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CAPS i atende crianças e adolescentes com transtornos mentais graves e persistentes e os que fazem uso de crack, álcool e outras drogas Serviço aberto e de caráter

4. A CONSTRUTIVIDADE DO PROJETO TERAPÊUTICO: DAS NORMAS ÀS RENORMALIZAÇÕES

4.2 As tarefas e os processos de trabalho no CAPS ad: a Clínica de Redução de Danos

4.2.3 A Clínica da Referencia: principais desafios enfrentados na condução dos casos

4.2.3.2 Aspectos limitantes ou dificultadores dos processos terapêuticos

4.2.3.2.2 A vulnerabilidade social

No contexto do CAPS ad, a vulnerabilidade social caracteriza a maior parte dos usuários. Avaliou-se que essa vulnerabilidade social potencializa a dificuldade de lidar com situações já identificadas como difíceis, como por exemplo, a co-morbidade psiquiátrica. Além disso, implica em responder a outras demandas que não só de tratamento de urgência:

[O usuário] Chega demandando muitas outras coisas, o técnico fica naquela, vou por, não vou por. Ele quer banho, comida, outra coisa. Na realidade, ele está buscando um abrigo e não um tratamento (P1).

E aí é uma outra questão, tem muito paciente que é sozinho, que mora em abrigo, situação de rua e aí é outra dificuldade que a gente tem, questão da assistência social. A questão social é um agravante (P2).

Dessa forma, mostra-se necessário explorar um pouco o conceito de vulnerabilidade. Embora não haja pretensão de esgotá-lo aqui, sua alusão permite ampliar as discussões acerca das características do objeto do trabalho da equipe e a forma como essas características condicionam o trabalho.

O verbo vulnerar foi adaptado do termo latim vulnificus que significa “que fere ou pode ferir”. Trata-se de um termo amplamente utilizado tanto na literatura quanto na imprensa leiga e pode denotar diversos significados. Tedesco e Liberman (2008) destacam que estão associados ao termo vulnerabilidade três componentes principais: a chance e risco da exposição a eventos, a possibilidade e capacidade em enfrentá-los e as suas consequências e inscrições na experiência individual e coletiva.

Do ponto de vista da saúde coletiva, Tedesco e Liberman (2008) citam Aires et al (2003) ao definir a vulnerabilidade enquanto a chance de exposição das pessoas ao adoecimento. Para o autor, a vulnerabilidade pode tanto ser individual quanto coletiva, mas há sempre uma relação intrínseca entre essas duas dimensões. Dessa forma, a definição de uma situação de vulnerabilidade deve incorporar a análise do contexto como o lócus que pode acarretar maior ou menor exposição ao risco de adoecimento e, de modo inseparável, à maior ou menor disponibilidade de recursos de todas as ordens para a proteção das pessoas contra as enfermidades.

Na perspectiva social, Castel (1997, p.23) define vulnerabilidade como uma situação de risco de marginalização ou desfiliação. Para o autor, a pobreza é um dos elementos que podem estar na origem da marginalidade, entretanto, adverte que “as situações marginais aparecem ao fim de um duplo processo de desligamento: em relação ao trabalho e em relação à inserção relacional. A partir desse pressuposto, o autor distingue três zonas possíveis de pertencimento social: zona de integração (trabalho estável e forte inserção relacional); zona de vulnerabilidade (trabalho precário e fragilidade de apoios relacionais) e zona de desfiliação (ausência de trabalho e isolamento relacional). A marginalidade é considerada pelo autor ao mesmo tempo “a antítese da modernidade e a forma moderna da não sociabilidade: ela caracteriza os abandonados pelo progresso, todos aqueles que não puderam ou não quiseram se dobrar às exigências do desenvolvimento”. Para essa camada mais vulnerável da sociedade, as identidades se estruturam a partir de um sinal invertido da norma que não é mais capaz de cumprir, vivendo às margens do corpo social, sem dele participar ou estar separado.

Nesse contexto, Castel (1997, p.36) aponta que, historicamente, era possível distinguir duas formas principais de marginalidade. A primeira era caracterizada pela distância em relação ao trabalho regular, mas também em relação às formas organizadas de proteção que se constitui na assistência. O segundo conjunto de marginais seriam “aqueles que foram retirados, a título provisório ou definitivo, da vida social comum, encontrando-se

institucionalizados em espaços separados”. Esse último tipo é caracterizado a partir de uma deficiência (problema psíquico, deficiência física profunda, invalidez crônica...) que justifique uma proteção social especializada. Entretanto, o autor chama atenção para o fato de que as recomposições mais recentes do aparelho produtivo, da fragilização da estrutura familiar e da crise da cultura operária originaram novas formas de marginalidades, por ele definidas como:

Homeless people que frequentam certos espaços da cidade, canais de metrô, cantos de jardins públicos, entradas de estação, bairros precários do subúrbio... Tudo os separa, afora essa experiência comum de ruptura do vínculo social: antigos pacientes “desinstitucionalizados” dos hospitais psiquiátricos, jovens toxicômanos gravemente dessocializados, pequenos delinquentes, clochards de longa data, prostitutas ocasionais, drop out de toda sorte [...] que não se enquadram exatamente nem no sistema sanitário, nem no sistema policial, nem no da justiça, nem nos das agências do Welfare, e que, no entanto, suscitam, simultânea ou sucessivamente, problemas de segurança, de saúde e de assistência (p.36).

No contexto brasileiro, Souza (2009, p.21) identificou os sujeitos em situação de vulnerabilidade social como ralé estrutural brasileira:

uma classe inteira de indivíduos, não só sem capital cultural nem econômico em qualquer medida significativa, mas desprovida, esse é o aspecto fundamental, das precondições sociais, morais e culturais que permitem essa apropriação.

Talvez seja justamente esse „aspecto fundamental‟ o que faz com que essa variabilidade do objeto do trabalho seja um aspecto tão difícil de ser gerido, uma vez que requer dos profissionais desenvolver estratégias de ampliação da rede social de suporte do usuário, acionando a família e a comunidade ou estabelecendo parcerias ou encaminhamentos para outros serviços da rede, tais como abrigos e Assistência Social.

Tem poucos recursos mesmo, e talvez, os recursos que tem a gente não sabe usar. Saúde não é só saúde, é intersetorial (P2).

Diante do tamanho da área de abrangência do serviço, essa tarefa torna-se ainda mais complicada, pois requer um conhecimento muito amplo dos recursos disponíveis.

Então, você tem que fazer contato com a família, se for morador de rua, fazer contato com abrigo, abordagem de rua. O que que eu tento fazer? Eu, particularmente, eu tento referenciar para os serviços sociais que tem na cidade. Então, assim, morador de rua, abordagem de rua vai ver a questão de documentação, encaminha às vezes para curso, às vezes, a gente tem alguns panfletos aqui que a gente sabe que é legal, de uma ONG, a gente encaminha, dá para o paciente, vê se ele se interessa por algum curso. Então é mais por aí, não tem uma coisa muito direcionada. A gente meio que corre atrás também junto com o paciente e vai direcionando naquilo que é possível porque não tem muito conhecimento mesmo assim de como funciona (P4).

Entretanto, demanda também construir um projeto que permita ao usuário conquistar autonomia na gestão da própria vida, o que nem sempre é possível.

O mesmo que eles fazem com a droga eles fazem aqui, colam no serviço, complicado... principalmente o morador de rua, que chega aqui com uma demanda muito social, o morador de rua que encontra um espaço como esse que é agradável, que tem alimentação, que vai ser acolhido, atendido... Na rua é difícil, né? Muito difícil na rua... (P4).

Se por um lado “a adesão é pequena e as recaídas são frequentes” (P2), por outro, as altas também são difíceis porque alguns usuários criam certa “dependência” do serviço, “sentem-se fragilizados porque reduziu [a permanência dia] e aí recaem e às vezes, diante de uma recaída, dependendo, agente acaba inserindo novamente. E aí meio que reforça [esse comportamento]” (P4).

Contudo, gerir essas variáveis que dificultam o trabalho – falta de motivação, co- morbidade e vulnerabilidade – pode ser considerado como o aspecto penoso da clínica, o qual é potencializado pela fragilidade da estrutura e organização do serviço e da rede de atenção psicossocial, questão que será oportunamente aprofundada no Capítulo 6.