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É preciso contextualizar a ‘choromania’ em seu tempo, citando alguns fatores sócio-econômicos que justificam esse ‘renascimento’. Durante a primeira metade da década de 70 ocorreu o chamado ‘milagre econômico brasileiro’, isto é, a entrada de diversas multinacionais no país, criando novos empregos para a classe média e permitindo um aumento do consumo de eletrodomésticos e supérfluos, tais como televisores, discos de música e ingressos para shows. A vitória do Brasil na Copa do Mundo de 1970 contribuiu para aumentar o sentimento de euforia da população e o governo militar criou slogans fortemente nacionalistas, tais como ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’. Essa prosperidade econômica, usada pela ditadura para conquistar a confiança e o apoio político da classe média, foi no entanto “financiada às custas de gigantescos empréstimos internacionais, sob a batuta do ministro Delfim Neto, que permitiu ao país tornar-se, na primeira metade dos anos 70, uma das maravilhas econômicas do mundo” (DIAS, 2007, p. 56). Isso significa que o ‘milagre’ era um fenômeno artificial, criado a partir do endividamento do país e da abertura do mercado brasileiro às empresas multinacionais.

No campo da cultura, a produção estrangeira, principalmente norte-americana, chegou ao Brasil de forma massiva, juntamente com carros, televisores, eletrodomésticos e outros bens de consumo. Os novos televisores exibiam programas importados dos Estados Unidos, tais como seriados ‘enlatados’ e novelas. O rádio não tocava mais música brasileira, substituída pelo rock e pela Black Music. Essa ‘invasão cultural’ foi mal vista por intelectuais, estudantes e militantes da oposição, que a consideravam uma perda das raízes e da identidade brasileira.

Durante a segunda metade da década de 70, depois da chamada Crise do Petróleo de 1973, a classe média começou a perceber que o ‘milagre’ não duraria para sempre. A inflação subiu, a crise econômica cresceu e já não era possível consumir desenfreadamente. O descontentamento da classe média aumentou e o governo começou a perder sua base de apoio, uma vez que a dívida externa crescia cada vez mais, pressionando a inflação e tornando impossível manter o nível de vida conquistado na primeira metade da década. Esse descontentamento com a situação econômica fez com que o povo começasse a se aperceber da real situação política do país: repressão, censura a jornais e às artes em geral, prisões arbitrárias e exílio de intelectuais e artistas contrários ao regime.

Se, por um lado, a década de 1970 no Brasil foi marcada pela censura e pelo policiamento constante sobre as artes e os artistas considerados subversivos, ao mesmo tempo percebe-se, por parte deles e de intelectuais, uma grande vontade de transgredir esse panorama. Diversos movimentos e formas de pensar a família, a sociedade e a si próprio difundiram-se entre os jovens, cujo principal mote era que alguma mudança se fazia necessária, uma vez que “o mundo como estava montado não servia mais” (DIAS, 2003, p. 42). Desde a decretação do Ato Institucional no. 5, em 13 de dezembro de 1968, sentiu-se uma estagnação da criação artística, provocada pelo medo da censura ou de represálias por parte do governo, caso a obra fosse considerada subversiva ou ofensiva à moral e os bons costumes. Zuenir Ventura, no texto O Vazio Cultural, publicado na Revista Visão de Julho de 1971, descreve a situação da cultura naquele período:

O quadro atual, ao contrário, oferece uma perspectiva sombria: a quantidade suplantando a qualidade, o desaparecimento da temática polêmica e da controvérsia na cultura, a evasão de nossos melhores cérebros, o êxodo de artistas, o expurgo nas universidades, a queda de venda dos jornais, livros e revistas, a mediocrização da televisão, a emergência de falsos valores estéticos, a hegemonia de uma cultura de massa buscando apenas o consumo fácil (VENTURA, 2000, p. 41).

Dessa forma, os artistas sentiam-se tolhidos ou amarrados na criação de suas obras, enquanto se estruturava no Brasil a indústria cultural, com sua ‘cultura de massa buscando apenas o consumo fácil’. Um dos sintomas da organização dessa indústria foi a grande popularidade que as telenovelas tiveram naquela época. A novela é um produto criado visando o entretenimento e a distração do público, e não aborda assuntos relativos à política, sexualidade ou que digam respeito à sociedade com a profundidade que tais assuntos merecem. O Almanaque Anos 70, publicação de 2006 da jornalista

Ana Maria Bahiana, faz um rápido panorama sobre a década de 70 e sua produção artística, e o que se encontra em suas páginas são principalmente produtos da indústria cultural: sobre música, fala-se muito do rock, de shows de Santana (1971), Alice Cooper (1974), Rick Wakeman (1975) e Joe Cocker (1977) no Brasil, além do surgimento do rock nacional, com bandas como o Som Nosso de Cada Dia, O Terço, Bixo da Seda, Som Imaginário, Made in Brazil, A Patrulha do Espaço, os Mutantes e Raul Seixas; fala-se também sobre o ‘sambão jóia’, representado por intérpretes como Benito di Paula; sobre a MPB, que finalmente se consolida, consagrando intérpretes como Elis Regina e compositores como Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso, que em 1972 haviam voltado do exílio e protestavam contra o regime através da metáfora ou do deboche em suas obras; sobre os novos intérpretes nordestinos, tais como Fagner, Belchior, Elba Ramalho e Alceu Valença; e principalmente sobre a Black Music norte- americana, que mais tarde será chamada de música dançante ou discotéque. Essa duas últimas foram provavelmente as manifestações musicais de maior sucesso na segunda metade dos anos 70. Eram tidas como representações de tudo o que era moderno, interessante e ‘na moda’ pela juventude burguesa. Ouvir e dançar a discotéque era um sinal de modernidade, de ajuste à nova era que se apresentava. Enquanto isso, a juventude politizada ouvia MPB e os intelectuais odiavam a música importada, porque ela não levava a nenhum tipo de reflexão e conseqüentemente a nenhuma mudança do

status quo.

O chamado ‘Boom do Choro’ ou ‘Choromania’ aconteceu dentro deste cenário, e pode ser justificado, por um lado, como uma tentativa de luta pacífica contra a indústria cultural baseada em produtos estrangeiros que estava se formando. Se o que indústria oferecia era de qualidade ruim, uma boa estratégia de combate seria a recuperação da música tradicional, com seus valores e características nacionais. Por outro lado, apesar de ter sido um fenômeno que surgiu entre músicos e intelectuais cariocas, foi bastante aproveitado por essa mesma indústria cultural, uma vez que as gravadoras se apressaram em lançar a maior quantidade de discos de choro possível, visando aproveitar a ‘moda’ para vender e obter lucro fácil. De qualquer forma, o ‘renascimento’ do choro representou uma volta às raízes da música instrumental brasileira, que estavam esquecidas depois do advento da bossa nova. Para todos aqueles que queriam a volta do choro, ele estava ‘nas sombras’, isto é, escondido em algum lugar bem longe da televisão, do rádio e do público, o que não significava que não existisse mais. Seria preciso a união de diversas forças – músicos, jornalistas,

intelectuais, amantes da música brasileira, entusiastas, pesquisadores - para que ele reaparecesse em São Paulo e fosse fundado o Clube do Choro.