• Nenhum resultado encontrado

ATIVIDADE, GÉNERO, TEXTO

Esquema 4 – Policódigo literário (Silva [1967]1996) Código

2.1. Do género de discurso ao género de texto

A noção de género como categoria de natureza social é subsidiária da teorização levada a cabo por Aristóteles nos três livros que constituem a sua Retórica. Neste tratado sobre a elaboração do discurso (logos), que se ocupa “da arte de comunicação, do discurso feito em público com fins persuasivos” (Júnior 2005, 33), Aristóteles aponta a existência de três géneros de discursos retóricos: o epidíctico18 ou demonstrativo, o judicial ou forense e o deliberativo ou político. Sintetizam-se no Quadro 5 (página seguinte) os principais aspetos referentes a cada um dos elementos comportados pelo discurso: o orador, o assunto de que se fala e o ouvinte.

Os géneros da oratória são classificados e caracterizados sobretudo em função de uma dimensão iminentemente social e institucional, relacionada com a vida política da Atenas do século IV a.C.. Destacam-se, nesta perspetiva, o tipo de auditório a que cada género se destina (bem como o seu papel social, relacionado com uma efetiva intervenção face ao discurso ouvido) e o objetivo do orador ao discursar – objetivo esse que não descura os efeitos perlocutórios inerentes ao género.

18

36

Quadro 5 – Géneros retóricos (Aristóteles 2005)

Género epidíctico Género judicial Género deliberativo

Objetivo do orador

• Louvar ou censurar, com base em valores como o belo e o feio.

• Mostrar a virtude ou defeito de uma pessoa ou coisa.

• Acusar ou defender, com base em valores como o

legal e o ilegal.

• Mostrar a justiça ou injustiça do que foi feito.

• Aconselhar ou dissuadir, com base em valores como o útil e o prejudicial. • Mostrar a vantagem ou desvantagem de determinada decisão. Assunto de que se fala • Tópicos  Virtudes  Conceito do belo, do nobre e do honesto e respetivos contrários • Tópicos

 Tópicos sobre delitos ou transgressão consciente das leis

 Tópicos sobre prazer  Tópicos sobre agentes e

vítimas da injustiça  Tópicos sobre justiça e

injustiça

Tópicos sobre meios inartísticos ou não técnicos de persuasão • Temas  Finanças  Guerra e paz  Defesa nacional  Importações e exportações  Legislação • Tópicos

Tópicos éticos (felicidade) Tópico do mais e do menos

aplicado à comparação de bens

Tópicos sobre constituições políticas Ouvinte • Espectadores (que apreciam o talento do orador) • Juízes/membros do tribunal (que devem pronunciar-se sobre atos realizados no passado)

• Juízes/membros da assembleia ou do conselho (que devem pronunciar-se sobre atos que poderão acontecer no futuro)

Síntese elaborada com base em Aristóteles 2005, 105-155 e em Júnior, apud Aristóteles 2005, 33-40

Em última análise, os géneros retóricos definem-se por um carácter de tipo técnico, vocacionado para a ação:

[…] a Retórica de Aristóteles não é o produto da mera idealização de princípios

nascidos com ele e por ele convencionados para persuadir e convencer outras pessoas. É, sim, o produto da experiência consumada de hábeis oradores, a elaboração resultante da análise das suas estratégias, a codificação de preceitos nascidos da experiência com o objectivo de ajudar outros a exercitarem-se correctamente nas técnicas de persuasão.

Júnior 2005, 16 (parafraseando Corbett 1971)

A dimensão social dos géneros retóricos é ainda evidente em relação ao assunto de que se fala. De facto, os temas/tópicos que Aristóteles associa a cada género estão intimamente relacionados com as atividades da polis em que esses mesmos géneros são adotados (atividade judicial/forense, atividade deliberativa/política…). Embora a reflexão sobre questões de tematicidade se encontre explorada de forma embrionária no

37 tratado aristotélico (na medida em que surge confinada apenas à identificação dos temas abordáveis em cada género retórico), constata-se que Aristóteles associa os aspetos temáticos à dimensão contextual, podendo inferir-se por isso que o tema é entendido (também), já naquela obra, como uma categoria de ordem pré-textual.

A Retórica e a Poética permitem ainda refletir sobre a dimensão estilística géneros. Nesse sentido, Aristóteles defende que não é suficiente estar na posse dos argumentos a produzir – é necessário apresentá-los adequadamente, o que leva a que cada discurso pareça ter determinado carácter (por exemplo, estilo da prosa, estilo da poesia…). Conforme o terceiro tomo da Retórica (dedicado ao estilo e à composição do discurso), cada género tem o seu estilo:

É preciso, porém, não esquecer que a cada género é ajustado um tipo de expressão diferente. Na verdade, não são a mesma coisa a expressão de um texto escrito e a de um debate, nem, neste caso, oratória deliberativa é a mesma que a judiciária.

Aristóteles 2005, 275

Aristóteles estabelece uma distinção entre o estilo das composições escritas e o estilo oratório:

Quadro 6 – Géneros retóricos e estilo (Aristóteles 2005)

Géneros retóricos Características estilísticas

Estilo dos debates (género deliberativo)

• Estilo oral, natural e espontâneo • Não implica a exatidão dos detalhes

Destinado à ação – cf. recurso ao assíndeto e à repetição Estilo judiciário • Estilo médio, exato

• Pouco retórico (ausência de luta oratória) Estilo epidíctico • Estilo elevado, exato

Literariamente trabalhado (o mais escrito dos três)

Síntese elaborada com base em Aristóteles 2005, 275-277 e em Júnior apud Aristóteles 2005, 45-50

Para Aristóteles, o estilo é inerente ao género e refere-se não ao conteúdo do discurso (o que se diz), mas à forma como o discurso se diz (lexis). O estilo é, assim, indissociável do ato de dizer e da língua (na sua forma oral ou escrita).

Ainda que tenha ficado adormecida durante séculos (se comparada à teorização dos géneros literários), a teoria dos géneros retóricos de Aristóteles voltou a ser foco de

38 atenção nos estudos atribuídos a Bakhtine e, posteriormente, nos estudos linguísticos (sobretudo francófonos) dos anos 70 e 80 do século XX. Este retorno a Aristóteles possibilitou, como refere Coutinho (2012a, 17), “o alargamento da noção (de género) a todos os âmbitos de atividade comunicativa e não apenas ao domínio literário a que a consagrava a tradição poética ou literária”. No âmbito dos estudos de Linguística Textual, valerá a pena sublinhar a influência exercida pelo pensamento aristotélico a dois níveis: a dimensão social do género e as dimensões/componentes genológicas (temática, estilística e composicional).

Quanto ao primeiro aspeto, relembre-se que Voloshinov ([1929]1977) perspetiva a produção de enunciados individuais no seio das várias esferas da utilização da língua. Tais enunciados dão origem àquilo que o autor designa como géneros de discurso (tipos relativamente estáveis, com regularidades ao nível do tema, da construção composicional e do estilo). Na mesma linha, também Todorov (1978) entende o género como categoria historicamente determinada, associada a uma função predominantemente social; para aquele autor, o género é encarado em termos institucionais, funcionando como modelo de escrita (na ótica do autor) e como horizonte de espera (na ótica do recetor).

A convicção de que o género é uma categoria de natureza social é hoje consensual para os linguistas. Maingueneau (1996, 1998), por exemplo, entende o género de discurso como dispositivo de comunicação definido social e historicamente; Adam (1992) considera que os discursos são produzidos no seio das formações discursivas (religiosa, jornalística, política, literária…), o que lhe permite falar em géneros do discurso religioso (oração, sermão…) ou em géneros do discurso jornalístico (reportagem, editorial…); por seu turno, na esteira de Miller (1984) e encarando os géneros como categorias cognitivas de natureza psico-social, ou, se se preferir, como artefactos culturais, Bazerman (1997,19) sublinha: “Genres are not just forms. Genres are forms of life, ways of being. They are frames for social action. […] Genres shape the thoughts we form and the communications by which we interact.”

A noção de género como categoria de natureza social é também perfilhada por Bronckart (1997)19. Em Activité langagière, textes et discours, o autor entende os

19

Esta convergência de opiniões – que, como se viu, remonta a Aristóteles e tem resistido ao tempo, leva Coutinho (2003, 98) a concluir que “poderá considerar-se praticamente estabilizada a noção de género como ‘modalidade’ de comunicação histórica e socioinstitucionalmente definida”.

39 géneros como formas comunicativas que se encontram disponíveis no intertexto20 como instrumentos/modelos sob a forma de nebulosa (co-existindo no mesmo espaço géneros com formatos establilizados e textos sem fronteiras fixas); de acordo com esta perspetiva interacionista, os géneros são categorias abstratas, caracterizáveis por regularidades que operam quer ao nível das propriedades linguísticas, quer ao nível da indexação social – facto que leva a que os géneros sejam simultaneamente alvo de adoção (já que adotam um modelo de género disponível no intertexto/arquitexto, isto), e de adaptação (por adaptarem o modelo de género às condições de utilização relativas a cada ação específica). Numa entrevista concedida em 2011 a Barricelli & Muniz- Oliveira, Bronckart reitera este ponto de vista, afirmando que a indexação social a que os géneros estão sujeitos ocorre a três níveis: a situação de atividade em que o género pode ser utilizado (indexação referencial), o meio de difusão (indexação comunicacional) e o valor social que lhe é atribuído (indexação cultural).

Embora se encontre estabilizada na área da Linguística Textual, o entendimento do género como categoria de natureza social não é ainda totalmente consensual na área da teoria literária. Com efeito, nesta área o conceito de género ora é entendido ainda como modo de enunciação transversal a diferentes géneros (rivalizando o termo género com o de modo – género/modo narrativo, dramático, lírico), ora como espécie historicamente situada. A necessidade de clarificar a noção de género é, porém, sublinhada já em 1931, por Karl Viëtor (apud Wellek & Warren [1956]s/d, 283): “a designação de ‘género’ não deveria ser usada indistintamente para referir tanto essas três categorias [drama, épica e lírica], mais ou menos primordiais, como as espécies históricas, tais a tragédia e a comédia […]”. Esta oscilação no uso indistinto do conceito de género tem-se, no entanto, desvanecido, sublinhando Reis & Lopes ([1987]1998a) que

[…] de acordo com a concepção que vem de Goethe (que falava em formas

naturais e de espécies literárias), a moderna teoria literária tem postulado a

distinção entre categorias abstractas, universais literários desprovidos de vínculos históricos rígidos – os modos: lírica, narrativa e drama – e categorias historicamente situadas e apreendidas por via empírica –, os géneros: romance, contro, tragédia, canção, etc.

Reis & Lopes [1987]1998a, 187

20

Em obras posteriores, a noção de intertexto é substituída pela de arquitexto (conjunto de géneros elaborados pelas gerações precedentes e reorientados consoante as formações sociais contemporâneas – cf. Bronckart, 2004a).

40 Na linha de Goethe e assumindo uma postura similar à defendida na área da Linguística textual, aqueles autores entendem os modos como categorias meta- históricas e universais realizadas pelos diversos géneros. Nesta perspetiva, o conto, o romance ou as memórias são classificados como géneros narrativos – ou seja, como categorias históricas que atualizam o modo narrativo.21

Atente-se, finalmente, na designação com que os géneros têm sido definidos: géneros do discurso. Valorizando a dimensão social e institucional do género22, tal designação não é, no entanto, consensual, sendo adotada por autores como Maingueneau ou Adam, mas havendo posicionamentos teóricos que privilegiam outras formas de conceptualização e, consequentemente, de designação. É o que acontece no quadro do interacionismo sociodiscursivo, em que se defende a noção de género de texto. Neste sentido, Bronckart sublinha que qualquer texto se inscreve em determinado modelo de género, pelo que pretere a noção de género de discurso à de género de texto: “dans la mesure où tout texte s’inscrit nécessairement dans un ensemble ou dans un genre, nous avons adopté d’expression genre de texte, de préférence à celle de genre de discours” (Bronckart 1997, 78). Nesse sentido, qualquer texto adota e adapta um modelo de género:

Tout texte empirique est le produit d’une action langagière, il en est le pendant le

correspondant verbal ou sémiotique; tout texte empirique est réalisé par emprunt à un genre, et il relève donc lui-même toujours d’un genre; tout texte empirique

procède cependant aussi d’une adaptation de genre-modèle aux valeurs attribués par l’agent à sa situation d’action, et dès lors, outre les caractéristiques communes au genre emprunté, il exhibe également des propriétés singulières, qui définissent son

style propre.

Bronckart 1997, 111

A opção de Bronckart pela designação género de texto (generalizada no ISD e também utilizada por Rastier 1989a) em detrimento da de género de discurso pode ainda ser justificada pela forma como autor conceptualiza a noção de discurso (atitude de locução/modalidade de enunciação) – questão essa que será abordada em I.3.

21

Ao nível da teoria literária, a noção de modo, por sua vez, não é isenta de uma outra interpretação,

subsidiária da teorização genettiana, segundo a qual o modo, tal como o tempo e a voz, corresponde a

um domínio de constituição do discurso narrativo – relacionando-se com o ponto de vista do narrador e regendo a regulação da informação narrativa (Genette 1972).

22

Para uma sistematização da problemática dos géneros de/do discurso, consulte-se, por exemplo, Coutinho (2003) ou Miranda (2010).

41