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MEMÓRIAS – ANÁLISE TEXTUAL E GENOLÓGICA

Esquema 19 Classes de episódios em MMV e PM

Os episódios de ambos os textos repartem-se entre as três modalidades de forma distinta. Assim, o texto PM é composto, sobretudo, por episódios script e por episódios

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Ressalte-se, no entanto, que os episódios são estruturas complexas que tendem a articular mais do que uma forma de planificação. De facto, se há episódios totalmente homogéneos (estruturados com base ou no script ou num processo de desencadeamento de tensão), outros há em que se articulam as duas formas de planificação; neste caso o episódio é classificado de acordo com a forma de planificação dominante. 0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50

Episódio script Episódio em que há desencadear de tensão simplificada Episódio em que há desencadear de tensão complexa MMV PM

142 em que há desencadear de tensão complexa; por seu turno o texto MMV é constituído predominantemente por episódios em que há desencadeamento de tensão simplificada. Como se verá de seguida, a opção por uma ou por outra classe de episódios poderá indiciar quer a forma como o género e/ou o ato de narrar é percecionado por J. Azenha e por J. Saramago (cf. 1.2.) quer a forma como a atividade de linguagem condiciona a produção textual.

Episódio script

O episódio script não se baseia necessariamente no relato de uma única situação nem numa estrutura narrativa rígida, organizada hierarquicamente; pelo contrário, nele podem ser relatados vários eventos, organizados por encadeamento ou por encaixe, sendo que neles o discurso narrativo se articula frequentemente com o discurso expositivo. Os exemplos abaixo ilustram isso mesmo:

(14) A DATA DO CASAMENTO DOS MEUS FILHOS

[1] O B. casou-se no dia vinte e dois de Abril de mil novecentos e setenta

e oito.

[2] O M. casou-se em Janeiro de mil novecentos e oitenta.

[3] A M. J. casou-se no dia vinte e seis de Setembro de mil novecentos e

noventa e nove.

[4] O L. casou-se no dia cinco de Janeiro de dois mil e cinco. (MMV

[34])

Discurso narrativo [1], [2], [3], [4]

(15) »»» HISTÓRIAS DE RAPAZES «««

[1] No meu tempo a juventude, depois de um dia de trabalho no campo

os rapazes da aldeia sentiam necessidade de se distrair, especialmente no verão, nas noites de luar. Juntavam-se nas tabernas na conversa e por vezes formavam uns grupos de três ou quatro para irem à «rexincha», isto é, iam às propriedades dos vizinhos roubar pêras, figos, uvas etc. e até melões.

E assim se passava o tempo comendo a fruta e a falar das namoradas. Tornava-se um hábito quase normal uma brincadeira, de rapazes os donos dos frutos é que não gostavam assim muito, mas eles já tinham feito o mesmo quando eram novos. (MMV [5])

Discurso narrativo [1]

(16) [1] Não sei como o perceberão as crianças de agora, [2] mas, naquelas épocas remotas, para as infâncias que fomos, o tempo aparecia-nos como feito de uma espécie particular de horas, todas lentas, arrastadas, intermináveis. Tiveram de passar alguns anos para que começássemos a compreender, já sem remédio, que cada uma tinha apenas sessenta minutos, e, mais tarde ainda, teríamos a certeza de que todos estes, sem excepção, acabavam ao fim de sessenta segundos... (PM [16])

Discurso expositivo [1] Discurso narrativo [2]

143 Pertencente a MMV, o exemplo (14) corresponde a um episódio de MMV que consiste na simples disposição cronológica de quatro acontecimentos passados ([1], [2], [3] e [4]), ilustrando de forma paradigmática o grau zero do discurso narrativo. Não há qualquer tipo de processo de desencadeamento de tensão. A conexão entre os quatro eventos faz-se quer por via da manutenção do tema do episódio (sintetizado no título), quer por via da repetição da estrutura sintática e do léxico.

Retirado da mesma obra, o exemplo (15) é também ele um episódio script, embora apresente um certo grau de narratividade, baseada, neste caso, no relato de uma situação passada, caracterizável, em termos aspetuais, como habitual; o carácter habitual da situação narrada é marcado quer pelos tempos verbais (imperfeito e gerúndio), quer pelo valor semântico dos adverbiais e do léxico selecionados (por vezes, passava o tempo, hábito…).

Pertencente ao texto PM, o exemplo (16) surge estruturado com base no relato de um acontecimento passado, por meio do discurso narrativo. Apesar de não se verificar um processo de desencadeamento de tensão propriamente dito, a narração não abdica, no entanto, de uma sequencialidade de tipo narrativo, decorrente do ato de narrar [2], que se traduz na evolução temporal do acontecimento narrado, a partir de uma origem autónoma (naquelas épocas remotas) e apresentando marcos temporais intermédios (tiveram que passar alguns anos, mais tarde ainda).

Episódio em que há desencadear de tensão simplificada

O episódio em que há desencadear de tensão simplificada baseia-se no relato de uma ou de mais situações configuradas a partir de uma estrutura narrativa desacentuada; para além disso, nele o discurso narrativo articula-se frequentemente com o discurso expositivo. O exemplo (17) permite visualizar esse processo:

(17) [1] Manda a verdade que se diga [2] que os meus talentos de caçador ainda estavam por baixo das habilidades do pescador. Pardal caçado por atiradeira minha, houve um, mas com tão pouca convicção o matei e em tão tristes circunstâncias que um dia não resisti a contar, numa crónica de desabafo e arrependimento, o nefando crime. [3] Porém, se sempre me faltou a pontaria para as avezinhas do céu, o mesmo não acontecia com as rãs do Almonda, dizimadas por uma fisga que tinha tanto de certeira quanto de despiedada. [4] Na verdade, a crueldade infantil não tem limites (é essa a razão profunda de

Discurso expositivo [1], [4] Discurso narrativo [2], [3], [5]

144 não os terem também a dos adultos): [5] que mal podiam fazer-

me os inocentes batráquios, ali sentadinhos a apanhar o sol nos limos flutuantes, gozando ao mesmo tempo do calorzinho que vinha de cima e da frescura que vinha de baixo? A pedra, zunindo, alcançava-as em cheio, e as infelizes rãs davam a última cambalhota da sua vida e lá ficavam, de barriga para o ar. Caridoso como o não havia sido o autor daquelas mortes, o rio lavava-as do escasso sangue que tinham vertido, enquanto eu, triunfante, sem consciência da minha estupidez, água abaixo, água acima, procurava novas vítimas. (PM [36])

O exemplo (17) apresenta uma estrutura narrativa, configurada pelo relato de dois eventos passados (o primeiro, constituído pelo segmento [2]; o segundo, pelos segmentos [3] e [5]). Tal estrutura não dispensa, no entanto, a articulação com a ordem do expor: com efeito, o relato é introduzido pelo discurso expositivo em ambos os casos [1] e [4], sendo que, no segundo deles, a ordem do narrar é interrompida para dar lugar a uma reflexão, com intuito argumentativo (iniciada com o marcador discursivo “Na verdade”).

O episódio apresentado no exemplo (17) é configurado com base numa estrutura narrativa desacentuada (Esquema 20).

 

Esquema 20 – Processo de desencadeamento de tensão simplificada em PM [36]