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Enquanto o Clube do Choro crescia e promovia shows pela cidade, empresários e produtores de rádio e televisão passaram a se interessar pelo gênero, que estava se tornando um fenômeno bastante conhecido do grande público. Na esteira desse sucesso, a Rede Bandeirantes de Televisão lançou, de 04 de julho a 20 de agosto de 1977, as inscrições para o Primeiro Festival de Choro da televisão brasileira, o ‘Brasileirinho’. Poderiam concorrer músicos profissionais e amadores, desde que apresentassem composições próprias e inéditas. Cada concorrente poderia inscrever até três músicas, e deveria mandar uma fita cassete com o título da música, o nome do autor e gravação da música, que poderia ou não ter letra. Os prêmios oferecidos eram de Cr$ 20.000,00 para o quinto lugar, indo até Cr$ 80.000,00 para o primeiro colocado. Seriam também oferecidos troféus de melhor instrumentista, intérprete e revelação do Festival. O Festival foi uma idéia do produtor Roberto de Oliveira e foi apresentado pelo radialista Fausto Canova.

O júri era presidido por Marcus Pereira e composto por Mozart de Araújo, Guerra-Peixe, Horondino Silva (Dino Sete Cordas), Tárik de Souza, Maurício Kubrusly, Roberto Menescal, Cláudio Petraglia, Sérgio Cabral, José Ramos Tinhorão e Lúcio Rangel. Houve mais de 1200 músicas inscritas, mas apenas 36 foram selecionadas. As eliminatórias ocorreram às terças-feiras, nos dia 04, 11 e 18 de outubro, e a final aconteceu no dia 25 do mesmo mês. A cada semana eram apresentadas doze músicas, entre as quais quatro eram selecionadas para participar da grande final. Os autores poderiam escolher se eles mesmos apresentariam suas músicas ou se mandariam um intérprete em seu lugar.

A homogeneidade do júri do ‘Brasileirinho’, formado por músicos, críticos musicais e pesquisadores de música podia fazer crer que a decisão sobre as classificadas seria fácil ou unânime. Porém, logo na primeira eliminatória o grupo A Cor do Som apresentou ‘Espírito Infantil’ de Maurício M. de Carvalho, um choro tocado com teclados, instrumentos eletrônicos e com claras influências de jazz e rock progressivo.

Na segunda eliminatória, foi a vez do presidente do Clube do Choro, Benjamin Silva Araújo, apresentar seu ‘Choro Cromático’, interpretado pelo pianista Hamilton Godoy, do Zimbo Trio. Ambas as composições chamaram a atenção e provocaram enorme polêmica, uma vez que fugiam do espírito do choro tradicional: ‘Espírito Infantil’ apresentava influências de jazz e um instrumental nunca antes utilizado, ao passo que o ‘Choro Cromático’, como o próprio nome diz, era um choro composto a partir da escala cromática, isto é, a escala formada por intervalos de semitom. Ambos os procedimentos eram novidades e chocaram muita gente, que não entendeu como as duas peças foram aprovadas para as eliminatórias, e depois disso, passaram à final.

A polêmica se instalou nos jornais após a classificação das duas músicas, e os jurados tomaram suas posições: de um lado, aqueles que achavam que o choro deveria se reciclar e incorporar novos elementos, tais como Maurício Kubrusly e Sergio Cabral; do outro, aqueles que acreditavam que as novidades apresentadas eram uma corrupção ou descaracterização do choro. O crítico José Ramos Tinhorão foi o que mais defendeu essa postura, chamando os ‘progressistas’ de elitistas, eruditos e acusando-os de não compactuar com o espírito tradicional do gênero. Durante o mês de outubro de 1977, a platéia se dividiu entre aqueles partidários do tradicionalismo, que apelidaram a música de Benjamin Silva Araújo de ‘Choro Cromado’, choro erudito e ‘Aí, Beethoven!’ e aqueles que preferiam o choro inovador e com a incorporação de elementos modernos. O fato é que, tanto o ‘Choro Cromático’ quanto o ‘Espírito Infantil’, apesar de trazerem novidades inaceitáveis na opinião de alguns, eram excelentes composições, o que fez com que passassem à final. Nenhuma delas venceu o Festival, e ao final parece que a ala conservadora prevaleceu na disputa: o choro vencedor foi uma música escrita dentro do padrão mais tradicional, ‘Ansiedade’, de Rossini Ferreira, que para alguns trazia ecos de Jacob do Bandolim.

Trio D’Angelo, ligado ao Clube do Choro, no Festival ‘Brasileirinho’, em 1978. Fonte: Acervo ‘Oswaldo Luiz Vitta’.

Apesar do Clube do Choro de São Paulo não estar diretamente envolvido na produção do festival, ajudou a divulgar e até mesmo inscreveu alguns participantes. Através de seu presidente, o Clube esteve bem no centro da polêmica ‘tradição versus inovação’, que tomou conta dos jurados. Os membros do Clube fizeram questão de apoiar seu presidente, uma vez que um dos objetivos das pesquisas do Departamento de Arquivo e Memória era conhecer o passado para modificar o futuro. Além disso, foi através do Clube que Araújo conheceu o intérprete de seu choro no Festival:

E ele (Benjamin Silva Araújo) marcou um ponto maravilhoso: era um senhor que fazia choros modernos. Ele fez, no piano, um negócio chamado ‘Choro Cromático’. Na escala cromática, ninguém conseguia tocar (...) E ele inscreve o ‘Choro Cromático’ no primeiro Festival de Choro da Bandeirantes, ‘Brasileirinho’(...) e a gente também tinha uma relação muito louca com o Zimbo Trio. O Zimbo Trio participava do Clube do Choro, nos shows, de graça, tocando, com a gente. Um grupo ligado à bossa nova, ao ‘Fino da Bossa’, tocando choro?! Eles adoravam choro (...). Aí nós fizemos uma ponte entre o Benjamin e o Amilton Godoy, e ele falou: ‘vou tocar isso aí, vou estudar e vou tocar’. E ele é que tocou no Festival, o ‘Choro Cromático’ de Benjamin Silva Araújo (VITTA, 2008).

Alguns músicos, tais como Paulinho da Viola, manifestaram-se a favor das inovações. Aliás, Paulinho já havia alertado anteriormente os chorões mais tradicionais para o fato de que a sobrevivência do gênero estava na inovação e na renovação de suas idéias. Os chorões não deveriam desconfiar das mudanças; ao contrário, deveriam

aceitar novos instrumentos e arranjos. Paulinho citou o caso do jazz, que passou por muitas modificações e acabou se consolidando como um dos gêneros de música mais consumidos na América do Norte:

Nos Estados Unidos o jazz evoluiu porque os músicos fazem todo tipo de experiências, e ele está enriquecendo apesar do jazz tradicional ter permanecido. Os grupos de chorões devem ser abertos a novas fórmulas. Se alguém quiser colocar um instrumento elétrico no chorinho, porque não deixar? (Folha de São Paulo, 30 de maio de 1977).

Essa declaração sintetiza o sentimento da ala progressista do choro: era necessária uma renovação do gênero, mas sem deixar para trás o choro tradicional. Assim como o jazz, uma coisa não excluiria a outra: haveria inovações, mas o choro do passado, composto à maneira antiga, continuaria sendo tocado.

Os vencedores dos primeiros lugares do Festival Brasileirinho foram ‘Ansiedade’, de Rossini Ferreira e ‘Meu pensamento’, de Jessé Lima, composições que não traziam grandes inovações na forma ou na melodia. Apesar de serem bons choros, alguns críticos ficaram um pouco decepcionados com os jurados, por sua falta de abertura e receptividade para inovações.

O Clube do Choro pediu à Rede Bandeirantes, através de carta, as gravações dos inscritos no Festival, com o objetivo de documentar cada uma das músicas e guardá-las no arquivo do Departamento de Arquivo e Memória. O produtor Roberto de Oliveira, em nome da emissora, respondeu que não seria possível enviar as gravações naquele momento, mas que elas seriam enviadas no momento oportuno (22/11/1977). A emissora acabou não enviando o material, preferiu guardá-lo. No final de 1977 foi lançado um Lp com as doze finalistas do concurso, editado pela Clack/Bandeirantes85.

No ano seguinte, a Bandeirantes lançou o segundo Festival de Choro, ‘Carinhoso’. O regulamento era semelhante ao do primeiro Festival, e as eliminatórias aconteceram nos dias 03, 10 e 17 de outubro de 1978, e a final no dia 24 do mesmo mês. Para o segundo festival, não foram aceitas composições cantadas, e os prêmios aumentaram: o quinto lugar levaria Cr$ 30.000,00 e o primeiro, Cr$ 100.000,00. O júri foi o mesmo do primeiro festival.

O ‘Carinhoso’ não teve a mesma repercussão do ‘Brasileirinho’. Não houve um número tão alto de inscritos, mas ainda assim a platéia do Teatro Bandeirantes, onde foram realizadas as eliminatórias, ficou lotada. Nenhum choro com influência de jazz ou

com novidades harmônicas e melódicas foi selecionado. Assim como no primeiro festival, o Clube do Choro participou de forma secundária, apenas divulgando o evento entre seus sócios e documentando as eliminatórias. O ‘Carinhoso’ aconteceu na época em que o Clube estava lançando o Lp de Armandinho Neves. Logo, todas as energias e atenções de sua diretoria e dos sócios estava voltada para o Lp e sua divulgação.