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MEMÓRIAS – ANÁLISE TEXTUAL E GENOLÓGICA

Esquema 17 – Configuração temática global de PM

2.2.1. Funções dos episódios

De acordo com os preceitos retóricos, os textos79 são totalidades que tendem a ser constituídas por três partes: princípio (caput, initium), meio (medium) e fim (finis) – sendo que cada parte da tripartipação pode ser, também ela, subdivisível em partes. Para além disso, por outro lado, enquanto a parte introdutória e a parte final terão como função predominante o estabelecimento de contacto com o recetor, a segunda parte centra-se na matéria propriamente dita. Os textos memorialísticos em análise refletem essa dispositio, correspondendo cada episódio ou grupo de episódios a uma parte da tripartição.

Quadro 26 – Dispositio de MMV e PM

Princípio Meio Fim

MMV [1] Dos cinco aos doze

anos [2] a [37]

[38] A minha modesta polivalência

PM [1] Relação com os avós

e com Azinhaga [2] a [60]

[61] Testemunho de um adultério

Episódios iniciais

Em ambos os textos, o episódio inicial tem uma função introdutória, estabelecendo as coordenadas espácio-temporais dos acontecimentos evocados e focando o tema da origem/nascimento. Repare-se no incipit de cada um deles:

79

No âmbito da Retórica clássica, fala-se não em texto, mas em obra/discurso (cf. Lausberg

137 (10) Nasci em Alvarinhos no dia 23 de Janeiro de 1930...

Alvarinhos era uma pequena aldeia, situada na freguesia de são João das Lampas no concelho de Sintra. Os seus conterrâneos eram uma gente pobre e humilde que vivia do árduo trabalho dos campos, salvo raras excepções, quase todos tinham uma pequena parcela de terreno, onde faziam as suas searas, e criavam os seus animais. […]. Era assim também a vida dos povos das aldeias vizinhas na década de 1930. (MMV [1])

(11) À aldeia chamam-lhe Azinhaga, está naquele lugar por assim dizer desde os alvores da nacionalidade [...]. Foi nestes lugares que vim ao mundo, foi daqui, quando ainda não tinha dois anos, que meus pais, migrantes empurrados pela necessidade, me levaram para Lisboa, para outros modos de sentir, pensar e viver, como se nascer eu onde nasci tivesse sido consequência de um equívoco do acaso, de uma casual distracção do destino, que ainda estivesse nas suas mãos emendar. (PM [1])

Apesar de diferentes em termos estilísticos, os excertos selecionados apresentam semelhanças quer ao nível do conteúdo temático verbalizado, quer ao nível da atitude discursiva: ambos apresentam o ponto de ancoragem temporal que delimita a quo os eventos relatados e em ambos o produtor textual se implica no discurso (recorrendo à primeira pessoa gramatical). Embora, como já ficou demonstrado, as memórias tendam a ser configuradas de acordo com uma organização não necessariamente regida por critérios de ordem temporal/linear, os episódios iniciais de PM e MMV estabelecem, desde logo, os marcos cronológicos iniciais dos eventos recordados, constituindo o limite cronológico inicial do conteúdo temático verbalizado. Não quer isto dizer que não possam vir a ser representados textualmente acontecimentos ocorridos antes desse momento. Com efeito, vários são os momentos textuais em que, nas PM, se alude, por meio de movimentos analéticos, a acontecimentos ocorridos antes do marco cronológico referenciado no primeiro episódio)80.

Episódios finais

Por seu turno, o último episódio dos textos MMV e PM estabelece o limite cronológico final da sequência de eventos verbalizados:

(12) Não me considero artista em coisa nenhuma, mas como sou persistente, e com um pouco de paciência, tenho feito um pouco de quase tudo.” (MMV [38])

(13) Um dia, devia andar pelos meus dezasseis anos, dou com uma mulher lá dentro, de pé, entre a vegetação, compondo as saias, e um homem a abotoar as calças. Virei a cara, segui adiante e fui sentar-me num valado da estrada […] Nunca mais tornei a ver o lagarto verde.” (PM [61])

80

É o caso, por exemplo, da referência ao namoro dos pais ou às origens do avô Jerónimo, nos episódios [25] e [46], respetivamente.

138 Em MMV o limite cronológico final dos eventos relatados prolonga-se até ao momento da produção textual. Este momento é construído textualmente quer pelas formas verbais de presente e de pretérito perfeito composto, quer pelas classes aspetuais dos verbos em causa: os verbos selecionados predicam realidades que correspondem ou a situações estativas com extensão temporal e sem um ponto final intrínseco, que se prolonga para lá do momento da produção textual (sou) ou a eventos durativos, com efeito de iteratividade (tenho feito um pouco de quase tudo). Daqui se conclui que o marco temporal final do conteúdo temático verbalizado é o próprio momento da produção textual (sem um ponto final intrínseco).

O momento temporal representado no episódio final de PM constitui, também ele, o limite ad quem do conteúdo temático verbalizado ao longo das memórias, a através do localizador temporal Um dia, devia andar pelos meus dezasseis anos, em articulação com o pretérito perfeito simples (Virei, fui sentar-me) e o chamado presente histórico (dou). Apesar de, nas construções em que ocorrem, estes tempos remeterem para acontecimentos pontuais passados, contribuindo para o ‘fechamento’ do texto, a última frase (Nunca mais vi o lagarto verde.) parece assumir sugerir ainda um prolongamento da ação até ao momento da produção textual, devido à articulação entre os advérbios nunca e mais, que marca uma polaridade negativa iniciada no momento final do evento relatado e prolongada até ao presente.

O estabelecimento das coordenadas temporais iniciais e finais do conteúdo temático verbalizado no primeiro e no último episódios de PM e de MMV poderá ser encarado como um parâmetro genológico, com incidência aos níveis temático e estrutural:

 MMV tem como marco cronológico inicial o momento do nascimento do produtor textual (episódio [1]) e como marco cronológico final o momento da produção textual (episódio [38]) – trata-se de um texto memorialístico que abarca a totalidade da vida do produtor textual;

 PM tem como marco cronológico inicial o momento do nascimento do produtor textual (episódio [1]) e como marco cronológico final o momento em que o produtor textual teria cerca de dezasseis anos81 (episódio [61]) –

81

139 classificando-se como memórias de infância. O facto de a última frase do texto remeter para um momento posterior a esse marco final poderá justificar-se quer como uma previsibilidade do género (cf. interação passado/presente), quer como uma questão estilística, justificável de acordo com a atividade social em causa. A manipulação temporal poderá ser encarada como uma marca do estilo da atividade, por um lado, e do estidlo do texto, por outro lado.

Episódios intermédios

No texto PM, os episódios intermédios [2] a [60] apresentam uma relação semelhante em termos de função estrutural – não se estabelecendo entre eles relações de tipo hierárquico.

Ao invés, no texto MMV, os episódios [1], [4], [8], [11], [20], [27] e [31] exercem uma função específica em termos de arquitetura textual. Com efeito, trata-se de introduções de cunho narrativo, em que o produtor textual relata o acontecimento que dá origem ao capítulo, introduzindo o conteúdo temático que será abordado a partir daí e dando início a um novo eixo temporal – que, no caso de [4] e [11], surge na continuidade do eixo temporal anterior. Para além dessa, os episódios [1], [4] e [8] exercem uma outra função, semelhante à dos episódios [11], [20], [27] e [31]: a introdução de um feixe de episódios, agrupados segundo critérios de ordem temática/analógica (não organizados de acordo com uma organização de tipo linear/cronológica). Nestes casos, o título do episódio que encabeça o feixe apresenta-se como uma formulação explícita da macroestrutura global quer do episódio a que se refere diretamente, quer do feixe de episódios que introduz, sintetizando o conteúdo temático do agrupamento desses capítulos.

Valerá a pena destacar, no texto MMV, o caso dos episódios [22] a [26]. Neste feixe isotópico, o título e o subtítulo que introduzem o episódio [22] assumem uma