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CAPS i atende crianças e adolescentes com transtornos mentais graves e persistentes e os que fazem uso de crack, álcool e outras drogas Serviço aberto e de caráter

3.4 O trabalho na saúde: da Clínica Biomédica à Clínica Ampliada

3.4.2 O trabalho no CAPS ad

Quanto ao trabalho nos CAPS ad, as pesquisas mostraram-se escassas e recentes, mas já apontando para alguns desafios a serem enfrentados pelos profissionais e gestores para consolidação da Política de Atenção Integral ao usuário de álcool e drogas.

Souza et al (2007), através de observação participante em CAPS ad, descreveram uma rede de serviços relativamente desconexa, porém com vastas possibilidades para complementaridade da atenção. Os autores chamam a atenção para uma organização do trabalho verticalizada, típica da hierarquia baseada no Modelo Biomédico. Essa verticalização foi identificada também nas relações entre técnicos e usuários, o que aparecia, inclusive, na delimitação do espaço físico. Segundo os autores tal delimitação se atribuía, principalmente, a uma ideia de periculosidade em relação aos usuários. Além disso, apontaram que havia um engajamento insuficiente dos profissionais com a proposta psicossocial devido à influência de sua formação médico-hospitalocêntrica, o que os levava a reproduzir alguns aspectos da lógica manicomial, tais como, a dominância do processo de fragmentação do trabalho, o predomínio da alienação do sujeito como fato social e a divergência entre o grau de desenvolvimento da tecnologia e o grau de desenvolvimento da força de trabalho.

Pinho (2009), através de uma pesquisa qualitativa que envolveu entrevistas com onze trabalhadores e observação participante em um CAPS ad, apontou contradições entre o discurso focado no Modelo Psicossocial e a prática focada em modelos atrelados à normatividade social. Identificou prevalência de modelos associados a uma assistência psiquiátrica tradicional e modelos adaptativos, tendo como meta a abstinência, em oposição ao que orienta política nacional. Embora a oficina tenha sido referenciada como principal elemento reabilitador, na maioria das vezes, acabava reproduzindo a lógica do entretenimento. Da mesma forma, embora os discursos se pautassem na preocupação com a cidadania e inclusão social, verificou-se a inexistência de projetos terapêuticos individuais. As atividades externas foram consideradas fundamentais pelos entrevistados para a inserção social, no entanto, o autor considera que para tanto seria necessário considerar a construção de uma rede social para os usuários. Nesse sentido, identificou-se um empenho dos profissionais na construção de uma rede de encaminhamentos para profissionalização e comercialização dos produtos das oficinas, mas não de possibilidades efetivas de contratualidade e trocas sociais. O mesmo se observou na inserção dos sujeitos em abrigos, o que não é sinônimo de habitar. Finalmente, concluem que a intervenção na rede social se restringia à família e não previa transformações no espaço cultural.

Tal resultado se confirmou no estudo realizado por Shiwokawa (2010), cujo estudo sugeriu uma baixa resolutividade e uma ineficiência do CAPS ad em alcançar seu principal objetivo, a reinserção social dos indivíduos. Através de entrevistas estruturadas e padronizadas com usuários, além de análise documental em um CAPS ad, o autor detectou ainda falhas na integração da rede primária de atenção à saúde e avaliou que, apesar das qualidades do CAPS ad citadas pelos pacientes e profissionais, este dispositivo apresentava-se insuficiente como modelo substitutivo ao hospital psiquiátrico.

Alves (2009), em pesquisa etnográfica em um Caps ad e Silva (2006) através de pesquisa social de caráter qualitativo que utilizou entrevistas semi-estruturadas, pesquisa documental e observações sistemáticas, apresentaram resultados mais otimistas. Ambos apontam o CAPS ad como estratégia potente para a atenção psicossocial, humanizando o cuidado e promovendo o resgate da cidadania de usuários e famílias. No entanto, os estudos concordam também que a organização das práticas de saúde revelou-se vulnerável à conjuntura política e à fragilidade das redes de saúde e intersetoriais.

Alves (2009) destacou que a parceria do serviço com uma universidade proporcionou supervisão e qualificação técnica para equipe, o que foi apontado como um fator facilitador para o trabalho, enquanto que a inclusão social dos usuários foi considerada como um desafio. Outros avanços referiram-se à prática humanizada e compromissada com o resgate da cidadania e com a articulação da rede de serviços.

Silva (2006), por sua vez, ressaltou a capacidade da equipe em estabelecer vínculos terapêuticos, adequar o projeto às necessidades e características dos usuários e de possibilitar sua interface com outros serviços. Além disso, verificou que apesar dos desafios enfrentados, havia evidências de redução do consumo, abstinência, melhoria da saúde e qualidade de vida dos usuários e reestabelecimento de vínculos afetivos e sociais, o que sugeriu efetividade do serviço. Entretanto, promover a abstinência e evitar a recaída se mostravam como objetivos organizadores das práticas em contraponto ao que é preconizado pelo Modelo de Redução e Danos.

Na mesma direção, Fodra e Costa-Rosa (2009), através de observações participantes e grupos de discussão apontaram que, embora a concepção do objeto proposto às instituições de saúde se encontre no paradigma psicossocial, a resposta ainda era centrada no tradicional. Quanto ao modo de organização das relações intrainstitucionais e interinstitucionais, os

autores destacaram que o poder decisório entre a equipe já caminhava na direção da horizontalização, porém, não era estendido aos usuários, aos familiares e à comunidade. Os autores entenderam que a interlocução com o território para estabelecimento de uma instância de diálogo e escuta ainda era um desafio e que o processo terapêutico visava ainda à mudança de vida do usuário como condição para inclusão e pertencimento social.

Santos (2010) procurou analisar o trabalho multiprofissional em CAPS ad através de análise de entrevistas e grupo focal com usuários e profissional. O autor chamou a atenção para a existência de uma forte tensão entre o tradicional e o novo nos atendimentos aos usuários, a partir de um esforço cotidiano da equipe em referenciar-se ao referencial teórico- político da Reforma Psiquiátrica. No entanto, esses esforços vinham sendo minados por estarem inseridos num contexto social e histórico neoliberal de práticas hierarquizantes e excludentes. Além disso, destacou a existência de relações de poder verticalizadas, onde o saber médico prevalece sobre os demais e onde o poder decisório, centrado na gestão municipal, não é discutido com a equipe. As condições de trabalho precarizadas também apareceram como um elemento dificultador para o trabalho. Finalmente, avaliou que o trabalho em equipe caracteriza-se mais como multi do que como interdisciplinar, uma vez que havia trocas de informações entre os profissionais, mas não havia deliberação coletiva nem respeito à diversidade de saberes, assim como não se identificou aproximação do fazer com o refletir teoricamente e nem a criação de uma axiomática própria.

De todos os estudos mencionados acerca do trabalho coletivo nos CAPS e CAPS ad, os organizados por Lancman (2008) foram os que mais se aproximaram, tanto teórica quanto metodologicamente, da proposta desse estudo por privilegiarem o ponto de vista do trabalho em suas análises.

Entretanto, sem a pretensão de efetuar uma análise crítica detalhada das pesquisas, é necessário focalizar um aspecto que permaneceu quase intocado em grande parte dos estudos descritos: o trabalho real. Tendo o cuidado de não homogeneizar o conjunto dessas pesquisas, foi possível identificar que uma parte importante dos autores elaborou suas análises e reflexões somente a partir das representações dos sujeitos sobre o próprio trabalho. Esse ponto remete precisamente à problemática dos fundamentos epistemológicos da base teórica presente nessas pesquisas.

Verificou-se que a maior parte dos estudos descritos, seja através da análise do conteúdo das entrevistas, seja através das descrições do contexto, tendem a fazer uma análise que nem sempre considera as variabilidades inter e intra individuais presentes nos trabalhadores, nos usuários e na organização do trabalho. Ao privilegiar os resultados do trabalho, correm o risco de desqualificar as invenções locais que os trabalhadores desenvolvem para dar conta das variabilidades que não estão previstas nas tarefas impostas pelas diretrizes teórico-políticas. Concorda-se com Guérin et al (2001, p.18) que pesquisas sobre o trabalho que privilegiam o discurso e não consideram a dimensão da atividade obterão sempre “uma abordagem mutilada das situações de trabalho”.

Entretanto, as questões apontadas pelos estudos empíricos referenciados confirmam que a atividade de trabalho não é mera reprodução do que é prescrito, mas uma estratégia de adaptação à situação real de trabalho (GUÉRIN et al, 2001). Destaca-se a identificação de uma prática que oscila entre o tradicional e o novo (GARCIA; JORGE, 2006; KODA; FERNANDES, 2007; SOUZA, 2010) ou de um discurso focado no novo que se contrapõe a uma prática focada no tradicional (LEÃO; BARROS, 2008; PINHO, 2009; VASCONCELOS; AZEVEDO, 2010; FODRA; COSTA-ROSA, 2009; SANTOS, 2010). Estima-se que gerir essa distância entre o real e o prescrito pode tornar-se fonte de sofrimento para os profissionais tanto nos CAPS, quanto nos CAPS ad. Isso ocorre na medida em que as prescrições deixam de ser um norteador para o trabalho e tornam-se obstáculos para as regulações necessárias.

Além disso, identificou-se que as condições materiais de trabalho, a construção de uma rede articulada que ofereça retaguarda ao tratamento e a superação da hegemonia do papel do médico são alguns dos principais desafios apontados em quase todos os estudos referenciados.

Embora vários estudos apontem que a prática oscila entre os modelos psicossocial e o manicomial, deve-se considerar que as mudanças são recentes e os processos de formação nem sempre estão coerentes com os proposta, conforme bem salientou Souza et al (2007).

É necessário salientar também que apesar dos desafios apontados, identificou-se um reconhecimento da transformação do cuidado, uma reafirmação dos ideais da reforma psiquiátrica, da aversão ao modelo manicomial e a necessidade da criação de espaços para repensar e reformular as práticas e teorias de forma contínua.

4. A CONSTRUTIVIDADE DO PROJETO TERAPÊUTICO: DAS NORMAS ÀS