem formação ou convívio regular com as chamadas instituições socializadoras é qualificado como incerto ou, na linguagem do ECA, como “estando em risco”. Parece existir um entrave, de natureza mais profunda na nossa cultura, que torna essa população deslocada e com futuro fadado ao insucesso (GREGORI, 2000, p.17-18).

Quando iniciei o trabalho de campo, de certa forma buscava encontrar a especificidade de ser egresso, a qual seria produzida pelas lacunas deixadas pelas políticas públicas ou mesmo pela ausência dessas. Nesse meu percurso, comecei a observar que, mesmo diante de tal ausência, era recorrente o interesse sobre as experiências pós- acolhimento desses jovens (mas afinal por onde andam?), como se estes, sobretudo sob o ponto de vista dos direitos, fossem tomados como uma continuidade do trabalho intensivo dos dispositivos que conformam a proteção à infância e à adolescência. Ou seja, mesmo sem políticas voltadas aos egressos, a curiosidade sobre suas trajetórias permanecia pairando sobre os profissionais dos serviços de acolhimento, os representantes do governo e também os pesquisadores: havia se criado uma entidade (os egressos) que deveria permanecer ecoando um investimento feito, em termos da proteção, formação e socialização desses sujeitos (incorporação de princípios morais, de hábitos, de saberes e fazeres). Isso porque as perguntas sobre os egressos – por onde andam? o que fazem? (suas relações com o trabalho, a família e a sociedade) – já colocavam previamente um limitador numa diversidade que extrapola a condição de egresso associada ao processo de institucionalização e aos seus desdobramentos. E tal diversidade, como pretendo mostrar no Capítulo 2, parece ter muito a ver com a mudança sistemática e recorrente que marca a vida desses jovens, na maneira como lidam com o tempo e, sobretudo, na maneira pela qual desmarcam as convenções.

Aos poucos, no entanto, fui percebendo que o problema da tese não estava nessa especificidade de ser egresso, pois esta não existia ou pelo menos não correspondia aos modos de vida desses jovens. O problema estava justamente na ausência dessa especificidade,

principalmente no que ela nos informa sobre esses sujeitos, e as políticas públicas e consequentemente as relações que se estabelecem entre esses. Então, talvez não se trate simplesmente de substituir a categoria egresso por outra, mas essa reflexão serve para não incorrer no risco de enclausurar previamente esses modos de vida – que pretendo descrever e analisar – que se propõem, creio eu, a dizer muito mais sobre esses jovens enquanto devir. Por isso, talvez seja mais produtivo repensar as questões que nos fazemos quando queremos saber sobre as experiências desses jovens, de maneira a refletir não sobre aquilo em que eles se tornaram, mas sobre seu devir, ou jovens em devir. E o fato de serem em devir poderia num primeiro momento sugerir um tipo de especificidade em relação aos outros jovens. Afinal, não seriam todos os jovens em devir? Não seriam todos os sujeitos em devir? O uso do conceito de devir, na expressão jovens em devir, não pretende funcionar como um marcador de diferenças, mas sim o contrário, como expressão que permite desmarcar possíveis especificidades que a categoria egresso possa instaurar.

CAPÍTULO 2

EXPERIÊNCIAS DE “CUIDADO”: CIRCULAÇÃO E DEVIR