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Manuel Querino: operários e negros diante da desilusão republicana

Sabrina gledhill

Jornalista militante antes e depois da proclamação da República, Ma- nuel Raimundo Querino criou e comandou dois jornais para defender a causa dos operários, A província (1887-1888) e O trabalho (1892), denun- ciando a corrupção como a maior causa dos abusos sofridos pela classe operária – para ele, sinônimo de “classe oprimida”.1 Identificando-se com

o trabalhador e artesão, e demonstrando uma “inclinação em direção ao socialismo”2, Querino se preocupava com os direitos da classe operária

ainda em tempos de escravidão, quando a população livre e assalariada estava em franca minoria. Naquela época o mercado de trabalho era con- trolado por arrematantes de obras que monopolizavam as construções e ditavam os salários. A Liga Operária Baiana foi formada em 1875 para garantir salários dignos aos trabalhadores. Segundo seu amigo e biógrafo José Teixeira Barros:

[...] ninguém se empenhou tanto pelo levantamento das artes, na Bahia, como Manuel Querino e nenhum outro artista propugnou, com tamanha veemên- cia, a união da classe operária de modo que viesse a constituir uma força, uma vontade, um poderoso elemento de ação, no seio da coletividade. O seu

1 BURNS, E. Bradford. Manuel Querino’s interpretation of the African Contribution to Brazil.

The Journal of Negro History, v. LIX, n. 1, p. 80, 1974.

maior ideal era arredar o artista da tutela da política, que tudo avassala, torná -lo independente e autônomo.3

A Liga foi extinta e descaracterizada devido à interferência de po- líticos que, “[...] valendo-se do prestígio do poder e das promessas de efêmeras vantagens tiveram a sagacidade de abolir a nobre ambição do artista”.4 Quinze anos depois, o Partido Operário se organizou em 1890,

comandado por um diretório presidido por Gonçalo José Pereira Espi- nheira, com o lema: “Com ordem, firmeza e trabalho, chegaremos ao termo de nossas aspirações”. A diretoria do partido tinha nove membros, entre eles, Manuel Querino.5

Na vida política do Segundo Império, Querino demonstrou lealdade a seu tutor, o Bel. Manuel Correia Garcia, e seu “padrinho”, o Conse- lheiro Manuel Pinto de Souza Dantas, em engajar-se às causas do Partido Liberal – o republicanismo e o abolicionismo. Segundo Pereira6:

Da aproximação que procurou ter com o seu padrinho, Cons. Manuel Pinto de Souza Dantas, alguma coisa de útil conseguiu e se fez político liberal, de idéias livres, pelo que foi um dos que assinaram o manifesto republicano de 1870, com Virgílio Damásio, Lellis Piedade, Spinola de Athayde e outros do órgão quinzenal da Sociedade Libertadora Sete de Setembro, da qual eram redatores Frederico Marinho e Augusto Guimarães, ambos advogados e jor- nalistas nesta capital (1871-1874).

Embora não tenha chegado à eminência dos líderes da campanha abolicionista, entre eles Ruy Barbosa e José do Patrocínio, Querino in- gressou na Sociedade Libertadora Baiana e escreveu artigos publicados na

Gazeta da Tarde, tentando sensibilizar o público sobre as injustiças da es-

cravidão. Além de ser uma causa do Partido Liberal, para Querino, como afrodescendente,7 o abolicionismo também era uma causa muito pessoal: 3 QUERINO, Manuel. A Bahia de outrora. 3. ed. Salvador: Progresso, 1946. p. 6

4 Ibid.

5 CALMON, Jorge. Manuel Querino, o jornalista e o político. Salvador: Centro de Estudos Afro-O- rientais, UFBA, 1980.

6 PEREIRA, Gonçalo Athayde de. Prof. Manuel Querino: sua vida e suas obras. Bahia, Imprensa Oficial do Estado, 1932. p. 5

7 Querino sempre se autoidentificou como “mulato” ou “mestiço”, pelo menos na sua obra, mas foi caracterizado como “preto” ou “negro” pelos comentaristas de suas obras e outros, inclusive Arthur Ramos e Edison Carneiro. Mais recentemente, voltou a ser caracterizado como um “jornalista mulato”. ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeiro de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 39.

Foi estudando o caráter do preto que despertou para a defesa, para a luta em prol dos infelizes irmãos. Os aspectos do eito, as atitudes senhoris, seus processos incompatíveis com a dignidade humana, todo esse amontoado de fatos e de razões que justificam a jornada abolicionista, influíram sobremodo no seu espírito, desde os primeiros passos da juventude. Não lhe parecia justo

condenar a quem amava a liberdade. Um povo de tais sentimentos era merecedor

de melhor trato. Quantas vezes lhe ouvi largas considerações, em palestra íntima, sobre a grandeza moral do preto, do africano, que, escravo, molestado e sem direitos, encarava o cumprimento do dever fanaticamente.8

Querino trabalhou lado a lado com Frederico Marinho de Araújo e Eduardo Carigé, entre outros. Diferente de muitos de seus correligioná- rios, o abolicionista militante acreditava que a desigualdade entre negros e brancos devia-se apenas à falta de oportunidades para os primeiros. Em A raça africana, dá o exemplo dos religiosos negros observados por Padre Vieira na Ilha de Cabo Verde no século XVII: “Há aqui clérigos e cônegos tão negros como o azeviche, mas tão compostos, tão autoriza- dos, tão doutos, tão grandes músicos, tão discretos e bem morigerados que fazem invejas aos que lá vemos nas nossas catedrais”.9 E arremata o

argumento assim: “Do exposto devemos concluir que, somente a falta de

instrução destruiu o valor do africano”10. Portanto, defendia a Abolição segui-

da da preparação dos ex-escravos para o mundo do trabalho assalariado, porque, baseando-se na sua própria experiência, estava convicto que o ser humano não podia evoluir sem a educação. (Neste sentido, pode ser com- parado com Booker T. Washington, de quem era fervoroso admirador”11).

Infelizmente, para seu tremendo desgosto, isso não se concretizou. Nos Estados Unidos, os escravos emancipados em 1865, após a Guerra da Secessão, enfrentaram muitos obstáculos à conquista da cidada- nia plena, entre linchamentos, exclusão política e o sistema de segregação chamado “Jim Crow”, mas várias instituições de ensino, principalmen- te escolas normais e institutos profissionalizantes, foram criadas para os 8 VIANA, Antonio. Manoel Querino (conferência). Revista do Instituto Geográfico e Histórico da

Bahia, Salvador, n. 54, p. 305-316, 1928. p. 311.

9 QUERINO, Manuel. Costumes africanos no Brasil. Prefácio e notas de Arthur Ramos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938. p. 23.

10 Ibid.

11 Na apresentação de A raça africana, Querino indaga: “Quem desconhecerá, por ventura, o prestígio do grande cidadão americano Booker [T.] Washington, o educador emérito, o orador consumado, o sábio, o mais genuíno representante da raça negra na União Americana?”. Ibid., p. 22.

libertos por brancos paternalistas e filantrópicos, como o Coronel Samuel C. Armstrong, fundador do Instituto Hampton, cujo aluno mais eminen- te foi o próprio Booker T. Washington, ex-escravo e futuro fundador e reitor do Instituto Tuskegee.

Em seu livro As artes na Bahia, Querino elogia as iniciativas culturais do Império e vai além – até a abertura dos portos em 1808.12 Observa que

o Liceu de Artes e a Escola de Belas Artes foram criados na província da Bahia durante aquela época, uma vez que: “No tempo do império, honra é confessar, os presidentes da Província não se desdenhavam de proteger e animar a cultura artística”, sublinhando que o Liceu e a Escola de Belas Artes “eram contemplados também como instrumentos de educação do povo, de quem se respeitavam os intuitos nobres”.13 Referindo-se especi-

ficamente à educação profissionalizante, informa que os arsenais de mari- nha e de guerra produziram

operários distintos, de cujas aptidões deram sobejas provas, por ocasião da guerra com o Paraguai, quando o governo geral os removeu para o Rio de Janeiro a fim de trabalharem nas construções navais, sem nos referirmos às obras aqui executadas.14

O advento do “regime republicano” reverteu esse quadro, segundo Querino. Os artistas e artesões ficaram sem encomendas, os professores sem remuneração:

[...] um professor de escultura e outro de pintura da Escola de Belas Artes, retiraram-se para a Europa, abandonando o ensino, com pesar, por falta de pagamento. Se um governador bem intencionado favorece as artes, outro retira-lhe o favor.15

Mas sua crítica mais severa recai sobre o fechamento dos arsenais. Devido a essa medida:

[...] os menores aprendizes, os futuros operários, foram abandonados à prá- tica do vício; longe de ser uma medida econômica, tornou-se uma sórdida conveniência especuladora de uns tantos laboriosos e diligentes, aos quais foram

12 QUERINO, Manuel. As artes na Bahia. 2. ed. Bahia: Officinas do “Diário da Bahia”, 1913. p. 26

13 Ibid. 14 Ibid., p. 27. 15 Ibid., p. 28.

entregues todo o trabalho do exército e armada, para que a firma comercial do Rio de Janeiro, ‘Lage & Companhia’, explorasse, com a ganância da época, o que deveria ser distribuído por muitos e por preço módico. É por esse pro- cesso que a perversidade se ostenta e zomba dos infelizes heróis do trabalho, entregando ao abandono verdadeiras vocações artísticas.16