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Vida, verbalização da vida e interpretação da vida verbalizada

MEMÓRIAS – ANÁLISE TEXTUAL E GENOLÓGICA

Esquema 22 Vida, verbalização da vida e interpretação da vida verbalizada

O Esquema 22 pretende dar conta da interação que se estabelece entre a vida consciente, a verbalização da vida e a interpretação da vida verbalizada nos textos memorialísticos. A vida consciente corresponde à vida intelectualizada, a que se acede por via da reflexão e do pensamento consciente; a verbalização da vida diz respeito à transformação da vida (consciente) num mundo virtual criado pela atividade de

Vida (consciente) Verbalização da vida Interpretação da vida verbalizada Ótica do PRODUTOR TEXTUAL Ato psicológico Ato discursivo Ótica do RECETOR TEXTUAL Ato discursivo Ato psicológico

150 linguagem, por parte do produtor textual; a interpretação da vida verbalizada consiste na criação de um segundo mundo virtual, também criado por via da linguagem, com base quer na receção-interpretação do mundo virtual criado pela atividade de linguagem do produtor textual, quer no conhecimento pessoal que se tem sobre o tema em causa (a vida consciente).

Da parte do produtor textual, o processo de verbalização implica a construção e representação de um mundo discursivo, a partir dos conhecimentos armazenados e organizados na memória antes da exposição à ação de linguagem, de acordo com a respetiva experiência de vida e grau de desenvolvimento intelectual. A memória, é, pois, o elemento desencadeador de um ato psicológico, que se traduz num ato discursivo, ao verbalizar, por meio da linguagem, um conteúdo temático específico – neste caso, a vida. No concernente ao recetor textual, o processo faz-se por um movimento inverso: a leitura/interpretação da vida verbalizada tem origem num ato discursivo, que se traduz num ato psicológico (organização, processamento e armazenamento do mundo discursivo recém adquirido na memória).

Relacionada com a função geral de conservação de experiência anterior e com a tomada de consciência do passado como tal, a memória é condição essencial para que haja construção e verbalização do conhecimento (em termos de produção e de receção). Nesse sentido, valerá a pena referir sucintamente as várias etapas que compõem a memorização enquanto processo neurológico. O processo de memorização tende a ser esquematizado tal como se mostra no Esquema 23.

Esquema 23 – Fases do processo de memorização (apud Pais, Cruz & Nunes, 2008)

Receção Captação de estímulos sensoriais Codificação Organização e processamento de informação (em diferentes formatos) Consolidação Armazenamento Recuperação Evocação Recordação

151 O processo de memoriazação é constituído por quatro etapas. Valerá a pena, neste momento, destacar duas delas: a fase de receção e a fase de recuperação. A fase de receção condiciona as fases subsequentes: a forma como se capta um estímulo sensorial condiciona a sua interpretação e, consequentemente, a codificação, o armazenamento e a evocação que daí decorrem. Quer isto dizer que “as memórias não refletem os acontecimentos reais em si próprios […]; as nossas recordações já sofreram modificações, das vezes que nos surgiram na consciência” (Nunes 2008a, 143). De facto, as memórias autobiográficas, correspondem a a representações abstratas (não literais) do passado (Conway 2001). Relativamente à fase de recuperação, esta é entendida como o processo de evocação daquilo que se apreendeu no passado. Daqui se conclui que a memorização (e a sua expressão linguística) é um processo de reconstrução (pessoal e subjetiva) da realidade – não assumindo uma função puramente representativa, mas sendo condição sine qua non para a construção do conhecimento humano – a evocação consciente do material apreendido faz-se verbalmente, por meio da linguagem.

No que diz respeito a esta questão, refira-se ainda a questão dos modelos de memória, pelas implicações que daí decorrem no âmbito do presente trabalho. A memória ora é entendida como memória como um sistema unitário (Craik & Lockart 1972), ora como conjunto de vários sistemas (Atkinson & Schiffrin 1968). De acordo com esta segunda perspetiva, são concebidos três sistemas de memória: a memória sensorial, a memória de curto prazo e a memória de longo prazo. Relativamente à memória de longo prazo, na perspetiva de Squire e dos seus colaboradores, esta pode ainda ser subvidivida em memória implícita ou procedimental (relacionada com habilidades ou cacpacidades motoras, ativação de conhecimentos, condicionamento e fenómenos não associativos de habituação a certos estímulos) e memória explícita ou declarativa, que, por seu turno, pode ainda ser classificada, entre outras possibilidades, como episódica/autobiográfica85 ou semântica. Grosso modo, estes tipos de memória podem ser definidos nos seguintes termos:

85

A identificação entre memória episódica e memória autobiográfica não é consensual no âmbito das neurociências. De facto, a memória autobiográfica e a memória episódica podem ser entendidas como dois sistemas distintos, sendo que a primeira se referirá a representações literais dos acontecimentos do passado retidas temporariamente (2-3 dias) e a segunda, a representações do passado mais permanentes e consolidadas.

152 A memória episódica também se denomina de autobiográfica e é uma memória de acontecimentos pessoais, que diz respeito ao registo, consolidação e recuperação de informações organizadas num contexto temporal e espacial. Numa situação normal é a memória episódica que permite recordar um acontecimento de vida ou uma notícia lida no jornal naquela altura. A memória episódica é também a que mais vezes nos atraiçoa, não nos permitindo recordar alguns momentos do passado ou ainda recordando-os, mas já reencenados pela memória e algo distantes do que aconteceu na realidade. […]

Por seu lado, a memória semântica é o conjunto de conhecimentos independentes do contexto espaço-tempo, funcionando como uma enciclopédia que contém os conhecimentos adquiridos ao longo da vida acerca do mundo, tais como o significado de palavras objetos e conceitos.

Pais, Cruz & Nunes 2008, 12-13

A estes, valerá ainda a pena acrescentar outros dois tipos de memória declarativa, com repercussões no trabalho em curso – a metamemória e a memória prospetiva. A primeira diz respeito “à consciência que cada um tem sobre o estado atual da sua própria memória e capacidades mentais”, sendo sensível à personalidade e ao humor; o segundo, “à capacidade de nos projetarmos no futuro” (Pais, Cruz & Nunes 2008, 13-14), ajudando a planear e a imaginar situações.

Pelo acabado de expor, é legítimo afirmar que a memória é indissociável da linguagem e que a materialização das evocações é feita por meio da representação verbal. A memória autobiográfica, especificamente, representa um conjunto de experiências que formam a história de uma pessoa e que está ligada ao desenvolvimento da linguagem, concluindo que “Só quando a criança consegue passar os acontecimentos a palavras é que os consegue manter na mente e refletir sobre eles.” (Gonzaga & Nunes 2008a, 68). A memória autobiográfica está, assim, intimamente relacionada com a construção da identidade pessoal (como diria Ricœur). Parafraseando Howe & Courage (1993), Gonzaga e Nunes afirmam que

[…] existe uma maturação, uma automatização do sentido do self, que funcionará

como o referente à volta do qual as experiências pessoais se irão organizar. Deste modo, a criança apenas terá memórias autobiográficas quando for capaz de ter uma grelha de referência pessoal.

Entendemos facilmente que para nos recordarmos de um episódio vivido por nós próprios temos de reconhecer a nossa presença, como um dos atores ou pelo menos como figurante. Assim a memória autobiográfica requer que coloquemos uma versão abstracta de nós próprios nos acontecimentos que estão a ocorrer.

Gonzaga & Nunes 2008b, 117

Refira-se, finalmente, uma outra questão relativa à memória, com implicações na investigação em curso: a forma como se lhe acede. Segundo Squire et al. ([1998]2003),

153 a memória de longa duração pode ser acedida por múltiplas vias. Ganong ([1965]2001) e Berne et al. ([1988]2003) destacam uma delas, a via associativa – conforme estes autores, a ativação de um conceito geral desencadeia uma busca por pormenores direta ou indiretamente associados a esse mesmo conceito. A mesma perspetiva é partilhada por Alexandre Castro Caldas: “Temos tendência a fazer conjuntos por associação analógica. As coisas que são semelhantes ou iguais associam-se à volta de um protótipo ou definição.” (Caldas 2013, 39). A via associativa por meio da qual se acede à recordação é uma questão neurológica que se reflete na linguagem e na construção textual do conhecimento. A prová-lo estão os textos MMV e PM, cuja estruturação temática se rege por uma organização de tipo associativo, por movimentos de vaivém e por sucessivas operações de retoma e reformulação de matéria semântica.

Pelas considerações acabadas de apresentar, é legítimo afirmar também que a memória – especificamente a memória de longo prazo (autobiográfica e semântica), a metamemória e a memória prospetiva – ativam em simultâneo operações de ordem cerebral/mental e operações de ordem discursiva. Os textos memorialísticos serão, assim, a materialização e reflexo dessas operações organizadas como um todo (Esquema 24):