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Segundo Schwarcz, na apresentação de uma coletânea dos contos de Lima Barreto, outro jornalista afrodescendente que viveu o sonho e a desilusão da Primeira República, uma época que a historiadora caracteriza como “particularmente candente”:

[...] se é fato que o novo regime introduzia promessas, até então inexistentes, de promoção e inclusão social, a realidade logo se mostrou adversa. Afinal, se a escravidão acabara de ser abolida, o trabalho livre ainda não ganhara uma forma mais definida ou um enquadramento salarial [...]. Criava-se, assim, uma espécie de interregno, caracterizado pela falta de regras claras, mas também por excesso de arranjos de ordem pessoal [...]. Não se cumpriram, pois, as promessas de incorporação da população negra e escrava, assim como não se regulamentavam publicamente os contratos de trabalho e serviços. Ao contrário, reforçavam-se as relações clientelísticas, expandiam-se os laços de compadrio.17

Mais do que nunca, a classe operária precisava se unir e se defen- der. Querino candidatou-se a deputado federal pelo Partido Operário em 1890 e foi eleito delegado da classe no Congresso Operário Brasileiro, no Rio de Janeiro. No entanto, esta “[...] agremiação partidária composta somente de trabalhadores, funcionando disciplinadamente”, despertou novamente os temores da elite, principalmente os patrões e industriais. Intimidado, Gonçalo Espinheira anunciou que o movimento “não cogita- va a política” e o partido foi rebatizado como Centro Operário da Bahia. Segundo Jorge Calmon:18 “Adepto da aproximação dos trabalhadores, in-

centivador do ensino profissional, Manuel Querino há de ter aprovado calorosamente esta solução. Fora a menos pior”.

16 QUERINO, 1913, p. 29.

17 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Introdução. In:______. Contos completos de Lima Barreto. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 18-19.

18 CALMON, Jorge. O vereador Manuel Querino. Salvador: Câmara Municipal de Salvador, 1995. p. 29

Sua campanha jornalística e a capacidade de liderança demonstrada na frente do Partido Operário valeram-lhe a nomeação de membro ou “Intendente” do Conselho Municipal, a primeira legislatura municipal da cidade do Salvador, em 1890 ou 1891. Segundo Calmon: “[...] terá sido nomeado, entre 1890 e 1891, para suceder a um dos ‘Intendentes’ inicial- mente escolhidos pelo Governador do Estado[...]”.19 Pereira observa que: [...] a classe fez justiça à sua obra elegendo-o membro da Câmara Municipal, onde não desmereceu da confiança dos seus amigos e do eleitorado que o ele- geu. Ali foi ele contrário às leis de exceções, às reformas injustas, desconten- tando aos senhores da situação, mas ao mesmo tempo ganhando as simpatias daqueles que seriam prejudicados por tais reformas, que apenas serviriam para acomodar a amigos e protegidos da situação dominante. Nessa mesma ocasião, formou um bloco com outros e por uma indicação fez voltarem aos seus cargos vários funcionários dispensados por uma reforma injusta; e isso custou-lhe a não reeleição, retirando-se satisfeito para sua obscuridade [...].20

Voltou a ser Conselheiro Municipal em 1897 como primeiro suplente convocado, “[...] substituindo Dr. Deocleciano Ramos, que renunciara ao mandato”.21 Perdeu a eleição para suprir a vaga deixada pela renúncia, mas

permaneceu no Conselho até 26 de dezembro de 1899. No mesmo ano, renunciou à política devido às represálias dos “poderosos da ocasião”.22

Querino também foi funcionário público, exercendo vários cargos na Diretoria de Obras Públicas e depois na Secretaria de Agricultura, onde era “[...] reconhecido como um dos mais distintos funcionários pe- las suas habilitações técnicas e pelos seus predicados morais”.23 Segundo

Arthur Ramos, no prefácio a Costumes africanos no Brasil,

Manuel Querino foi bem o símbolo deste tipo de funcionário médio, traba- lhador e cumpridor de seus deveres, mas sem as regalias desta coisa incrível que no Brasil foi batizada com o nome de pistolão. Dito simplesmente, Manuel Querino foi um funcionário sem pistolão.24

Depois de deixar a vida política e ser reformado administrativamen- te de seu cargo na Secretaria de Agricultura em 1916, Manuel Querino 19 CALMON, 1995, p. 30.

20 PEREIRA, 1932, p. 11 21 CALMON, op. cit. 22 Ibid.

23 QUERINO, 1946, p. 9. 24 Id., 1938, p. 11.

retirou-se para sua casa em Matatu Grande e ao porto seguro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), a “Casa da Bahia”, para dedi- car-se aos trabalhos intelectuais já iniciados e pelos quais é mais lembra- do: uma série de pesquisas que são de fundamental importância para a história das artes plásticas no Brasil, a historiografia brasileira em geral e a formação da identidade negra neste país. Foi um dos únicos intelectuais de sua época, e provavelmente o primeiro intelectual afro-brasileiro, a reconhecer e divulgar a contribuição africana à civilização brasileira, teve um papel fundamental no resgate e documentação das contribuições dos africanos e seus descendentes ao desenvolvimento do Brasil e preservou um considerável montante de informações sobre as artes, artistas e arte- sões da Bahia. Igualmente, forneceu abundantes dados sobre os costu- mes, cultura e religião dos africanos e seus descendentes.

Mas não deixou de lado sua militância política. Mesmo quando se debruçava sobre as artes na Bahia, não media palavras quando criticava o governo que tanto se empenhara para instalar:

Não admira [...] que a Bahia, por maioria de razão, esteja desprovida do ele- mento artístico, por desprezo de seus governantes, os quais, acastelados na tão falada e não praticada economia dos dinheiros públicos, abandonaram a cultura das artes, ao tempo em que estes têm sido vertiginosamente desbaratados, nestes poucos anos de existência republicana, onde vivemos a tatear nas tre- vas, esquecidos de que ‘não se pode estar dentro da civilização e fora da arte’. No regime republicano, divorciado o poder público do elemento popular, tem refletido nas artes o lamentável choque do desprezo. Como que assisti- mos a espetáculo desdenhoso em que o mando desordenado das conveniên- cias pessoais desalojou o acendrado patriotismo de outras eras.25

Querino observa que o único país que “nunca deixou de ter escul- tores distintos” foi justamente a França.26 Talvez visse na “liberté, égalité,

fraternité” o ambiente mais propício para o florescimento da arte.