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Operações psicológico-discursivas de ocorrência obrigatória

MEMÓRIAS – ANÁLISE TEXTUAL E GENOLÓGICA

Esquema 24 – Memória e discurso

3.1. Operações psicológico-discursivas de ocorrência obrigatória

De acordo com os posicionamentos teórico-epistemológicos seguidos no presente estudo, os TD constituem, simultaneamente, mundos/planos enunciativos e operações psicológicas constitutivas desses mundos/planos enunciativos. Bronckart (1997) distingue dois tipos de mundo: o mundo ordinário87, representado pelos agentes humanos, e o mundo discursivo, criado pela atividade de linguagem, passível de atualização em quatro TD distintos: a cada mundo/plano discursivo corresponderá um tipo psicológico (entendido como construto teórico/entidade abstrata), resultante de uma operação psicológica “pura”); a cada tipo psicológico corresponderá, por sua vez, um tipo linguístico (isto é, a verbalização do tipo psicológico). É nesse sentido que se torna legítimo sustentar que os TD são operações psicológicas discursivas suscetíveis de construir o conhecimento.

Todos os TD entram na configuração linguística de MMV e PM. O Esquema 25 dá conta da representatividade de cada TD (em termos de extensão) nos dois textos.

Esquema 25 –TD em MMV e PM (n.º de palavras)88

87

Noção concebida a partir do conceito noção de mundos representados (mundo objetivo, mundo social,

mundo subjetivo), proposto por Habermas ([1981]1987).

88

Encontra-se disponível no CD-ROM que acompanha a tese a análise dos TD relativamente a todos os episódios que constituem os textos MMV e PM. A identificação/segmentação dos TD é feita com base nas marcas linguísticas características de cada tipo discursivo (cf. Quadro 21, páginas 93-94). A unidade linguística utilizada para medir a extensão dos TD é a palavra (entendendo-se como palavra

qualquer sequência delimitada por espaços em branco (e.g. Nasci| em| Alvarinhos | no |dia | 23 | de | Janeiro | de | 1930... |). A análise incide apenas nos TD de primeiro nível – não se contabilizando os segmentos de DI secundário (que remetem para personagens e/ou acontecimentos textualizados e que se encontram integrados em outros segmentos discursivos, frequentemente de RI).

8,1 0,2 90,5 1,2 11,8 2,5 83,9 1,8 0 20 40 60 80 100 Discurso interativo

Discurso teórico Relato interativo Narração

158 De acordo com os dados apresentados no esquema, os textos MMV e PM são muito semelhantes em termos de extensão dos TD (não obstante o facto de terem sido produzidos em atividades indiscutivelmente diversas): o RI predomina em ambos (constituindo 90,5% e 83,9% da totalidade textual), seguindo-se-lhe o DI (que corresponde a 8,1% e 11,8% dos textos), a narração (que representa 1,2% e 1,8% dos textos) e o DT, mais expressivo em PM (2,5 %) do que em MMV (0,2%). Verifica-se, pois, a predominância de dois tipos de atitude psicológico-discursiva: a atitude narrativa (expressa, sobretudo, pelo RI) e a atitude interativa (expressa pela articulação entre a ordem do narrar e a ordem do expor).

Relativamente ao primeiro tipo de predominância, o facto de o RI constituir 90% dos textos permite concluir que:

 em termos gnosiológicos, as memórias se baseiam em operações psicológicas que constroem um universo discursivo específico: o mundo do narrar implicado;

 ao nível linguístico, as memórias se centram na verbalização desse mesmo mundo, transformando experiências pessoais passadas em conteúdo temático.

A predominância dos discursos de tipo interativo (visível, sobretudo, no RI, seguida, em menor grau, do DI), demonstra que há um elevado grau de implicação entre os agentes mobilizados no texto (associadas ao eu-personagem) e os agentes associados à situação de produção (relativas ao eu-produtor textual). Por outras palavras, a predominância dos discursos de tipo interativo sustenta a teoria de que o género memórias se baseia na enunciação implicada de acontecimentos passados.

Apesar de a extensão do RI, do DI e da narração apresentar inequívocas afinidades nos textos MMV e PM, o mesmo não se passa relativamente ao DT: se, em PM, constitui 2,5% da totalidade textual (uma percentagem semelhante à ocupada pela narração), em MMV, este TD é residual, facto que poderá suscitar alguma estranheza. Dado que esta questão será retomada posteriormente, retenha-se por ora apenas que o DT – e o mundo do expor autónomo (isto é, não implicado) que lhe corresponde – é uma operação que implica um elevado grau de abstração (decorrente da não correspondência entre as coordenadas gerais que organizam o conteúdo temático do

159 texto e as coordenadas gerais do mundo ordinário, em que se situa a ação de produção textual). A sua presença ou ausência num texto memorialístico poderá ser encarada como um condicionamento da atividade em que o texto se encontra inscrito. De facto, o discurso produzido na atividade familiar tenderá a ser contextualizado/implicado, ao passo que o discurso produzido na atividade literária tenderá a ser mais autónomo.

Considerou-se, até agora, a representatividade dos TD em termos de extensão. No entanto, é necessário ter em conta também a frequência com que, durante o processo de produção textual, cada TD é ativado em termos mentais. Assim, apresenta-se abaixo a percentagem de ocorrência dos TD em MMV e PM:

Esquema 26 –TD em MMV e PM (n.º de ocorrências)89

Embora as percentagens sejam diferentes das apresentadas no quadro anterior, verifica-se, novamente, a predominância dos discursos de tipo interativo, sendo que, em termos de número de ocorrências dos quatro TD, se esbate a diferença de predominância do RI em relação ao DI – o que se justifica pelo facto de os segmentos de RI serem bastante extensos, ao contrário dos segmentos de DI, frequentemente constituídos apenas por duas palavras (e.g. Recordo que).

89

A identificação/segmentação dos TD é feita com base nas marcas linguísticas características de cada tipo discursivo (cf. Quadro 21, páginas 93-94). A unidade linguística utilizada para medir a

ocorrência dos TD é o próprio TD identificado, independentemente do número de palavras que o

constituam. 34,6 2 61,4 2 45,4 5,1 47 2,5 0 10 20 30 40 50 60 70

Discurso interativo Discurso teórico Relato interativo Narração

160 Os dados apresentados permitem concluir que as memórias são um género textual que se baseia em dois tipos de atitudes psicológico-discursivas complementares: a atitude narrativa e a atitude interativa. No entanto, se, em termos de extensão, prevalecia a atitude narrativa, em termos de ocorrência verifica-se um esbatimento da diferença entre as duas atitudes discursivas, no caso de MMV, e mesmo de equilíbrio, no caso de PM, entre a atitude narrativa e a atitude expositiva. Esta articulação entre as duas ordens discursiva poderá ser condicionada pelo género memórias, sendo que esse condicionamento decorrerá da forma de funcionamento da própria memória. Confirma- se, assim, uma posição já defendida em Coutinho & Jorge:

Assim, nos textos memorialísticos, ainda que a ordem do narrar se apresente como predominante (em termos de extensão), a articulação entre expor e narrar parece ser uma contingência do género – suscitada pelo vaivém entre presente e passado que exige o trabalho da/com a memória.

Coutinho & Jorge 2012,157

Até ao momento foi analisada a representatividade dos TD nos textos MMV e PM, priveligiando dados de carácter quantitativo, centrados em percentagens de ocorrência e de frequência das operações discursivas. Tais dados, sem dúvida relevantes em termos de configuração global dos TD, não permitem, no entanto, evidenciar a forma como as operações discursivas se articulam, imbricam e interagem em textos memorialísticos. Com efeito, os dados apresentados nos dois esquemas anteriores parecem corroborar a teoria de que o RI é, em ambos os textos, o TD dominante/maior (sendo este o TD que apresenta ocorrências mais longas e mais frequentes). No entanto, poderá aqui colocar-se uma questão de ordem gnosiológica: será que a operação psicológico-discursiva RI condiciona (exercendo uma relação de subordinação) as operações psicolológico-discursivas DI, DT e Narração?

Para responder a esta questão, esquematiza-se a configuração discursiva dos episódios MMV [16] e PM [13] (Esquemas 27 e 28, página seguinte). Nestes esquemas os segmentos de RI são apresentados sob um fundo cinzento, com um corpo de letra simples; o DT é apresentado sobre o mesmo fundo, a negrito, e o DI é apresentado sobre fundo branco e em corpo de letra simples.

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Esquema 27 – TD em MMV [16]

AINDA A MINHA TENDÊNCIA RELIGIOSA

Eu que gostava tanto de ouvir o Sr. Padre D. dizer o terço na Rádio Renascença, imaginem qual foi a minha surpresa, quando num Domingo o vi a celebrar a Missa na Capela de Santa Susana. O P. J., quando vendia na Praça de Cascais, teve como freguês o Sr. padre D., por ter lidação com ele, um dia em conjunto com uns amigos, pediram-lhe se ele queria vir Celebrar uma missa à Capela de Santa Susana, o Padre D. aceitou. Como gostou muito de ter cá vindo celebrar a missa ofereceu-se para voltar, sempre que fosse necessário. Entretanto, como o Sr. Prior da nossa freguesia tinha muitas dificuldades em dizer todas as Missas aos fins de semana, nas cinco Capelas da freguesia, numa conversa entre a comissão da nossa capela e o Sr. Prior da freguesia ficou assente fazer-lhe um convite, se ele poderia cá vir Celebrar a Missa aos domingos, o Sr. Padre D. aceitou, voltou a gostar do ambiente da nossa Comunidade, e começou a vir Celebrar todos os domingos, e não só, pois que também começou a vir dizer o terço à nossa Capela uma vez por semana. Isto durante vários anos, apesar da sua avançada idade, o Senhor Padre D. que agora tem setenta seis anos.

Ele diz que gosta muito da nossa comunidade, e nós também gostamos muito dele, nós participamos com ele em algumas festas de convívio, em vários locais, lembro-me de um

encontro, na Serra de Sintra, foi simplesmente maravilhoso. Também, e por ser nosso amigo, foi de propósito a Leiria Celebrar a cerimónia do casamento do meu filho L..

O que penso dele! É um Homem Fantástico, é um Mensageiro do Senhor que tenta incutir nos Cristãos a verdadeira dimensão da palavra. Um grande exemplo como Padre que, apesar de vir de tão longe, chega sempre na hora exacta, não falha nem um minuto.

Mais tarde eu já com uma certa idade, a pedido do Senhor Padre A., fui nomeado Ministro Extraordinário da Comunhão. Dei algumas vezes a comunhão, e pelo Natal também dei algumas vezes o Menino a beijar, pouco mais fiz porque para isso não fui solicitado.

Segundo o Ritual do Ministro Extraordinário da comunhão o Ministro nunca deve exercer qualquer Missão Religiosa, sem que para isso seja solicitado.

Entretanto, por ter idade avançada, fui substituído pelo Jovem A. T., também Cursilhista.

Esquema 28 – TD em PM [13]

Contei noutro lugar como e porquê me chamo Saramago.

Que esse Saramago não era um apelido do lado paterno, mas sim a alcunha por que a família era conhecida na aldeia. Que indo o meu pai a declarar no Registo Civil da Golegã o nascimento do seu segundo filho, sucedeu que o funcionário (chamava-se ele Silvino) estava bêbado (por despeito, disso o acusaria sempre meu pai), e que, sob os efeitos do álcool e sem que ninguém se tivesse apercebido da onomástica fraude, decidiu, por sua conta e risco, acrescentar Saramago ao lacónico José de Sousa que meu pai pretendia que eu fosse. E que, desta maneira, finalmente,

graças a uma intervenção por todas as mostras divina, refiro-me, claro está, a Baco, deus do vinho e daqueles que se excedem a bebê-lo, não precisei de inventar um pseudónimo para, futuro havendo, assinar os meus livros. Sorte, grande sorte minha, foi não ter nascido em qualquer das famílias da Azinhaga que, naquele tempo e por muitos anos mais, tiveram de arrastar as obscenas alcunhas de Pichatada, Curroto e Caralhana. Entrei na vida marcado com este apelido de Saramago sem que a família o suspeitasse, e foi só aos sete anos, quando, para me matricular na instrução primária, foi necessário apresentar certidão de nascimento, que a verdade saiu nua do poço burocrático, com grande indignação de meu pai, a quem, desde que se tinha mudado para Lisboa, a alcunha desgostava. Mas o pior de tudo foi quando, chamando-se ele unicamente José de Sousa, como ver se podia nos seus papéis, a Lei, severa, desconfiada, quis saber por que bulas tinha ele então um filho cujo nome completo era José de Sousa Saramago. Assim intimado, e para que tudo ficasse no próprio, no são e no honesto, meu pai não teve outro remédio que proceder a uma nova inscrição do seu nome, passando a chamar-se, ele também, José de Sousa Saramago. Suponho que deverá ter sido este o único caso, na história da humanidade, em que foi o filho a dar o nome ao pai. Não nos serviu de muito, nem a nós nem a ela, porque meu pai, firme nas suas antipatias, sempre quis e conseguiu que o tratassem unicamente por Sousa.

162 Como se pode verificar, ambos os episódios apresentam uma estrutura discursiva análoga. Com efeito, os esqueletos que os configuram são semelhantes: