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Clima e solo: facilidades por cima e deslegitimação por baixo

A fácil eleição de Antônio Moniz permitiu a Seabra superdimensio- nar sua força, apesar dos descontentamentos que iam amadurecendo à sua volta. Decerto, o controle do Legislativo e sua hábil manipulação da política coronelista nos municípios pareciam-lhes indicadores suficientes da preservação de sua supremacia. Além disso, no plano federal, o go- verno do mineiro Wenceslau Braz ratificava as regras da “política dos estados”, enfraquecida com várias intervenções durante o quadriênio de Hermes da Fonseca. Nesse momento, Seabra declara apoio ao governo federal, procurando, embora tardiamente, reinserir-se no círculo do Cate- te. Assumia, então, o compromisso dos governadores no federalismo de Campos Sales, isto é, apoiar, e não estimular, focos de oposição ao poder nacional. De todo modo, sua dominação estadual por cima não correspon- dia mais a um mando legitimado socialmente por baixo. Ou, pelo menos, as coisas caminhavam rapidamente nessa direção.

Os descontentamentos não se limitavam à “águia de Haia”. O bloco oposicionista se fortalecia também pela adesão dos membros da família Calmon. Já na eleição para deputado federal, de janeiro de 1915, Antônio Calmon compôs, por indicação de Luiz Viana, a chapa unitária da oposi- ção. Essa defecção é sintomática, porque os irmãos Calmon compunham o bloco de poder seabrista desde 1910 e integravam a base corporativa inicial do governo, como acionistas da Companhia de Melhoramentos e da Cia. Linha Circular (bondes, elevador e planos inclinados).29 Além dis-

so, política na família Calmon era considerada uma “extensão de seus in- teresses”, de modo que sua mudança de lado deve ser interpretada como sintoma de inversão de expectativas materiais em relação ao projeto de Seabra.30 Ainda mais que, no contexto dessas eleições, não havia apoio fe-

deral nem empréstimo externo, mas um Tesouro sobrecarregado e obras 29 Diário de Notícias, 9 jan. 1915. Fernando de Castro Rebelo Kock (deputado estadual pelo 1º Distrito) também migrou para a oposição nessa oportunidade. Castro Rebelo, assim como Góis Calmon, era sócio do grupo Guinle na Bahia.

30 Sobre a relação entre interesses materiais e políticos nesta família, ver CALMON, Pedro. Mi-

guel Calmon: uma grande vida. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro; Fundação Nacional

Pró-Memória, 1982. p. 67. Para o autor, e membro da família, quando ficou claro que Seabra “seria senhor da província, os irmãos Antônio e Góis Calmon se inclinaram por ele. Que faria Miguel?”

paralisadas. Por certo, esta percepção estendia-se a outros segmentos da burguesia financeira e agromercantil.

Nesse sentido, em 1913, a Associação Comercial da Bahia havia re- pudiado os privilégios concedidos a Eduardo Guinle para organizar e dirigir o Banco Hipotecário.31 A partir de então, progressivamente, a clas-

se dominante baiana, de sustentáculo da ascensão de Seabra, passaria a figurar entre as bases da oposição ao seu governo. Numa terra de ban- queiros, a escolha de um capitalista carioca para dirigir a projetada agência de fomento à agricultura, indústria e comércio estaduais pode não ter sido suficiente para minar as boas relações da burguesia local com o governo. Todavia, a posterior entrega, de “mão beijada”, do pré-existente Banco da Lavoura para Eduardo Guinle não podia ser aceita impunemente.32 Afinal,

com esse mesmo grupo, Seabra já havia se chamuscado nos escândalos da

Light e do empréstimo externo municipal de 1912. Além disso, o prome-

tido apoio financeiro às atividades produtivas baianas não foi viabilizado, já que o capital social do novo banco (90 milhões de francos) viria da frustrada tentativa de ampliação do empréstimo externo estadual de 1913. Partindo desses fatos, pode-se explicar por que o presidente da Associação Comercial, Alfredo Cabussú, passou a integrar a direção do Partido Republicano Conservador, reorganizado por Luiz Viana, em opo- sição ao projeto seabrista.33 E mais, torna-se compreensível o inusitado

da contribuição financeira da burguesia urbana à insurreição armada dos coronéis contra Seabra, em 1919-20.

De fato, enquanto Seabra governava com a oposição partidária en- fraquecida, criava condições para o renascimento robustecido dos adver- sários, fornecendo-lhes aliados de peso. O próximo a seguir esse caminho foi o, até então, fiel deputado Otávio Mangabeira. Até 1915, Mangabeira foi o principal nome de Seabra na Câmara Federal e, antes da escolha definitiva do candidato a governador (agosto de 1915), chegou a ser con- siderado o mais capacitado para a chefia do Executivo baiano. Contudo, seu nome não foi sequer cogitado. Mesmo lhe desagradando a escolha do 31 Relatório da Associação Comercial da Bahia, lido e aprovado em Assembleia Ordinária, de 28

de fevereiro de 1914 (exercício de 1913). PANG, 1978, p. 129.

32 ROCHA, Geraldo. Nacionalismo político e econômico. Rio de Janeiro: Officina de A Nota, 1937. p. 333. Trata-se do Banco da Lavoura, com capital de 4 mil contos, formado por um imposto sobre o cacau. Guinle teria reembolsado ao Tesouro apenas 300 contos em apólices, mas revendeu o banco por quatro mil contos aos franceses.

sucessor, Mangabeira manteve-se ao lado de Seabra sem contestar-lhe a autoridade.34 Durante o desgastado mandato de Antônio Moniz, e depois

de ter aliados seus perseguidos, em 1919, Mangabeira aceitou a convoca- ção da oposição para ingressar na campanha presidencial ao lado de Ruy Barbosa e contra o candidato apoiado por Seabra.

Mesmo a morte de empedernidos adversários, como José Marcelino, Severino Vieira e Araújo Pinho, falecidos em 1917, não impediria o cres- cimento da oposição. Novos nomes, inclusive aqueles que no passado re- cente foram considerados “diabretes do seabrismo”, passariam ao outro lado.35 Simões Filho e Otávio Mangabeira (os diabretes principais), ao lado

dos irmãos Calmon e Ruy Barbosa, todos ex-aliados recentes, formariam uma avalanche oposicionista à espera de mudanças na conjuntura para avançar sobre o enfraquecido bloco dominante.

Esse movimento, em conclusão, não se formou em função do per- sonalismo ou perfil autoritário de J. J. Seabra ou devido à incapacidade de Antônio Moniz. A decadência política do seabrismo também não seria obra dos adversários tradicionais ou da nova oposição (Lemos Brito, Au- relino Leal, João Mangabeira e outros). Seria plantada por mãos próprias, política e administrativamente, desde os primeiros anos do seu governo, em terreno amanhado pelos projetos e opções do seu bloco de poder e por suas alianças corporativas.

Nessa perspectiva, um ponto importante da reprovação à Seabra está no fato de ter priorizado investimentos improdutivos na aplicação dos recursos estaduais. Suas inversões na reforma da capital não redundavam em ampliação das fontes de riqueza, ou em modificações nas condições de vida da população. O efeito positivo dessas obras sobre a construção civil e o emprego foi minimizado por constantes interrupções e dificulda- des de pagamentos, expondo a desconexão entre a realidade do Tesouro e as prioridades adotadas.

Essa contradição programática era reforçada pelas opções políticas do governador. Em decorrência delas, os investimentos produtivos anun- ciados pela União até 1912 não tiveram avanços após Seabra romper com 34 Segundo o parcial ARAGÃO, Antônio Ferrão Moniz de. A Bahia e seus governadores na República. Bahia: Imprensa Official, 1923. p. 528-9, as divergências entre Seabra e Otávio Mangabeira teriam começado em 1915, quando Campos França e Raul Alves não foram reconhecidos no Congresso.

35 Em 1910, esses jovens, mais Antônio Moniz e seu primo Moniz Sodré, de forma irônica, eram assim chamados pelos adversários de Seabra. A Bahia, 3 set. 1909.

o governo federal. Depois, quando tardiamente volta a figurar na base de apoio do governo federal, essa situação não mais mudará. As dificulda- des impostas pela Guerra Mundial tornariam os recursos da União e os financiamentos externos mais escassos. Assim, os governos seabristas em muito pouco dotariam o Estado de políticas públicas que amenizassem suas mazelas sociais ou melhorassem sua infraestrutura material.

Abandono do roseiral: crise de hegemonia do