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CAPS i atende crianças e adolescentes com transtornos mentais graves e persistentes e os que fazem uso de crack, álcool e outras drogas Serviço aberto e de caráter

4. A CONSTRUTIVIDADE DO PROJETO TERAPÊUTICO: DAS NORMAS ÀS RENORMALIZAÇÕES

4.2 As tarefas e os processos de trabalho no CAPS ad: a Clínica de Redução de Danos

4.2.3 A Clínica da Referencia: principais desafios enfrentados na condução dos casos

4.2.3.2 Aspectos limitantes ou dificultadores dos processos terapêuticos

4.2.3.2.1 Co-morbidade psiquiátrica

Segundo o CID 10 (OMS, 2000), os transtornos mentais são divididos em dez eixos: orgânicos; relacionados ao uso de substâncias psicoativas; esquizofrenias; transtornos esquizotípicos e delirantes; do humor; neuróticos, relacionados ao stress e somatoformes; associados com distúrbios fisiológicos; de personalidade; retardo mental; relacionados ao desenvolvimento psicológico; que aparecem na infância e na adolescência e não- especificados.

No discurso dos profissionais foi possível identificar dois tipos de co-morbidade psiquiátrica que dificultam a condução dos casos: psicoses graves e demenciação decorrente do uso prolongado. Para os profissionais, psicoses graves referem-se a “psicótico; borderline; esquizofrenias, paranoia” (Diário de Campo). Nesses casos, ficou definido em reunião de equipe que o usuário deve ser encaminhado para o tratamento em CAPS III ou Centro de Saúde, entretanto,

Nós temos portador de sofrimento mental aqui. Você estava lá na hora que a menina falou: „está dormindo debaixo da cômoda‟. Ele é um psicótico e a gente tem outros, uns mais graves, outros menos graves, mas assim, a crise, acho que ele também não fica, sabe assim? É difícil você acolhê-lo com esse grupo. Ele acaba sofrendo... é diferente, acho que a proposta até do tratamento... ele tem algo que acaba...Ah, não é muito efetivo... Eu fico achando que a gente acaba não sendo muito efetivo. Você propõe muitas coisas que ele não sustenta. A questão do Fulano é um ponto de honra para a gente trabalhar de alguma forma porque é um caso de difícil manejo, ele está aqui dentro e a sensação que tenho é que ele tá piorando. Ele não está melhorando. O que a gente tá ofertando...Não sei se nos outros CAPS seria diferente... Até pela lógica da Redução de Danos, trabalhar com menos limite, deixando ele com uma certa liberdade maior. Pelo fato de ser psicótico, acaba que a gente trata ele diferente querendo ou não ( P1).

Por outro lado, os casos de demenciação pelo uso são acolhidos, embora se considere que pouco se beneficiam do tratamento nos moldes em que é planejado.

Uma outra situação que dificulta e aí é mais especificamente da clínica da dependência química mesmo que tem alguns casos meio sem cuidado, que pode depender de droga, é usuário de droga. Tem uma discussão: qual lugar que é o lugar dele? Ah, se ele usa droga tem que ser aqui. Mas às vezes, ele chega aqui, fica totalmente deslocado porque, muitas vezes, não dá para você exigir o mesmo que dos outros pacientes e aqui não tem a mesma contenção que tem no CAPS. São pacientes muito difíceis de lidar. Casos de dependência grave. Pacientes demenciados pelo uso de álcool, não tem autonomia hoje. Eu pego ele na PD, coloco ele aqui um tempo, o dia que eu tiro, não vem mais. Então, qual é o lugar dele? Para muitas pessoas, ele não pode ficar aqui, para outras, aqui é o lugar. Esses casos são mais difíceis (P3). Observou-se que a dificuldade em lidar com esse tipo de usuário não pareceu ser só do serviço, mas também da rede de atenção psicossocial, no que concerne a localizar qual seria o melhor lugar para seu tratamento. Essa afirmação baseia-se na análise das reuniões de supervisão técnica, mas também nas falas dos profissionais:

Então, tem uns que estão aí para poder avaliar diagnóstico. A gente fica com eles um tempo mais. Já fizemos alguns acordos com alguns CAPS, não achei que tenha sido realmente produtivo para o paciente. Efetivamente, fez nenhum efeito, paciente ficava o tempo todo: que hora que eu vou embora, que hora que eu vou embora, uma inadequação tal, mas eles bancando que era um caso de alcoolismo. Esquizofrenia braverésima, perda residual de uma esquizofrenia muito jovem. Não acho que fez efeito nenhum, nesse caso especificamente (P1).

O caso em questão, assim como outros similares, foi discutido exaustivamente nas reuniões, no sentido de pensar estratégias de condução. Segundo o Modelo de Redução de Danos, considerava-se haver algum ganho, uma vez que o usuário frequentava o serviço espontaneamente, se alimentava e se mantinha abstinente durante, pelo menos, um período do dia. No entanto, isso não era considerado suficiente. Pressupunha-se a necessidade de restituir laços sociais, além de desenvolver, no mínimo, um maior controle sobre o uso.

No que se refere aos transtornos de humor, o consenso sobre o local ideal para o tratamento não se mostrou tão evidente, embora houvesse verbalizações de que “deveria” ser igualmente encaminhado (Diário de Campo). Já quanto aos casos de depressão, detectou-se indícios de que sintomas depressivos são considerados quase como aspectos inerentes às dependências.

Silveira e Jorge (1999) desenvolveram um estudo cujo objetivo foi avaliar a ocorrência de transtornos psiquiátricos em farmacodependentes através do método de Critérios Diagnósticos para Pesquisa que foi aplicado a uma amostra de 50 farmacodependentes do sexo masculino, selecionados aleatoriamente entre os pacientes de um serviço de tratamento ambulatorial para dependentes químicos. Os resultados apontaram que prevalências de transtornos mentais ao longo da vida e no momento da entrevista foram de 77% e 72%, respectivamente. Trinta e dois por cento dos pacientes apresentavam-se deprimidos por ocasião da avaliação e 44% preencheram critérios diagnósticos para depressão na vida. Os transtornos depressivos precederam a instalação da farmacodependência em 77,3% dos pacientes. Outros transtornos psiquiátricos apareceram em proporções maiores do que as observadas em estudos envolvendo população geral e confirmaram resultados de estudos similares realizados anteriormente por outros pesquisadores. Os autores afirmam que a presença de transtornos psiquiátricos é um dos fatores que compromete a eficácia das diversas modalidades de intervenção terapêutica junto à farmacodependentes e, nesse sentido, o diagnóstico adequado desses transtornos associados possibilita intervenções que facilitam a interrupção do comportamento farmacodependente e diminuem a incidência de recaídas. Finalmente, os autores apontam que os baixos índices de eficácia observados no tratamento de farmacodependentes poderiam, ao menos parcialmente, ser atribuídos a pouca atenção dispensada a aspectos relativos à co-morbidade psiquiátrica nesses pacientes.

Ribeiro, Laranjeiras e Cividanes (2005), através de revisão de literatura, demostram que o uso indevido de substâncias psicoativas pelo paciente bipolar é extremamente comum e mais frequente do que o observado na população geral. Os autores citam estudos que denotam índices de co-morbidade associados ao uso indevido de álcool de 60% a 85% nesta população ao longo da vida (REGIER et al., 1990; VIETA et al., 2001) e o consumo de outras substâncias psicoativas (excluído o tabaco), atinge de 20% a 45% (STRAKOWSKI; DELBELLO, 2000; KRISHNAN, 2005). Ressaltam que embora não haja um consenso sobre os fatores etiológicos dessa associação entre transtorno afetivo bipolar e farmacodependência, algumas hipóteses são aceitas pela comunidade científica para explicar esse fenômeno: 1) sintomas do humor predispõem o uso de substâncias (hipótese da automedicação); 2) o uso de substâncias químicas leva à co-morbidade (hipótese da toxicidade); 3) as repercussões socioeconômicas do uso levam à co-morbidade; 4) ambos os transtornos têm uma causa comum ou 5) ambos são fatores independentes. Acerca dessas hipóteses, os autores salientam que algumas evidências apontam que o transtorno bipolar geralmente antecede o uso indevido de substâncias. O uso de álcool e drogas, por sua vez, pode contribuir para o surgimento da primeira crise (depressão ou mania). Para os autores, identificar essa associação pode facilitar a adoção de estratégias de tratamento mais eficazes.

Do ponto de vista do manejo clínico orientado pela Psicanálise, considera-se que a adição à droga pode “obscurecer, por algum tempo a questão diagnóstica” e aponta para a “extrema importância da localização da função da droga para o sujeito na determinação do diagnóstico diferencial”. O uso da droga deve ser pensado de formas distintas no campo da psicose e da neurose. Se na neurose observa-se “um uso desregulado, sem limites e sem significação da substância tóxica, na psicose, o uso da droga parece ter um caráter bem delimitado, relacionado a uma função bem específica”. (LISITA; ROSA, 2011, p.262-263).

Não seria possível aprofundar aqui todas as particularidades dessa clínica, mas vale ressaltar dois aspectos que aparecem de forma convergente na literatura especializada: 1) a existência de uma estreita associação entre uso de drogas e co-morbidades psiquiátricas e 2) como a função da droga difere para cada sujeito, dependendo da sua estrutura, o manejo clínico também difere.

Do ponto de vista da atividade, a co-morbidade psiquiátrica constitui-se, portanto, assim como a motivação para o tratamento, como uma variável a ser identificada e gerida não

só em cada caso, o que já demanda competências muito específicas, mas no próprio projeto institucional.

Por outro lado, é necessário considerar que o diagnóstico pode assumir “o valor de um rótulo que codifica uma passividade dada por irreversível” (BASAGLIA, 1991, p.108). O autor questiona seu caráter terapêutico e atribui a ele a função de sancionar o que a sociedade já executou, ou seja, o diagnóstico “separa o que é normal do que não é, entendendo norma não como um conceito elástico e passível de discussão, mas como algo fixo e estreitamente

ligado aos valores do médico e sociedade que ele representa...”( p.125).

A doença em si, enquanto entidade mórbida, nem sempre desempenha papel determinante na condição de saúde do usuário, mas assume um significado estigmatizante que confirma a perda de valor social do indivíduo que já é inerente a sua condição de vulnerabilidade e ausência de poder social, econômico e contratual, “uma presença negativa, forçada a ser aproblemática e acontraditória com o objetivo de mascarar o caráter contraditório de nossa sociedade” (BASAGLIA, 1991, p. 113). Essa condição de vulnerabilidade constitui-se numa outra variável a ser analisada.