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Processo de desencadeamento de tensão simplificada em PM [36] Evento

MEMÓRIAS – ANÁLISE TEXTUAL E GENOLÓGICA

Esquema 20 Processo de desencadeamento de tensão simplificada em PM [36] Evento

1 Situação inicial: os meus talentos de caçador ainda estavam por baixo das habilidades do pescador

Nó desencadeador: Pardal caçado por atiradeira minha, houve um

Re-ação/Desenlace/Situação final: mas com tão pouca convicção o matei e em tão tristes circunstâncias que um dia não resisti a contar, numa crónica de desabafo e arrependimento, o nefando crime.

Porém, se sempre me faltou a pontaria para as avezinhas do céu

Evento 2 Situação inicial: o mesmo não acontecia com as rãs do Almonda

Nó desencadeador: dizimadas por uma fisga que tinha tanto de certeira quanto de despiedada / A pedra, zunindo, alcançava-as em cheio, e as infelizes rãs davam a última cambalhota da sua vida e lá ficavam, de barriga para o ar.

Re-ação/Desenlace/Situação final: Caridoso como o não havia sido o autor daquelas mortes, o rio lavava-as do escasso sangue que tinham vertido, enquanto eu, triunfante, sem consciência da minha estupidez, água abaixo, água acima, procurava novas vítimas.

145 O carácter desacentuado da estrutura hierárquica resulta, no caso em análise, de dois aspetos: por um lado, a falta de unidade temática, na medida em que são focados dois acontecimentos passados tematicamente associáveis mas apresentados por meio de uma relação de oposição; por outro lado, a fusão de várias fases da sequência narrativa num só bloco textual (Re-ação/Desenlace/Situação final).

A expressão Porém, se sempre me faltou a pontaria para as avezinhas do céu exerce uma função de conexão e de segmentação entre os dois eventos, na medida em que não só retoma, por meio de uma síntese anafórica, o Evento 1, como também porque estabelece entre os dois eventos uma relação de contraste (introduzida pelo conector contrastivo Porém).

Episódio em que há desencadear de tensão complexa

Em MMV e PM os episódios em que há desencadear de tensão complexa incidem, geralmente, no relato de um único processo de desencadeamento de tensão. Neles tende a representar-se uma só ação, em torno de um conflito/problema, que se desenrola e resolve; as fronteiras do episódio coincidem com as fronteiras do processo. O exemplo (18), retirado de MMV, ilustra esse tipo de organização hierárquica.

(18) OS LADRÕES QUE NÃO ERAM LADRÕES

[1] O «L.» era um moleiro que trabalhava no Moinho do Leitão, nas

Lameiras, que fornecia a farinha à E. do J. F., [2] esta um dia perguntou à M. D. C. «o teu Moleiro, o João Azenha, não te rouba na farinha?», «acho que não», respondeu a M. D., «o Ladrão do meu moleiro, o L., rouba-me sempre um quilo de farinha em cada saco de cinquenta e cinco quilos», disse a E.. [3] «Tenho que mudar de moleiro. Por favor, diz ao teu moleiro, o João Azenha, que, se ele quiser ser meu moleiro, que leve lá quatro sacos de farinha a minha casa». Eu, como a M. D. me disse, levei-lhe lá a farinha, e comecei a ser o moleiro da E., passado pouco tempo, a E. disse à M. D. que eu também lhe roubava um quilo de farinha em cada saco, a M. D. disse-me.

Quando eu fui levar a farinha casa da E., pedi-lhe para que se pesasse a farinha na minha presença, e realmente faltava um quilo em cada saco, eu disse-lhe que o defeito decerto que era do seu peso de cinco quilos, ela mandou conferir o respectivo peso, que tinha cem gramas a mais, o que na balança decimal representava um quilo. [4] A E. ficou incrédula, é que ela vendia os seus cereais com aquele peso e roubava-se a si própria. [5] Afinal L. não era ladrão nem eu. A culpa era do peso. (MMV [33]) [1] Situação inicial [2] Nó desencadeador [3](Re)ações [4]Desenlace [5] Situação final/Moral

146 Em termos estruturais, o processo de desencadeamento de tensão constrói-se com a representação do conteúdo temático por meio do discurso narrativo, planificado segundo o esquema da sequência narrativa (em etapas organizadas hierarquicamente). A sequencialidade hierárquica inerente ao processo de desencadeamento de tensão é marcada quer pela ordenação dos eventos de acordo com uma lógica causal-cronológica (expressa sobretudo pela sucessão linear de orações coordenadas assindéticas) quer pelo valor aspetual das formas verbais.

Em termos aspetuais, o episódio em análise é marcado por um contraste global entre duas séries isotópicas de processos: os processos verbalizados em [2], [3] e [4] são colocados em primeiro plano, ao passo que os processos verbalizados em [1] e [5] são colocados em segundo plano.84

A oposição entre as séries isotópicas [1]/[5] e [2]/[3]/[4] contribui para a estrututuração do processo de desencadeamento de tensão: o pretérito imperfeito marca o ponto de partida e o balanço da ação, ao passo que o pretérito perfeito simples expressa a ação propriamente dita. O Esquema 21 (página seguinte) dá conta desses dois aspetos.

A presença das três classes de episódios nos textos memorialísticos em análise pode ser encarada como parâmetro genológico:

 os episódios script incidem sobre relatos fragmentários, surgindo associados à própria memória, à seleção de acontecimentos por ela operada e à fixação de momentos/situações nucleares que se tornaram marcos obsessivos na memória do produtor textual;

 os episódios em que há desencadear de tensão complexa surgem associados à verbalização de acontecimentos passados sob o formato de história contada, com uma estrutura efabulatória (marcada por nexos

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A distinção entre estes dois planos tem sido objeto de análise recorrente, em diversas áreas. Labov (1972), por exemplo, distingue frases narrativas de frases não narrativas, considerando que as

primeiras refletem a cronologia temporal dos acontecimentos narrados, assegurando a progressão do conteúdo temático, ao contrário do que acontece com as segundas, que transmitem informação complementar relacionada com as primeiras. Bronckart (1997) utiliza a distinção entre primeiro e

segundo plano para analisar as funções de contraste global (relacionadas com a oposição de séries

isotópicas de processos – colocadas em primeiro plano (avant-plan) ou em segundo plano (arrière- plan). Por outro lado, no âmbito da Semântica (e, nomeadamente, em aquisição de L2), Bardovi-

Harlig (2011) considera que a estrutura narrativa contém eventos foreground e eventos background: os primeiros surgem associados ao avanço da narrativa, ao passo que os segundos suportam os primeiros. A análise feita baseia-se na perspetiva de Bronckart (1997).

147 cronológico-causais que asseguram o processo de desencadeamento de tensão) e ao ato de contar uma história a um interlocutor;

 os episódios em que há desencadear de tensão simplificada apresentam características dos episódios script e dos episódios em que há desencadear de  tensão complexa, do características de uns e de outros, refletindo duas atitudes distintas, uma relacionada com o ato de narrar memorialístico, produzido e interpretado como “autêntico” (isto é, sem artifícios efabulatórios ou qualquer grau de ficcionalidade), outra relacionada com a narrativa como protótipo textual construído culturalmente e apreendido por cada indivíduo.