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ATIVIDADE, GÉNERO, TEXTO

Esquema 4 – Policódigo literário (Silva [1967]1996) Código

2.3. Relações entre géneros

Porque são produzidos em atividades (que se caracterizam, em geral, por um funcionamento em rede), os géneros textuais estabelecem entre si relações variadas. Apresentam-se de seguida duas formas distintas de relações que podem ser estabelecidas entre géneros e que condicionam a identidade dos mesmos: as relações

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A heterogeneidade de classificações não é um fenómeno recente; ao invés, verifica-se já na Poética de

Aristóteles (para este filósofo, os géneros literários/poéticos (imitados) podem ser classificados segundo três critérios distintos: o meio da imitação – ritmo, canto, metro –, o objeto da imitação – homens superiores, homens semelhantes, homens inferiores – e o modo de imitação – narrativo,

43 existentes ao nível das formações sociodiscursivas (géneros/atividades de linguagem), as relações existentes ao nível dos campos práticos (género/campo genológico) e as relações que se estabelecem ao nível dos géneros propriamente ditos (género autónomo/género incluído).

2.3.1. Géneros e atividades

Um dos aspetos que tem sido foco de estudo e problematização, no âmbito da Linguística Textual, relaciona-se com a classificação dos géneros e com as relações que se estabelecem entre estes e as atividades. Os géneros textuais são produzidos no âmbito das atividades de linguagem – o mesmo equivale a dizer que a sua sua origem e evolução é condicionada pelas necessidades e conveniências da atividade a que estão associados (Coutinho 2012b).

A constatação de que os géneros de texto se encontram intimamente relacionados com as atividades a que se encontram circunscritos pode ser já encontrada em Voloshinov ([1929]1977, [1930]1981). Focando especificamente os géneros do quotidiano, o autor considera que há formas de comunicação usadas no âmbito da vida quotidiana relativamente estáveis:

Les formules de la vie courante font partie du milieu social, ce sont des éléments de la fête, des loisirs, des relations qui se nouent à l’hôtel, dans les ateliers, etc. Elles coïncident avec ce milieu, sont délimitées et déterminées par lui dans tous leurs aspects.

Voloshinov [1929]1977, 139

De acordo com Voloshinov, a atividade quotidiana dispõe de um repertório específico de “petits genres appropriés”, que se adaptam às situações de comunicação:

Dans chaque cas, le genre s’adapte au sillon que la communication sociale parâit avoir tracé pour lui et cela, pour autant qu’il représente le reflet idéologique du type, de la structure, du but et de la constitution propre aux rapports de communication sociale.

Voloshinov [1930]1981, 291

O que aqui se acabou de dizer em relação à atividade quotidiana é válido para qualquer outra atividade de linguagem. Na Parte II mostrar-se-á até que ponto a atividade de linguagem em que um género (neste caso a familiar ou a literária) é produzido condiciona a produção textual, sobretudo ao nível da dimensão estilística.

44 No que diz respeito às relações que se estabelecem entre géneros e atividades, há uma outra questão que se reveste de particular interesse nesta investigação, e que se relaciona com o pressuposto teórico de que os géneros são determinados pela atividade em que são produzidos. Deste pressuposto seria legítimo concluir que realizações textuais produzidas em atividades distintas adotam, necessariamente, diferentes géneros. Ou, exemplificando com o género em análise nesta investigação, que as memórias produzidas no seio da atividade literária e as memórias produzidas no seio da atividade familiar adotariam géneros diversos. É esta, aliás, a perspetiva defendida por Rastier: de facto, devido ao facto acima enunciado (o género é condicionado pela atividade), o autor coloca em dúvida a existência de géneros transdiscursivos:

Comme les genres restent subordonnés à des discours, l’existence de genres transdiscursifs reste douteuse, car le voisinage d’autres genres, ou, s’il s’agit de genres inclus, d’autres contextes d’inclusion, suffit à les modifier: un proverbe par exemple n’a pas le même sens dans un discours ludique ou dans un discours juridique; la lettre commerciale n’a presque rien de commun avec la lettre personnelle du discours privé, car la corrélation entre contenu et expression demeure critériale pour définir le genre.

Rastier 2001a, 253

Este mesmo posicionamento é reiterado em trabalhos posteriores do autor. Para Rastier, uma tipologia transdiscursiva é ‘ilusória’, na medida em que os géneros são específicos das práticas sociais, que se dividem em atividades específicas:

À une typologie a priori des genres, on préférera la recherche des axes typologiques

qui dépendent des discours. Le projet d’une typologie transdiscursive paraît en effet illusoire, dès lors que les genres sont spécifiques aux discours. À chaque discours, on peut faire correspondre un système ou symmorie générique. Chaque groupe de pratiques sociales correspondant à un discours se divise en activités spécifiques (ex. le jury de thèse, la conférence, le cours, la correction de copie, etc.), qui ont chacune leurs genres. Pour relier les genres aux discours, la poétique généralisée a pour tâche d’étudier les synmories dans leur spécialisation et leur co-évolution.

Rastier 2001b24

Embora ponha em causa a transdiscursividade dos géneros, Rastier não nega radicalmente a sua existência. Para o autor os contextos situacionais são suficientes para modificar o sentido dos textos; no entanto, a alteração de sentido a que se refere o semanticista será condição suficiente para provocar a mudança de género? Estou certa que não. Parece-me que a interação que se estabelece ao nível das atividades (interação

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A não identificação do número de página resulta do facto de a edição consultada se encontrar em linha (http://www.revue-texto.net/Inedits/Rastier/Rastier_Elements.html).

45 essa que leva a que um género possa ser produzido em diversas atividades) influencia a coevolução dos géneros, numa perspetiva sincrónica, potenciando que um mesmo género integre o sistema genológico de atividades contíguas. Concretizando com o objeto de estudo deste trabalho, estou convicta de que os textos memorialísticos produzidos por José Saramago e por João Azenha, por partilharem uma das várias atividades sociais em que se inscrevem (a familiar), adotam e adaptam o mesmo modelo de género (as memórias). Na esteira de Miranda (2010), considero a existência de duas classes de géneros, uma composta por géneros associados a diferentes atividades, outra por géneros associados a uma única atividade. O género memórias integrar-se-á no primeiro grupo, pois o respetivo processo de produção, circulação e receção/interpretação é passível de se encontrar subordinado a mais do que uma atividade, mantendo a sua especificidade.

2.3.2. Géneros e campos genológicos

Géneros e atividades de linguagem são, de acordo com as propostas teóricas atrás apresentadas, noções indissociáveis; com efeito, retomando as propostas de Rastier (1989), poder-se-á dizer que os géneros se formam, evoluem e tendem a desaparecer juntamente com as práticas sociais a que estão associados25.

Cada prática social se caracteriza por um determinado conjunto de géneros textuais, que apresentam afinidades entre si ao nível do funcionamento social. Para dar conta desta realidade, Rastier (2001a) faz intervir o conceito de campo genológico (champ générique). De acordo com o autor, o campo genológico define-se pelo seu estatuto de mediador entre as práticas sociais e os géneros:

Si les domaines d’activité correspondent aux discours, entre les discours et les genres, il faut reconnaître une médiation, celle des champs génériques. Un champ

générique est un groupe de genres qui contrastent, voire rivalisent dans un champ pratique: par exemple, au sein du discours littéraire, le champ générique du théâtre se divisait en comédie et tragédie […] Au sein des champs pratiques, les pratiques spécifiques correspondent à des genres; aux cours d’action, qui sont les occurrences de ces pratiques, correspondent des textes oraux ou écrits.

Rastier 2001a, 230-231

Valerá a pena salientar três aspetos sobre esta noção de campo genológico:

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Por esta razão, Adam & Heidmann (2011) entendem que os géneros se definem por contraste, no âmbito de um sistema de géneros – e não ontológica e isoladamente.

46 1) a noção de campo genológico como conjunto de géneros que contrastam e

rivalizam entre si (e que, portanto, se encontram numa situação que Rastier identifica como coevolução – cf., por exemplo, Rastier 2008) e como patamar intermédio entre os discursos/atividades e os géneros (patamar esse em que se regula o agrupamento de géneros com características comuns, em função da atividade em causa);

2) a natureza da relação que se estabelece entre os vários géneros que integram determinado campo genológico, relação essa simultaneamente pautada pelo contraste (que possibilita a distinção de cada género face aos outros géneros do mesmo campo) e pela analogia (que justifica a inclusão do género no campo em causa);

3) as articulações de ordem praxiológica e de ordem linguística que se estabelecem entre campos práticos/campos genológicos > práticas específicas/géneros > ocorrências particulares (ações individuais) / textos. Inseridos em campos práticos e agrupados em campos genológicos, os géneros são encarados como práticas específicas cuja concretização se faz através de textos.