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No show do dia 29 de novembro de 1977, no Teatro Municipal, o Clube do Choro recebeu as chaves de sua sede definitiva, na Alameda Jaú, 2000. Porém, a inauguração oficial do prédio só ocorreu no dia 03 de dezembro. A nova sede contava com espaço e acomodações mais adequadas, o que fez com que os dirigentes do Clube começassem a pensar nas novas possibilidades que essas acomodações poderiam proporcionar. Começou-se a pensar em um arquivo de choro, que contaria com mais de 400 discos, assim como em uma Escola de Choro, que funcionaria na sede e traria toda semana um chorão experiente, que passaria seus conhecimentos a iniciantes. As idéias começaram a brotar e a ser desenvolvidas pelos sócios. Algumas delas se concretizaram, outras não.

Os espaços tradicionais do Clube do Choro, Café Paris e bar Quincas Borba, continuavam a ter espetáculos toda a semana, às segundas e quintas-feiras. O Bar do IAB desligou-se do Clube do Choro. Sergio Gomes da Silva conta que o Clube tinha um acordo com o jornalista Paulo Markun, que administrava o bar: tudo o que ele faturasse com bebidas e consumação era dele; a bilheteria serviria para pagar os músicos. Porém, percebendo que os shows atraíam muita gente, cerca de 500 pessoas por apresentação, o administrador resolveu romper o acordo e anunciou que ficaria também com a bilheteria, pagando um cachê fixo para os grupos que se apresentassem no Bar. Isso desagradou à diretoria do Clube, pois rompia o acordo de confiança que ela tinha com os músicos: ninguém era patrão de ninguém, ninguém pagava salário a ninguém. Os

shows e outros eventos aconteciam porque cada um colaborava com sua parte, sem hierarquia. O aspecto democrático sempre foi muito importante para os membros do Clube. Por esse motivo, o Bar do IAB passou a ter programação musical própria, sem conexão com o Clube do Choro (SILVA, 2007).

Em compensação, no início de 1978 o Clube conquistou o Bar Latino Americano e o Teatro São Pedro, na Barra Funda. A série de shows no São Pedro começou no dia 29 de abril de 1978, com o espetáculo ‘Na Zona do Choro’, onde se apresentaram Paulinho Nogueira86, Entre Amigos, Mistura e Manda, Bachorando e Conjunto Pacífico. Dentro desse espetáculo aconteceu uma roda de choro em homenagem ao multi instrumentista Garoto. Garoto seria a segunda pesquisa do Departamento de Arquivo e Memória do Clube, uma vez que o trabalho sobre Armando Neves estava concluído e preparava-se o lançamento do Lp em homenagem ao compositor. Os shows do Teatro São Pedro contavam com o apoio da Secretaria Estadual de Cultura, Ciência e Tecnologia.

Com a abertura da nova sede, passou-se a ter rodas de choro todos os sábados e às vezes aos domingos. Essas rodas eram abertas ao público e gratuitas: qualquer pessoa que estivesse passando pela rua e se interessasse em conhecer o Clube era bem vinda. Nesse espírito de congraçamento e amizade, foram planejadas as comemorações do primeiro aniversário do Clube. Essas comemorações compreenderiam shows no Teatro Bandeirantes87 e uma grande roda de choro na rua, em frente à sede do Clube: a Rua do Choro.

A Rua do Choro foi um evento inédito até então. O Clube conseguiu a colaboração do DSV88, que interditou o quarteirão da Al. Jaú entre a Rua da Consolação e a Av. Rebouças num domingo, dia 28 de maio de 1978. As mesinhas do Clube, que tradicionalmente ficavam sobre a calçada, foram espalhadas pela rua e foram convidados todos os grupos associados ao Clube, com o objetivo de fazer uma grande roda de choro ao ar livre e de graça. A festa começou às 13 horas e foi até à meia-noite, com grupos se revezando e tocando. O objetivo era mostrar o trabalho do Clube e agregar mais sócios e colaboradores, além de comemorar um ano de atividades.

86 Paulo Arthur Mendes Pupo Nogueira, nascido em Campinas, SP, em 08/10/1929 e falecido em São

Paulo, em 02/08/2003. Violonista e compositor, inventor da craviola. Ver Enciclopédia da Música

Brasileira: Erudita, folclórica e popular. São Paulo: Art Ed., 1977, p. 538.

87 Teatro pertencente ao Grupo Bandeirantes, localizado na Avenida Brigadeiro Luiz Antonio, Bela Vista,

SP. Foi inaugurado em 12/08/1974.

88 Departamento de Operação do Sistema Viário, era o órgão da prefeitura responsável pelo controle do

A Rua do Choro, em frente à sede do Clube, na Al. Jaú, 2000 (1978). Em primeiro plano, Benjamin Silva Araújo. Fonte: acervo ‘Oswaldo Luiz Vitta’.

Uma matéria da Folha Ilustrada de 30 de maio de 1978 dá conta de cerca de cinqüenta ou sessenta músicos presentes com ‘bandolins, violões e cavaquinhos, formando rodas de pequenas orquestras’. Essas rodas eram abertas às pessoas que passavam na rua, se interessavam e se juntavam aos músicos que estavam tocando. A mesma reportagem traz o depoimento de alguns transeuntes que se juntaram às rodas:

Eu estava descendo a Consolação e vi essa turma aqui no meio; fui em casa disparado pegar minha flauta – eu moro ali na Bela Cintra – e estou aqui (...) É a primeira vez que venho aqui, mas eu sabia que todos os domingos o pessoal se reunia no Clube. Hoje, aqui, eu só toquei com gente nova. Toquei com mais de dez e não conhecia ninguém.

A reportagem fala ainda do espírito de união e solidariedade que brotou na festa. Apesar de haver um quiosque de uísque BB servindo doses gratuitas a todos, não havia ninguém bêbado, provocando brigas ou reclamando. O compositor Paulo Vanzolini, presente à festa, definiu o espírito que tomava conta dos participantes:

Esta festa significa muitas coisas mas acho que a primeira é um anseio coletivo que se cristaliza. Muita gente estava querendo uma rua de lazer como território livre para a música – que música é o melhor lazer que existe. Depois que não é meia dúzia de

músicos que estão aqui! É uma tremenda heterogeneidade realmente fascinante. Mais: há uma tremenda cordialidade e amabilidade geral. Nem parece gente de cidade grande. Até pode dizer aí no seu jornal que a delicadeza e a boa vontade imperam (Folha de São Paulo, 30/05/1978).

A música foi o elemento agregador entre os participantes da Rua do Choro. Pessoas que não se conheciam tocaram juntas e músicos amadores tiveram a oportunidade de tocar com outros mais experientes. O Clube sempre havia proporcionado esse tipo de contato, mas ele acontecia geralmente durante shows em casas noturnas:

Aquilo para mim é Clube do Choro. Um cara olhando o outro tocar. Eu me lembro. Eu fiz uma loucura, uma vez, o Waldir Azevedo fez um show em São Paulo. E um dos produtores do show era um dos moleques que trabalhavam com a gente, pupilo do Clube, o Luiz Paulo (...) Aí como ele era meu amigo, jogava bola comigo, eu falei: ‘leva o Waldir Azevedo lá no Café Paris, vamos jantar’. Ele acabou levando. Aí tinham três cavaquinistas lá na roda do Café (...) Tinha um cavaquinista tocando, não me lembro de qual grupo, e mais dois caras na platéia. Quando eu me lembro disso eu dou risada, porque esse era o espírito do Clube do Choro. O Wadir Azevedo então vai lá, e ele era maravilhoso, uma alma generosa, como a maioria dos que estavam lá (...) Ele subiu naquele palco ridículo, vamos falar a verdade, um músico da estatura dele, criador de ‘Brasileirinho’, ‘Delicado’, o cara que inventou como tocar solo de cavaquinho...Ele subiu lá e tocou com a molecada, deu uma canja, uma ‘jam’! É a mesma coisa que o Jimi Hendrix estar tocando guitarra e sobe toda a molecada pra tocar com ele. É a mesma coisa! (VITTA, 2008).

Com a festa de rua, o contato entre chorões experientes e iniciantes foi direto, sem a necessidade de pagar ingresso ou se deslocar para muito longe de casa. A Rua do Choro também foi aprovada pelos vizinhos, que se sentiram felizes pela movimentação e pela integração que a festa proporcionou. A estudante Sandra descreveu para a reportagem da Folha o sentimento dos vizinhos:

Eu adorei essa integração da comunidade. Não teve aqueles olhares do tipo ‘quem é você?’ como existem em muitos clubes fechados por aí. Fomos muito bem servidos, o pessoal todo muito amável. Parece até que a gente se conhecia há tempos. Minha mãe e eu ainda não somos sócias mas levamos uns bolinhos pra lá e agora estamos pensando em organizar uma festa de São João, como ela já disse. Olha! É nessas horas que se descobrem os grandes artistas e as grandes cozinheiras. Outra coisa que eu gostei foi isso de fechar a rua. Parou tudo e nós passamos a nos mexer (Folha de São Paulo, 30/05/1978).

Essa declaração dá conta dos sentimentos de isolamento e angústia que o Clube procurou combater desde seu início. O ano de 1978 marca o início do processo de Abertura política. Os reflexos da repressão ainda eram sentidos pelas pessoas e se manifestavam no medo de estabelecer novos contatos e amizades. A Rua do Choro

proporcionou esse contato entre estranhos, tendo a música como elemento em comum. Segundo a reportagem da Ilustrada, ‘pessoas que não se conheciam passaram a conversar e beber ao som da música’. Músicos iniciantes tiveram contato com veteranos do choro. Ainda que durante apenas algumas horas, a festa dos chorões agregou muita gente; provocou o surgimento de novos contatos sociais e serviu de alívio para a pressão política vivida pelos paulistanos.

O show de aniversário aconteceu no dia 31 de maio de 1978, no Teatro Bandeirantes. Apresentaram-se Zimbo Trio, Conjunto Atlântico, Conjunto Pacífico, Francisco Araújo e Inácio do Cavaco89, Entre Amigos, Bachorando e João Dias Carrasqueira, Choro Roxo, Benjamin Silva Araújo e Abel Ferreira. A apresentação ficou a cargo de Chico de Assis90, e os ingressos variavam de Cr$ 25,00 para sócios, a Cr$ 50,00 para não-sócios. Além dos músicos, houve a participação de pesquisadores de música, como José Ramos Tinhorão e Miécio Caffé91, que falaram sobre choro e música popular brasileira, nos intervalos do show.

Convite do Show de primeiro aniversário do Clube no Teatro Bandeirantes (1978). Desenhado por

Laerte. Fonte: Acervo ‘Guta do Pandeiro’.

89 Cavaquinista de formação autodidata, parceiro do violonista Aymoré. Integrou, juntamente com o

violonista Francisco Araújo e a flautista Ivone Melo, o Trio Brasília, fundado em 1977.

90 Francisco de Assis Pereira, nascido em São Paulo, SP, em 10/12/1933. Dramaturgo, diretor de teatro,

ex-professor da FAAP e da ECA/USP.

91 Nascido em 10/07/1920 em Juazeiro, Bahia. Ilustrador, desenhou capas para discos de Francisco Alves,

Gal Costa e outros nomes da música popular brasileira. Sua caricatura de Carmen Miranda é uma das imagens mais conhecidas da cantora. Além de desenhista, era pesquisador de música brasileira e teria se tornado o segundo presidente do Clube do Choro, se este tivesse continuado suas atividades.